A miséria apodrece a alma humana. O trabalho degrada o corpo e o espírito. É quase primavera: o frio já nos abandona e caminha em direção ao outro lado do mundo. Sonhei com uma cidade azul dentro de uma cidade vermelha construída dentro de uma garrafa verde. As livrarias continuam sobrevivendo nos bairros ricos com suas cafeterias europeias. Ontem a lua estava cheia e radiante. Hoje um gato caça um pássaro com a delicadeza que só os gatos, essas pequenas onças, possuem. As flores já surgem na cidade. Recordo dos livros de pirotecnia, do meu tataravô, que foram queimados após sua morte. Recordo dos livros sobre a maçonaria, de meu bisavô, que também foram queimados após sua morte. Será mesmo a crônica um gênero menor? Uma maneira insuficiente de dizer o indizível? Descreio. Já sinto saudade do frio que parte, mas não posso segui-lo: temos destinos distintos. Uma senhora que veste algas roxas me fala de sua infância como se fosse um céu de maio. Certas brincadeiras de Tempo são como astúcias de animais urbanos, têm mais a ver com a sobrevivência que com a necessidade de entendimento. Antes de ontem vi um filme africano maravilhoso. Nele uma mãe estapeava a filha e lhe dizia: quando eu cortar meu braço para que você não passe fome finalmente entenderá que sou sua mãe. E um outro personagem falava assim: a democracia é como macaxeira importada, apodrece rápido. Nem sempre é possível ser sutil. A fome é um fato. A fome está acesa no horizonte da humanidade. A fome é um fardo. Carpinteiro do universo e Tente outra vez são duas canções que podem nos ajudar em tempos difíceis. Hoje o sol acordou mais cedo e dentro dele vibra uma tempestade cheia de promessas e milagres. São Miguel está na terra outra vez. São Miguel está na mata. São Miguel está nas águas. O trabalho degrada o corpo e o espírito. O trabalho produz e reproduz miséria. O pássaro escapa à fome do gato. Quem tem fome mata por uma migalha. Quem não tem mata por prazer. Os indiferentes se matam sem pudor. Tudo que nos é alheio nos pertence de outra forma, eis uma maneira interessante de inventarmos um caminho. Quando tio Joãozito, esse deus asmático que me protege, morreu, ainda não sabíamos que em Tenochtitlán se come pizza com feijão: isso alteraria pouