sexta-feira, 20 de junho de 2025

Judite ou antes que o esquecimento se torne a única realidade

     Judite devorou o próprio coração duas vezes e foi assim que encontrou a paz necessária. Foi mais ou menos assim que ela chegou no lugar onde está agora. Depois de habitar cada um dos tronos estrangeiros que não lhe pertenciam e de caminhar com os loucos que abandonaram a floresta, desceram das montanhas e povoaram essas enfermidades à céu aberto que chamamos cidades. Judite, a que abandonei quando não olhei para trás e que ainda estava à minha espera quando, cansado e exausto, regressei. Judite, a que nunca encontrou meio de aparecer em meus sonhos e a única que sabe decifrar pesadelos e dizer com precisão o alcance do carma de cada um e de todos nós. Judite, a quem todos devemos a vida e a morte e o entendimento de que a vida e a morte são uma bendição. Judite, a que sabe ler nuvens, ler vísceras, ler sofreguidões. Judite, a que recorda a gramática perdida da língua das salamandras e a semântica dos seres sem nome que algum dia habitaram este planeta. Judite, a primeira que pronunciou a palavra saudade e que ensinou a cada ser vivo o significado desta palavra. Judite, a que já foi pedra, já foi planta, já foi água e que agora é puro ar. A que devorou seu próprio coração duas vezes e assim nos redimiu da ferida de ter nascido. Em teu nome está cravado o sangue do despertencimento. Nenhum estranhamento que tenhas sobrevivido sem coração. Nenhum mistério no fato que tenhas conseguido alguma paz. A memória de cada trono onde habitastes foi mais que suficiente. Tua capacidade de prever tragédias, anunciar cataclismos e antever anátemas remonta a tempos muito anteriores a teu nascimento. E é dela que deriva teu amor, tua quietude, tua tranquilidade e todas as virtudes que os néscios tomam por debilidade e confundem com as formas inferiores da resignação. Haverá o dia em que devorarás por terceira vez teu próprio coração - e nesse dia será ainda mais fácil reconhecer em tua face os passos que nos trouxeram até aqui. E nesse dia talvez possamos descansar realmente e nos divertir brincando com as sombras que algum dia foram nosso doce tormento e a mais pura fonte de onde jorraram nossas mais infernais ilusões. Judite é a inalcançável delicadeza com que se respira depois de toda conclusão.


nuno g.

Jesús María, 20 de junho de 2025. 

Alzira: grãos de areia, lucidez e pequenas tempestades

     Alzira tinha mais de cem anos e seguia imóvel, de cócoras, no canto do terreiro, absorvida pelo movimento dos grãos de areia escorrendo entre seus dedos. Alzira já teve muitos outros nomes antes de ser batizada à pia com este nome. Os grãos de areia nunca alcançavam o solo. Nunca paravam de cair. Alzira espreitava e as rugas se proliferavam ferozmente em seu rosto. Alzira seguia imóvel como na primeira vez que a encontrei. Tinha algo de estrela em seu semblante e, apesar de tudo, se pressentiam pequenas tempestades em seu íntimo e um esforço descomunal para manter a aparência de imobilidade. Alzira arrebanhara onças e gaviões por séculos antes de chegar neste lugar. Transpirava uma exímia concentração e apenas permitia que os grãos de areia seguissem escorrendo entre seus dedos. Nunca chegavam a tocar o solo. Em Alzira se percebia que houvera muita beleza antes e o melaço em seus cabelos recordava seus primeiros encontros com Rebeca e as lições amorosas que dela recebera. Não havia menor indício de distração em Alzira e apenas sua imobilidade guardava a memória de quando cavalgara com Hermenegildo pelos campos de lama e flores. O rio esverdeado riscando sua testa, as pequenas tempestades e a aparente ausência de movimento eram o mais particular em Alzira. Sua alma, diriam os teólogos que a conheceram. Mas também a isso Alzira era toda indiferença. Sua biografia se resumia aos grãos de areia que escorriam entre seus dedos sem nunca alcançar chão. Seus sonhos se resumiam a pequenas e sonoras tempestades acrílicas que seguiam-se umas às outras numa interminável procissão. Até que veio o sol, abrasador e impiedoso, como um cão que termina de escapar de um calabouço frio e escuro onde esteve aprisionado por mais de mil anos; deitou-se aos pés de Alzira e os grãos de areia foram entranhando-se em sua pelagem enquanto Alzira parecia abandonar definitivamente a máscara com que se apresentara por toda uma encarnação. Alzira, definitivamente, não distinguia o falso do verdadeiro. Nela, luz e sombra eram uma só e a mesma realidade. Aquele cão a seus pés, o aroma adocicado e frugal que atraía mosquitos das mais distantes regiões da terra e sua estranha capacidade de revelar coragens soterradas quase justificavam sua existência. Alzira nunca desejou plenamente estar aqui, mas algo superior à sua vontade converteu em necessária sua resignação. O cão se foi. Os grãos de areia seguiram caindo sem encontrar chão e as pequenas tempestades seguem sucedendo umas às outras como uma sucessão infinita de cachoeiras onde todos os fogos nunca cessam de arder.


nuno g.

Jesús María, 20 de junho de 2025.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

breve história do silêncio e da culpa

a meus guias, em súplica e admoestação 

    Apenas o grito atravessou a noite e minhas mãos tornaram a tremer e a soltar faíscas de fogo e solidão. Dois seres se apresentaram e apesar da parecença que guardavam entre si não eram parentes. Provinham de árvores distintas, pertenciam a tempos distintos e se moviam por trejeitos diferenciados. Os cílios eram de cores outras e as serpentes que os acompanhavam eram de signos opostos. Alguém, com extremo carinho e delicadeza, me disse: é preciso cuidar antes de seguir. Foi quando o grito se extinguiu e se escutou algo semelhante a um hino em língua intraduzível. Apesar de nada se compreender era evidente que o hino exaltava certas virtudes presentes na desconfiança e na cautela. Rebeca, onça no cio, acenou a Hermenegildo em sua velhice. A lama dos cascos do cavalo deixou um rastro que ninguém ousou seguir. Adélia, de longe e soslaio, sorriu. Era véspera de algo que não se sabia. E como toda véspera se fazia acompanhar de algo que oscilava entre a morbidez, a descrença e a fé no infinito. Uma andorinha cruzou o céu e recordamos do campanário e do anjo vermelho e do rugido das feras. Tempo foi se desdobrando ante nosso espanto e os dois seres encostaram à sombra de uma árvore chamada Espera. Era tarde demais para qualquer manifestação de felicidade ou esquecimento. Apenas o silêncio e a culpa conseguiam respirar sem ferir a memória da infância e as mais vivas recordações de quando as onças se exibiam à luz do dia e os tapuias dançavam sobre as águas. Alguém, sentou-se à pedra, pronunciou uma oração turva e barrenta antes que Hermenegildo, Adélia e Rebeca desaparecessem mais uma vez no horizonte...


Jesús María, 19 de junho de 2025. 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

breve história do medo

      Nada sobre dormir cedo, sempre sobre olhar nos olhos da insônia. A vida é triste, sempre foi triste. Tem muito pouca coisa pela qual realmente vale a pena seguir caminhando entre os automóveis, os zumbis e todo esse cenário que construímos à custa de sangue e vampirismo. Em algum lugar sempre haverá uma onça uivando e isso deveria bastar, mas não basta. Eles sempre vencem e tudo regressa ao mesmo lugar. Círculo vazio. Repetições. Alguma música para ouvidos nada delicados. Fome, sede e as mãos trêmulas do assassino da esperança. Anoitecer no meu dicionário significa calmaria. Ainda depois de anos sem álcool e sem perambulações pelos subterrâneos das madrugadas. Minhas pupilas estão dilatadas. Minhas retinas em ruínas. Prolongado luto e excessiva proximidade da estupidez humana. Sinto, farejo, escuto a presença das onças. O resto é morte. O resto é morte em vida. Cansaço. Marasmo. Repetição. Hermenegildo cruza a avenida entupida de automóveis. Rebeca se atira do oitavo andar pela milésima vez. Adélia canta nua numa esquina qualquer. Um jovem, deitado no gramado do parque, lê Bukowski. Penso em Fante. Sinto que estão vivos e caminham em algum lugar bem longe daqui. Me distraio por um segundo e volto ao começo de tudo. Regresso ao triste povoado das éguas russas e avisto o cemitério de onças. Com minhas próprias mãos arranco os restos de carne de seus esqueletos. Sinto o vento que tem nome. Ouço o canto que vem de longe. Arranco a máscara e os meus olhos vão junto com ela. Estou cego, finalmente posso ver. O rio corre em direção contrária ao mar. A vida é triste, sempre foi triste. Penso em Nauro Machado bêbado cruzando as águas da ilha. Rebeca volta a se atirar do décimo primeiro andar. André Dias termina mais uma pintura. As fúrias trepam ante meu rosto sem olhos. As onças, o cansaço e os efeitos do luto prolongado se misturam como licores numa taça fria. A guerra está em todos os lados. Dentro de nós. Fora de nós. Acima. Abaixo. Só o coração de Hermenegildo sabe à trégua. Eu chamo e a voz de Adélia vem me ninar. O mar está perto o suficiente para que se esqueça, mas demasiado distante para que se possa tocá-lo com um simples movimento da língua. Nada é arbitrário e isso, ao invés de serenar, multiplica o desassossego.

Jesús María, 19 de junho de 2025.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

se ao anoitecer as onças seguissem dormindo

    Hermenegildo e Rebeca se cruzaram na estrada essa semana. Antes do primeiro tremor da terra. Ainda quando a neblina mergulhava a cidade em penumbra. Apenas de soslaio foi possível avistá-los. Havia muita distância em seus corpos: distância e cansaço. Em Rebeca toda a beleza se convertera em memória e Hermenegildo aparentava guardar mais silêncio que o já habitual. O vento que acompanha Hermenegildo acendeu algo do fogo triste tão próprio à Rebeca. Um beija-flor, ao longe, floresceu. Assim como chegaram se foram. Sem deixar indício das razões de suas presenças. Apenas a certeza de sempre que tudo o que fazem é necessário e que essa é a única ideia que têm sobre o que significa ser livre. O rio seguiu seu curso, mas conservou a precária alegria de ter saciado a sede de um pássaro, de um velho e de uma corajosa senhorita que bem poderia se chamar Recusa. Sim, a terra tremeu duas vezes nos últimos sete dias. Nada além do esperado. Tudo conforme o risco aceso pelo Senhor dos Caminhos no chão em brasas. Mais uma guerra a recordar aquela outra guerra. Onde nascem estrelas e todas as cores se confundem. Onde a morte, faceira e empolada, pode se divertir ao ver brincarem a onça, a serpente e o gavião. Sim, raios caem no mesmo lugar. E sim, os raios são os mesmos e os lugares também. Apenas Hermenegildo e Rebeca sabem que é possível deixar de ser e seguir sendo ao mesmo tempo. É que eles sabem onde encontra-se a árvore chamada Tempo. Conhecem os caminhos de suas raízes pelos subterrâneos e a trajetória curva de todas suas sementes quando caem a cada outono. Existe algo mais no ocorrido, mas este algo é justamente a última fronteira do que me é permitido narrar.  


Jesús María, 16 de junho de 2025.

terça-feira, 3 de junho de 2025

sob oceânicas águas

        para Néstor Perlongher & mãe Baixinha,


aéreas, indecifráveis, espessas

entremeadas por escamas finas e desdobráveis

e frágeis faíscas de um corpo em combustão espontânea

aéreas, invioláveis, esverdeadas

entremeadas por escamas coloridas e pontiagudas

o cansaço e a gravidade agem como fogo no corpo

e o arrasta aos corais submersos — ao inexpugnável céu das águas douradas

onde apenas se sente, quase como uma intuição que se desfaz,

o aroma da presença da estrela azul

aéreas, impermeáveis, remotas

entremeadas por vozes de fantasmas que não cansam de repetir:

não há mar, não há eclipse, não há arco-íris

aéreas, incansáveis, geladas e adocicadas

entremeadas por vagas memórias do palácio da Rainha

aéreas, sonolentas, ébrias

entremeadas por pequenas veredas de uma antiga floresta

e uma insistente pergunta: onde estás estrela azul, onde estás?

aéreas, aéreas, aéreas,

entremeadas por silêncios profundos

que se espraiam sobre os resquícios de uma biografia

                          sobre jardins em eterna penumbra

        onde não se registram acontecimentos

        onde tudo é impreciso e espera de uma forma

aéreas e inalcançáveis

entremeadas por insistências de um destino tão concreto quanto o mármore

        apenas as dúvidas e os peixes se sentem cômodos aqui

        apenas eles não se incomodam com a voz ébria dos fantasmas

tudo se move, tudo gira

incessante e caleidoscópico eco do sino assombroso da catedral

adocicado aroma da estrela azul

entre aéreas águas onde não reina nenhuma ordem conhecida

                                onde lógica é sinônimo de atordoamento 

                                onde reverbera a irreconhecível promessa do fósforo e do amianto

 aéreas águas, estrela azul e um coração estendido sobre a relva que se recusa a amanhecer...


nuno g.

Lima, 03 de junho de 2025.







sábado, 31 de maio de 2025

ossos em carne viva

         para Larissa, Alice & Assucena,


Deixo para trás a casa do Amauta como quem abandona um templo.

Levo comigo o precioso instante em que meu olhar pousou nas teclas de sua burroughs.

Caminho até o mercado das bruxas.

Em silêncio e com passos leves para não incomodar a insônia que povoa a cidade.

Levo comigo uma mochila cheia de esterco e sonhos.

Penso sobre o ressentimento que move os transeuntes.

Em sua desesperada busca por mais dinheiro e reconhecimento.

O excesso de café e a atmosfera de efeméride provocam abalos sísmicos em meus órgãos digestivos.

Olho as bancas de feitiços, as folhas de coca para rituais de adivinhação.

Sinto o cheiro doce do copal e a umidade afogando minhas mais antigas ruminações.

Estranhos objetos atravessam meu corpo como os projéteis bélicos atravessam as ruas de Gaza.

A cidade se estende ante meus olhos como a relva onde amanhece meu rosto anterior ao nascimento.

Tudo nela desconheço, como em meu corpo.

Território inviolável e abstrato onde se insinuam seres grávidos de suspeita.

Sinto a presença do Amauta abençoando nossos passos na escuridão.

Avisto estilhaços de minha alma cruzando as esquinas.

Vejo línguas estendidas em direção aos semáforos.

A cidade toda convertida em um imenso canteiro de obras.

Jardins sendo demolidos, árvores substituídas por edifícios.

E essa umidade ímpar penetrando os ossos e a intimidade dos mais recônditos pensamentos.

A barbárie moderna é imparável, incansável e desconhece o perdão.

Alice desperta e diz: vem pai!

Alice desperta e lê: canteiro de obras!

Em seus olhinhos sonolentos e delicados revejo as teclas da burroughs do Amauta.

E o mercado das feiticeiras andinas.

E a sua dúvida: isso já seria uma anáfora, pai?

Sim, as anáforas habitam meus poemas como duendes e gnomos habitam as florestas.

Também gosto de anáforas pai!

O sol luta contra as nuvens e um fantasma repete:

não há mar, não há eclipse, não há arco-íris.

A barbárie moderna insiste em mudar de trajes.

Se apresenta como uma respeitável senhora de classe média.

Que não guarda nenhum pudor em exibir seus miseráveis preconceitos.

Regressamos à floresta guiados pelos fantasmas do fogo.

Uma imensa cruz de caravaca surge no horizonte.

Pai, este poema está se movendo muito, do concreto à floresta!

Pai, no Brasil também o gentilício de chinês pode ser chino?

Pai, será que os estadunidenses falam unitedstatesense?

Assucena dorme sob efeito da injeção que lhe aplicaram no hospital Santa Rosa.

Larissa dorme e Alice me lembra que temos que comprar uma bolsinha de emergência.

A vizinha empesta o hall do quinto andar com cheiro de peixe frito.

A vizinha empesta a cidade com peixe frito.

Vou à padaria.

Passos leves para não incomodar a insônia de Tempo.

A senhora venezuelana vende tamales e amaldiçoa Maduro.

Darian brinca que somos noruegueses.

Pai, em espanhol o acento circunflexo não tem nome!

Neste instante um avião sobrevoa o Darién panamenho

                                       sobrevoa os ossos dos invasores ibéricos

                                       sobrevoa o zumbido infernal dos mosquitos da selva

                                       sobrevoa as estrofes dos poemas ainda não escritos

Um jovem, arrogante e sincero, entra na padaria com um cão à coleira.

Caminho até a igreja Santa Beatriz.

Onde rezo pelos mortos que seguem vivos.

Pai, você não usa linguagem neutra nunca né?

Pai, esse poema poderia se chamar figuras de linguagem!

Pai, você vai expor isso?

Pai, o povo vai achar que eu sou contra!

Yes!

Volto à casa do Amauta.

Perdemos todas as fotos que tiramos lá.

Deixo os sapatos à entrada.

Peço ao sábio alguma sabedoria.

O sol quase vence as cinzas do ressentimento e da vingança.

Um homem com ares de filólogo pede um ovo com chorizo.

Assucena sonha com o labirinto de corredores do hospital Santa Rosa.

Larissa sonha com a grosseira da enfermeira aplicando a injeção.

Alice, já desperta, segue sonhando com coelhos alegrinos.

E sopra: pai, alguém pode sonhar com coelhos alegrinos?

E sopra outra vez: esse poema poderia encerrar com um emoji, pai!

💗


nuno g.

Lima, 31 de maio de 2025.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Conjuração dos fantasmas de 31 de maio

Chegaram das quatro regiões oníricas

Em profunda algazarra

O bando dos mares trouxe vinho em abundância

O das montanhas ervas e amuletos indecifráveis

Os filhos da terra do fogo trouxeram pequenos insetos fosforescentes

E os seres subterrâneos trouxeram sândalo, copal e grãos de areia

Reuniram-se à imensa mesa

E cantaram cânticos em línguas desconhecidas

Impronunciáveis fonéticas ecoaram em torno à mesa

Estrondos se escutaram e relâmpagos foram avistados

E o tempo se fez estático como quando nasce uma criança

Ou como quando morre uma criança

Ou como quando se enterra uma criança

Ou como quando se encerra o luto de uma criança

Ou como quando a crença gera uma trégua

Mas os fantasmas sabem que as crenças apenas insinuam tréguas

E que o luto de uma criança move um mundo

E que enterrar uma criança implica num tipo muito particular de tristeza e esgotamento

E que a morte de uma criança corrobora que o sentido do mundo é reversível

E que o parto de uma criança é a própria definição de milagre

Os fantasmas trouxeram para os meus sonhos objetos alheios ao meu desejo

E os dispuseram à mesa à revelia de minha vontade

Em estado de alegria e algazarra

Comeram, beberam e cantaram

Entoaram cânticos numa língua esquisita

De impronunciável fonética e ritmo frenético

Os primeiros raios de sol tomaram a reunião de assalto

E tudo o que conhecíamos por realidade deixou, subitamente, de existir


nuno g.

Lima, 29 de maio de 2025.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

O castelo Rospigliosi

O dia amanhece, as pessoas saem a passear seus cães pelas ruas.

O dia amanhece, as crianças saem com seus pais à escola.

O dia amanhece, os vendedores preparam lanches e bebidas nas esquinas do bairro.

O dia amanhece, inesperadamente, se vê o sol e se escutam sorrisos às ruas.

O dia amanhece, as memórias do sonho vão se desfazendo velozmente.

O dia amanhece, abandono o castelo e regresso ao apartamento.

O dia amanhece, o aroma de café se sobrepõe aos aromas do castelo.

O dia amanhece, uma teia de pétalas de flores coloridas acende a cidade.

O dia amanhece e algo amanhece junto.

Uma vez mais caminho por províncias antigas.

Ouço o som do mar Pacífico.

Sinto sua umidade entranhando-se em meus ossos.

Avisto a meseta central do grande vale de Anáhuac.

Avisto o monte Roraima, sua exuberância me comove.

Pressinto a proximidade do lago sagrado e seus sapos gigantes.

Olho as pessoas na parada de ônibus devorando pão com abacate.

Vejo os operários chegando para mais um dia de trabalho.

Recordo a imensidão da noite que me abandona.

Recordo sonhos antigos em cárceres ainda mais antigas.

Ouço a voz dos prisioneiros disputando cigarros e comida.

Avisto a chapada do Apodi com seus jaguares encantados.

Ouço seus cantos, sinto seu vento, banho-me em seu rio.

Aracati me sussurra coisas que não devo esquecer.

Aracati me sussurra coisas que não posso narrar.

Não está frio, mas a memória do frio está mais presente que ontem.

Raízes se entrelaçam à minha desesperança.

O castelo vai ficando para trás.

As coisas que não me aconteceram vão ganhando formas precisas.

Ouço um velho amigo me falando sobre o medo e a ansiedade.

Alice desperta, come um pão com ovo e vai fazer prova de biologia.

Assucena desperta, come morango com uvas e sorri.

Larissa desperta, nela a luz da lua e o fogo de antigas promessas.

O castelo estava vazio, nele nem sinal de quem eu buscava.

Ainda assim creio nas coisas que não vivi quando nele estive.

Sigo outra vez a Serpente e as asas da Serpente e o veneno da Serpente.

Ainda estou no deserto - mas agora entendo que estar nele é estar calmo.

Como quando escrevi meu próprio dicionário.

E redescobri o segredo dos heróis e das tumbas.

E pude reviver toda minha vida representada no anfiteatro do castelo.

Relembro o sono profundo que me acometeu nos pampas de Ayacucho.

Passaram-se apenas duas décadas, mas parece que se passaram mil séculos.

Ainda ouço a voz sublime de Martina Portocarrero cantando à praça.

Ainda vejo as pessoas bebendo, dançando, conversando e namorando.

O feitiço daquele dia ainda está em mim.

Como a memória de um desejo espraiando-se sobre o horizonte.

Como as loucas sensações que se apoderaram de mim quando li Ginsberg por primeira vez.

Como a certeza de que no castelo habita apenas a sombra de quem eu buscava.

E que, ainda assim, essa simples presença fantasmagórica foi suficiente.


nuno g.

Lima, 16 de maio de 2025.


quinta-feira, 15 de maio de 2025

Oração à Nossa Senhora das Nuvens

para Roberto Bolaño,


Vejo os operários, vejo as ruínas, vejo a cidade se desdobrando

em outra cidade que também está repleta de operários e ruínas

se desdobrando em outra cidade

Ouço o som da luz e entendo que nada mais é

que o Sol vociferando

Ouço os sussurros dos demônios arcaicos

e vejo o brilho das estrelas que ardem em seus olhos

Trago no corpo a gordura das frituras do mundo

                         a fumaça de todos os cigarros do mundo

enquanto minha boca saboreia creme de avelã

Vejo a Serpente rasgando o céu

e fico parado, simultaneamente, estático e em movimento,

como uma árvore solitária que cresce em direção ao centro da terra

                                                             em direção ao vulcão-abóbada-do-infinito

parado, imóvel, em incessante movimento

como uma palavra desgarrada do curso natural do tempo

que se dobra sobre si mesma

em busca do seu próprio útero

e do perfume de uma rara flor que lhe marcou a primeira primavera

Uma senhora bendiz e reza os pés de Assucena

Um homem gordo se arrasta sobre o asfalto como uma lesma no pântano

Ainda é maio, ainda tem suficiente querosene em minhas veias

Ouço o acordeão primitivo e insolente

e adentro a geografia desconhecida das promessas de futuro

enquanto vou desenrolando um fio de azeite e algo de borra de café

São anos de jejum pairando sobre minha cabeça

Orbitando entre minhas virilhas

Parindo máquinas insones que não param de se reproduzir

Ainda é maio, meu avô me presenteia uma lua cheia

adentro suas cavernas e pouco-a-pouco

vou construindo um caminho até seu lado insondável

Agarro-me a São Miguel como se a floresta das mil pétalas enfeitiçadas

estivesse logo ali, à terceira margem do rio

Ouço os transeuntes balbuciando intempéries

Tudo está suficientemente distante

Tudo parece irremediavelmente ausente

Os operários, as ruínas, a cidade grávida de outra cidade

também grávida

e prestes a se dissolver num parto extenuante e cheio de brilho

Ainda é maio: finalmente a lua se permitiu ser vista

entre nuvens que, ironicamente,

não se assemelhavam em nada às nuvens que me acompanharam por toda a vida

Ouço o som das máquinas se reproduzindo como cães indefesos

ou como ratos caseiros que serão devorados na próxima estação

Agarro-me à penumbra e à esperança que morde minhas cicatrizes e vocifera

Os arcanjos de maio bailam uma ciranda bonita

Minhas turvas visões conferem imprecisão às fronteiras do mundo

O fogo me acaricia o corpo, ouço os passos de Alice caminhando de regresso

e recordo, por um instante, o exato momento em que abandonei a jarra de cinzas

Ainda é maio: a fé é o que resta do tempo em que vivemos no útero

Ainda é maio: meu avô está de sentinela na entrada da cidade

Ainda é maio: me despeço, adormeço e ouço a palavra desgarrada

A palavra que inverte o sentido da história

A palavra que não serve aos planos dos políticos sobre a vida

A palavra que não é arma e que se ajusta com precisão às cicatrizes

Nada importa mais em um corpo que as cicatrizes:

o Além é a cicatriz mais profunda

nele a pele sonha um imaginário inabitável e acolhedor

onde pássaros coloridos entoam salmos de louvor ao impronunciável

Ouço o Sol vociferando

Vejo o brilho das estrelas

E toco com a língua o escarnecido feitiço que assombra os lunáticos...


nuno g.

Lima, 15 de maio de 2025.

domingo, 11 de maio de 2025

a cidade dos sonhos acinzentados



estamos em maio - no coração acinzentado de maio

no único mês do ano em que a boca de meu avô não esfumaçava o mundo

esperando não sei quê coisa premonitória acontecera

estamos em maio - no coração acinzentado da Virgem

no único mês em que os sonhos cinzas se tingem de cores

estamos em maio - são quatro e meia da manhã

agradeço e caminho pela cidade imensa

onde as pessoas lutam o tempo todo contra tudo

onde os carros buzinam e se atropelam contra todos

onde as marcas do avanço do capital mancham cada esquina

      cada viela, cada praça, cada traço no rosto de cada transeunte

estamos em maio e já faz frio

ainda recordo que algum dia os ossos da saudade se esfarinharam

mas também recordo que são quatro e meia da manhã e os anjos já estão despertos

nessa cidade onde fui esquilo e maritaca e solidão e esperança

avisto o amanhã e as crianças que nele correm e brincam e sonham sonhos acinzentados

caminho e sonho, sonho e caminho

vejo um moço afeminado se despedindo de seu amante negro em meio à neblina

vejo um senhor com fortes traços andinos vendendo flores em aymara

vejo uma senhora caminhando em direção ao mercado com uma bíblia nas mãos

são quatro e meia da manhã, compro meus cigarros

e penso em toda essa guerra que aflora nos olhos de cada transeunte

uma guerra contra a condenação do trabalho perpétuo e inútil

que apenas lhes permite comer e dormir e voltar a trabalhar

e os meus sonhos cinzas voltam a caminhar comigo pelas ruas que se cruzam à neblina

ouço os ossos de minha mãe tocando o solo da calçada

ouço seus ossos se esfarinhando

olho para o céu e vejo seu corpo agora sem ossos brilhando no meio do nada

uma imensa estrela acinzentada anunciando a chegada da próxima lua cheia

vejo minhas filhas olhando o céu e o nada

pedindo a benção à sua avó e agradecendo por estarmos desfrutando dessa cidade cinza

ouço o mar se chocando contra as pedras

em minha memória sempre a presença das coisas para sempre perdidas

em minha memória o futuro das coisas reconquistadas

estamos em maio - quatro e meia da manhã, faz frio

e os anjos cinzentos insistem em caminhar comigo

e os anjos cinzentos insistem em me falar sobre minhas vidas passadas e minhas vidas futuras

e os anjos cinzentos tomam café amargo comigo e fumam cigarros

e me falam de como a ganância está tornando o mundo mais feio e sem graça

e como as pessoas estão esquecendo de agradecer o oxigênio que as mantêm vivas

e como estamos todos tão ocupados que sequer recordamos da benção que é ter um alimento

e me fala dos mercados dessa cidade, dos parques dessa cidade, das feiras dessa cidade

e de como apesar da violência da truculência e do abandono

existe uma preciosa insistência em afirmar um passado tão antigo

e de inventar um caminho até um futuro inusitado

embora o trânsito caótico e mal humorado pareça intransponível

estamos em maio - a mulher que amo ainda tem suficiente leite e razão em seu íntimo

e divide comigo sonhos acinzentados

enquanto espreme os poemas de Alcira Soust Scaffo

enquanto espreme, como se fosse um limão, 

      cada personagem de um mundo onde tudo é violência

enquanto descobre que cada verso que lê agrega ainda mais violência à vastidão da história

depois de tudo parece que o capital venceu

e que todas as saídas estão realmente interditadas

mas ainda existe esse simpático senhor andino vendendo flores de maio

ainda existe este moço afeminado se despedindo de seu amante negro em meio à neblina

ainda existe esse anjo que me fala de reencarnação e esperança

      dos barracões do Callao com suas meninas de mini-saia no inverno

      das comidas ofertadas pelo mar

      do amor da mulher que tem razão e leite no corpo

      das minhas filhas pedindo benção à lua

      dos outros poemas que ainda serão escritos por mãos que sequer chegaram 

                                                                                                               ao ninho do útero

mãe, eu te agradeço por estar vivo e poder caminhar nesta cidade

mãe, eu te agradeço pelos meus sonhos acinzentados se encruzilharem 
      
      com o cinza desta cidade

mãe, eu te agradeço por esse mar frio, rude e violento que nos abriga

mãe, eu te agradeço por estares viva e reconhecível nesta lua cinza

mãe, a morte não existe

mãe, daime força para acreditar que o mundo do dinheiro e a escravidão do trabalho 

                                                                                                                           não existem

mãe, daime luz para ver além do que é passageiro e ilusório

mãe, daime amor e gratidão para recordar do que meu avô não chegou a me dizer 

                                                                                                                           antes da morte

mãe, daime tuas mãos e caminha comigo pelas ruas dessa cidade

olha tuas netas brincando no Campo de Marte

olha tuas netas passeando na feira do castelo Rospigliosi

olha teu filho caminhando às quatro e meia da manhã em busca de cigarros e amor

olha teu filho conversando com um senhor que onde estiver estará sempre em Huancavelica

onde estive duas décadas atrás e sonhei com todas as cores do mundo dentro do cinza

águas escorrem entre meus dedos

águas sóbrias e sombrias como a garganta aberta do inimigo

ou um beijo pronunciado em língua desconhecida

seria completamente inútil e insensato esquecer que a vida é triste

assim como é estúpido se agarrar à fantasia que não podemos atravessar a 

                                                                                                encruzilhada dos sonhos cinzas

é maio - mês em que tudo me recorda a Virgem e o meu avô

é maio - mês em que a lua está mais próxima e clareia meus pensamentos

é maio - pressinto minha vó como alegoria e rumor e cuidado e carinho

a cidade amanhece cinza dando continuidade a meus sonhos cinzentos

existe muita vida girando no caleidoscópio de ressentidas estrelas

ainda tenho visões suficientes para seguir caminhando

ainda tenho curiosidade bastante para interrogar o nada e o escuro

ainda tenho o cinza e os sonhos e todas as cores que habitam os sonhos cinzentos

amo o frio, amo o cinza, amo a neblina

amo a mulher que dorme e seu corpo cheio de razão e leite

amo os ossos esfarinhados de uma saudade que nunca deixou de me pertencer

amo o sono tranquilo e pacífico de minhas filhas

faço um café - deve ser o terceiro ou quarto deste amanhecer entre sombras e fumaça

sinto que esse edifício já se deixa ficar para trás

já é memória do tempo em que chegamos nesta cidade

quando ainda corríamos atrás de documentos e de recuperar a memória 

                                                                                              do que nos trouxe até aqui

sinto que amanhã estaremos em uma casa

e os anjos, usando das artimanhas que só os anjos têm,

me falam através do porteiro dos jardins de Santa Beatriz sobre como será a vida lá

das áreas verdes e dos pássaros e das feiras e das comidas 

                                                            e de todas as cores que vivem no cinza

e da alegria em minhas filhas e em cada gesto de Larissa 

                                                            e na dureza do rosto andino que me sorri

recordo da praia de San Miguel, recordo do santuário em que sonhei com minha própria morte

e chovem pétalas de flores sobre a cidade dos sonhos acinzentados

e chovem ossos sobre as saudades que se dissolvem

e chove sobre as poucas lágrimas que me permiti chorar

e chove sobre a mentira, sobre as pálpebras da mentira, sobre a solidão da mentira

sobre o dia em que estaremos em Huancavelica comendo batatas desidratadas ao frio

mascando folhas sagradas 

                   e sonhando com divindades arcaicas que sobreviveram ao império do capital

Assucena desperta, Larissa desperta, Alice desperta

já são quase nove horas e ainda é maio

ainda estamos no mais íntimo recanto do acinzentado coração de maio...


nuno g.
Lima, 11 de maio de 2025.








terça-feira, 6 de maio de 2025

poema de maio

 para Alice & Assucena,


vocês vêm de onde vem a poesia

de onde vem o fogo, a tristeza, o medo e o amor

vocês vêm da terra onde brincam palhaços sonâmbulos

& bailarinas entorpecidas

nada recordo que seja anterior a vocês

nada me atravessa que não tenha sido atravessado antes por seus olhares

minha tristeza, meus medos, meu fogo e meu amor lhes pertence

assim como minha devoção e minha fúria

assim como tudo o que em mim é promessa e horizonte

ou qualquer crença que tenha resistido à ironia e ao ceticismo

tudo seria cinzas se vocês não estivessem aqui

viemos de longe

como o sol, a lua e as estrelas

como os palhaços sonâmbulos e as bailarinas entorpecidas

como a tristeza, o medo, o fogo e o amor...


nuno g.

Santa Beatriz, 06 de maio de 2025.


sábado, 12 de abril de 2025

haiku II

para Eliana,


lua-cheia sobre a avenida

no espelho

o eco de um sim abraça o eco de todos os nãos


Lima, 12 de abril de 2025.


sábado, 5 de abril de 2025

haiku

 para Lari,


um vento frio varre a cidade

meia-lua no céu

a criança entrega ao velho a flor sem-cor dos medos imaginários


Lima, 05 de abril de 2025.


sábado, 8 de março de 2025

à espera de má notícia

para Maria Zilá Lima Gonçalves,

(in memoriam)


Também de coisas desastrosas somos feitos: nós e o mundo.

Dona Antônia sonhou com aipim e comentou: aipim é vela!

A morte à espreita na margem do rio:

a morte e outras serpentes sonâmbulas.

Temos que estar preparados para tudo: o mundo e nós.


Alguns aipins cozinhavam e outros ficavam duros: nisso o espírito do sonho.

E as lágrimas desceram dos olhos vermelhos de Hermenegildo.

Seu aceno quase não escondia o ferimento.

Aos pés de minha avó, em sua memória e presença.

Encostei delicadamente a cabeça e morri mais uma vez.


A noite trouxe a calmaria das unhas ainda cheias das areias com que enterraram o ódio.

E no céu uma lua que olhava minha cabeça aos pés de minha avó.

A noite trouxe a certeza que as certezas não existem.

E a estrela que ensina que enterrar importa tanto quanto desenterrar.

Uma vela é mais que suficiente para nos recordar a relevância do escuro.


nuno g.

Toróró, 01/08 de março de 2025.




sábado, 22 de fevereiro de 2025

um chá com meu pai

Meus pais morreram na mesma estação do ano.

Embora não houvessem estações na cidade da morte.

O calendário de folhinhas na loja de meu avô marcava o mesmo dia, o mesmo mês.

Embora não houvesse mês nem dia na cidade da morte.

O homem que apertou o gatilho sabia que ele era meu pai.

                                                    sabia que guardávamos o mesmo nome.

Embora tenha sido morto na cadeia antes de minha chegada.

Não pude olhar nos seus olhos.

Nem escutar sua voz.

A justiça o condenou como ladrão de antiquários.

Talvez fosse só mais um pistoleiro entre tantos.

Quem o matou deveria saber que seu silêncio sepultaria a verdade.

Embora não haja verdades na cidade da morte.

Hoje é sábado.

Os pássaros cantam, o rio corre.

Embora não haja pássaros, sábados ou rios na cidade da morte.

As mãos da minha mãe me ensinaram o caminho da cordilheira branca.

Embora não haja mãos, geografia ou cores na cidade da morte.

Um vento frio atravessou minha pele de vidro.

E quase apagou a vela que acendi lá fora.

Na cidade da morte existem muitas velas acesas.

Embora faça sempre muito frio e o vento sopre incessantemente.

O calendário de folhinhas na loja de meu avô segue aferrado à parede.

Sobreviveu à sua morte e às reformas do prédio.

Embora não haja prédio, nem calendário, nem morte na cidade das memórias.

Hoje é sábado, mas é também o dia fora do tempo.

O homem que apertou o gatilho está aqui.

Embora não tenha olhos nem língua e não saiba mais distinguir em seus sonhos minha face.

Na cidade da morte existem muitos como ele.

Condenados pelos vivos que se recusam a conceder-lhes um copo de água.
                                                                                       
                                                                                           um naco de pão.
                               
                                                                                           uma vela acesa.

Meus pais morreram na mesma hora.

Embora não existam horas na cidade da morte.

Uma sucurujuba saiu do mundo das águas e nos serviu o chá.

Na cidade dos sonhos existem muitas serpentes que habitam às águas.

Nessa cidade meus pais nunca morreram.

Embora não haja nenhuma memória deles no cântico verde das serpentes. 


nuno g.
Toróró, 22/02/25.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

as joias ou permissão e passagem

terceira tarde de visitação ao inferno:

eis que de meus olhos correram águas de rios antigos

e não houve palha suficiente à arquitetura do ninho de febre e placenta


fixei uma aurora onde toda ternura era ausência:

eis que os vapores de uma perambulação antiga

se fizeram sentir ao entardecer


minha avó guardou as joias por anos

depois de sua morte tocou à minha tia-avó a função

até que Tempo decidiu-se por apagá-las do pesadelo


última noite no inferno:

eis que a umidade se fez memória e amor

e a nudez das crianças povoou os jardins do paraíso


uma carta, uma bala, o corpo de meu pai debulhado ao rés-do-chão

e um silêncio erguendo-se entre os escombros


uma carta, uma bala, o corpo de meu pai debulhado ao rés-do-chão

às almas o vinho que é sangue de uma arcaica teoria sobre o perdão


uma carta, uma bala, o corpo de meu pai debulhado ao rés-do-chão

e uma cor sem-nome sobre um nome que carrega em si todas as cores


amanhã visitarei o inferno outra vez

não irei só e não sei se voltarei

talvez Tempo se decida a apagar o pesadelo

ou ao menos dê passagem à voz de quem me acompanha

e permissão para que eu possa ver as joias preciosas do mistério da resignação


espero que haja chuva quando meus pés voltarem a cruzar as fronteiras da imensidão

e que os vaga-lumes não desistam de seguir acendendo escuridões

nuno g.
Toróró, 20 de fevereiro de 2025

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

sonhos da vida toda

sonhei com um banquete, um banho de rio e com pessoas insuportáveis

(muitas pessoas insuportáveis)

sonhei com cárceres onde eu ficava aprisionado por engano

e amaldiçoei despertar antes de saber como era minha vida de prisioneiro

sonhei com perseguições implacáveis, assassinatos se desdobrando em outros assassinatos

e com a carta do diabo, da morte e do enforcado

sonhei com todas as mentiras que me soterraram a infância

e com a sucessão de pessoas insuportáveis que se satisfaziam sendo ainda mais insuportáveis

atravessei todos esses sonhos como um fantasma atravessa uma parede de vidro

sabendo que do outro lado da redoma existe um jardim povoado de pássaros

onde fascistas não conseguem respirar

onde mentiras não florescem

onde o silêncio só se rompe quando a palavra é necessária

sonhei milhares de sonhos se transmutando em poemas

sonhei com todos os passos do longo caminho da mediunidade

sonhei com o amor e a promessa e a chuva

sobre os campos de ervas e pedras sonâmbulas que guardam a história do mundo

sonhei com as mãos da insônia insistindo em agarrar a fumaça dos cigarros

e com os poemas eróticos que nunca cheguei a escrever

sonhei com o parque rio branco, com a praia de iracema antiga

e com navios de guerra e pirataria

sonhei com ondas esverdeadas como o lodo ou a esmeralda

e despertei na primeira noite de lua cheia depois do alinhamento dos planetas

era quase-março e eu estava quase-vivo

raios de sol escorriam do meu nariz

e a esperança verde seguia passeando solitária na cozinha de minha casa

sonhei com Cruz & Sousa, Augusto dos Anjos e Álvares de Azevedo

e fiquei extático ante o fogo como se nada na vida fosse outra coisa que não matéria sonhada

sonhei com punks caminhando na estrada

e com o suave movimento de uma relva que amanhece antes mesmo de nascer

antes mesmo de nascer...


nuno g.

Toróró, 11 de fevereiro de 2025.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

haiku

suicídios não prescrevem

assassinatos idem

chovem borboletas sobre o rio azul


nuno g.
toróró, 10 de fevereiro de 2024.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

eclipse apócrifo II

É muito difícil ver através da neblina.

Ainda mais quando somos neblina.

Quando não há distinção entre nós e a névoa.

É muito difícil saber quando começou o hoje em que estamos.

Ainda mais quando somos em tudo saudade do futuro.

E habitamos a distância de tal maneira que nada nos separa do nada.

É muito pouco provável que sejamos capazes de resistir.

A bandeja dos vícios é demasiada atraente.

No esbanjamento existe um desejo de perpetuação que seduz.

Assim como no ascetismo ou na tristeza que se apresenta como monotonia.

Todas as janelas estão abertas.

Ouço cães, pássaros - ouço a lua.

É muito difícil escapar ao som da neblina.

Ainda mais quando esse é a música que escapa de nosso corpo.

E quando não há mais distinção possível entre nosso corpo e a terra.

Só nos resta essa fé fraca e fugidia que acende as maiores tempestades.

É muito improvável que possamos chegar a ver através da neblina.

Mas sem essa esperança o envelhecimento seria somente torpor.

É muito pouco provável que sejamos capazes de saber onde estamos.

Mas sem essa ilusão toda lucidez seria completamente impossível.

E estaríamos verdadeiramente perdidos por toda a eternidade.


nuno g.
Toróró, 04 de fevereiro de 2025.

eclipse apócrifo

Os mortos não envelhecem.

Os rios também não - e foi um rio que me disse isso.


(toda palavra é crueldade)

todo silêncio também


A lua é um espelho.

Quem me ensinou a língua dos dragões não está mais aqui.

Talvez nunca tenha estado.


Minha sede amanhece todas as noites.

Uma parte de mim nunca dorme.

A outra é sono contínuo.


Existe uma árvore do outro lado da cicatriz.


nuno g.

toróró, 04 de fevereiro de 2025.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Hexagrama 47

rezei à pedra, rezei ao fogo, rezei às plantas

rezei ao sol, rezei à lua e às estrelas

e no final só restou a memória 

do dia em que vi os mortos olhando o pôr-do-sol em Cruz das Almas


rezei à herpes e ao desconhecido

rezei à noite e aos anciãos das trevas

rezei, rezei, rezei

e o meu corpo suou como um cálice de sangue

vi coisas que não consigo narrar

vi coisas que não posso narrar

e no final só restou a vontade de morte e silêncio

reinando sobre todas as coisas



rezei ao lodo e à lama

e no final só restaram os suicidas olhando o sol se pôr no litoral leste


nuno g.
29/30 - janeiro, 2025.

domingo, 12 de janeiro de 2025

domingo de chuva

 para lari,


"meu passado era um rio maldito"

William Seward Burroughs



Todos os dias penso na morte.

Quando chove, quando faz sol, quando está nublado.

Todas as noites penso na morte.

Quando sonho, quando não sonho, quando não durmo.

O rio corre. O céu chora. A casa respira em silêncio.

Não estamos mais no deserto.

Tudo está povoado.

Abro as janelas, os gatos entram.

Esquento água para o café.

Atento a cada gesto que amanhece.

Reúno os fragmentos dos sonhos que me povoaram.

Seu pai, Luiz Nova, Clóvis e uma extensa praia mexicana.

Tudo se move o tempo todo.

O que aproxima e o que afasta são um só e o mesmo impulso.

O silêncio sobe e desce a escada de madeira.

Como se fosse um gato.

Como se fosse possível que todas as coisas fossem outras.

Como se fosse desejável que todas as coisas fossem de outra maneira.

Tempo significa ação incessante, movimento perpétuo.

Alice e Assucena brincam.

Perseguem as co-cós em cada janela.

Voltei a sentir medo no meu coração.

Voltei a sentir medo nas minhas carnes.

Sigo sentindo o estranho e fascinante desejo de abandonar este mundo.

Os primeiros ruídos amanhecem.

Reúno os fragmentos de todas minhas frustrações.

Alice arrasta a mala no quarto.

Garfield procura lagartixas na varanda.

Todo o tempo penso na morte.

Na vida que há na morte.

No que a existência da morte nos obriga a fazer.

Hoje é domingo.

Chove e ainda sonho.

Embora saiba que todos os sonhos são mesmo feitos de sexo.

Agora me interessa apenas o que não é sexo no sonho.

Ou seja: o que não é sexo no sexo.

O deserto ficou para trás.

Estamos pisando em terra úmida.

Mangue de terra roxa onde as crianças se lambuzam e se divertem.

Restou pouco, muito pouco, de mim desde que a gira iniciou seu movimento.

Senti vertigens, calafrios, pânicos indescritíveis.

Eles narraram meu corpo até essa manhã de domingo e chuva.

Foram podando tudo que não pertencia à árvore que sou.

Alice regressa a seu quarto.

Não sei o que faz agora.

Não sei se ler ou se voltou a adormecer.

Ouço a vozinha cheia de ternura de Assucena subindo os degraus.

Ouço cada gota da chuva que cai no telhado.

A Pina entra no quarto de Alice.

Penso na morte. Na minha morte. Na morte dos que amo.

Como tenho feito todos os dias.

Penso em tudo que a morte me obrigou a fazer.

Penso em cada poema que escrevi até hoje.

Penso no deserto em que nos encontramos.

E volto à certa praça de Feira de Santana.

Tenho um coco entre as mãos.

Você vomita.

Enquanto esperamos que qualquer coisa venha de qualquer lugar nos curar.

Talvez tenha vindo de nós mesmos.

Talvez tenha vindo das estrelas.

Talvez tenha vindo do fundo do mar.

Talvez, talvez, talvez...

Parece que essa sentença guarda o máximo de certeza que conseguimos tocar com as mãos.

Ou com a língua ou qualquer outra parte do corpo.

Deixo que a chuva toque meus cabelos.

Deixo que o domingo se infiltre em minha oração.

Reúno os fragmentos de deserto que estão aqui ainda.

E com eles vou tecendo os fios da morte em busca das máscaras da vida...


nuno g.

Toróró, 12 de janeiro de 2024.



quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

errata à posteridade: sobre Tempo e Ansiedade

Perambulava pelas escaldantes ruas de Cruz das Almas no último dia do ano

O sol reinava no céu como um dragão enfurecido

Quando encontrei o coveiro que agora virou jardineiro

Quando encontrei a cigana que segue sendo cigana

Trazia comigo o tinto carcamano de Fante

Que se misturava ao meu suor como a luz de uma estrela se mistura ao escuro da pedra

Enquanto o mecânico metia as mãos de graxa nas engrenagens do automóvel pirata

Em busca do lugar onde a água vazava

Lari sonhou com um rio inundando as casas

Lari sonhou com a fome dos condenados da terra

Sonhei com todos os descendentes de Edberto Gonçalves reunidos na hora da maré

Com os pés na areia e as faces abertas à brisa do mar do litoral leste

Os sonhos corrigem as distorções da realidade

As poéticas corrigem as distorções da historiografia

As ficções corrigem as distorções do cotidiano

Era já o primeiro dia do ano

E Lari crochetando um sonho de praia e verão

Alice desenhando e Assucena seguindo com os olhos as cismas do destino

O mecânico falava sobre o filho

Prestes a se formar em direito

E eu pensava no pai de Fante

E em todo o tinto carcamano que ele tomou na vida

A cigana fingiu não me reconhecer

O coveiro se ofereceu para voltar ao cemitério e cuidar da sepultura do anjo

Recebo uma mensagem da praia da Fortaleza em Ubatuba

E vejo dezenas de cearenses invadindo uma bodega sob o espanto do caiçara

E vejo Magui devorando areia salgada

E vejo Alice, Bené e Magui brincando e brincando e brincando por vários dias seguidos

Balanço a rede impulsionando o pé na parede

Embalando Assucena  

Rodopiando em torno aos meus próprios pensamentos

O ano finda, um tecladista provinciano toca no mercado de Cruz das Almas

As pessoas bebem, riem, se provocam

Tudo é sobre sexo, loucura e morte

Até mesmo o que não parece ser sobre isso

O nada só existe aos olhos de Deus

No meu sonho a única voz que se ouvia era a do tio Paulo

Ele falava sobre a fazenda Galileia e as ligas camponesas

E reproduzia longos trechos dos discursos de Julião  

Os sonhos corrigem a realidade

As poéticas corrigem as historiografias

As ficções corrigem o cotidiano

Eu pensava nos contos de Fante

Na delicadeza insuperável de Arturo Bandini

E no caminho amarelo que Ernesto me ensinou em seus últimos dias de vida

As agulhas de tricô são bem distintas às agulhas de crochê

O mecânico encontrou o vazamento

Trocou a peça e me cobrou 150 reais pelo serviço

O sol ardia e derramava fogo líquido sobre nossas cabeças

No meu sonho o mar da Lagoa do Mato seguia tão verde quanto sempre foi

À meia-noite vimos os fogos de artifício estourando lá no fundo do vale

Onde a cidade e as serpentes esperavam a passagem do ano para adormecer

Alice despertou cedo

Eu ainda pensava no conto de Fante em que o menino deseja se casar com a mãe

E em todas as coisas que conversamos ontem à noite

Sobre como seriam nossas vidas se outras coisas tivessem ocorrido

Assucena dormiu

Alice terminou mais um desenho

E Lari seguiu crochetando os fios que conectam os sonhos uns aos outros...

nuno g.
Toróró, 01 de janeiro de 2025.

memórias do Jaguar

Tia Neuza fugia da cozinha como o diabo da cruz.

A lembrança da criança despertando antes do sol para acender a lenha do fogão.

Assucena furou o pé no espinho da jurema.

Encontrei o coveiro e a cigana no último dia do ano.

Entre nós existe um fio de prata tênue e viscoso.

Entre nós existe um silêncio que nos liga.

Um leito de rio e muitas margens desdobráveis.

Os passos de Alice subindo a escada.

O pássaro laranja sobrevoando a manhã.

Lari tricotando um sonho de praia e verão.

O sol ardendo como os olhos de um dragão.

Meu tataravô era pirotécnico.

Meu bisavô era maçom.

Meu avô era espírita.

Meu pai era antiquário.

Eu sou só uma ponte entre o nada e o nada.

Entre uma ausência e outra.

Entre o mundo dos mortos e a morte do mundo.

Havia muito que dizer dos sonhos destes dias.

Mas a presença do coveiro à minha frente no último dia do ano os borrou da consciência.

Cruz das Almas é o lugar mais parecido com São Bernardo das Éguas Russas que existe na terra.

nuno g.
Toróró, 01 de janeiro de 2025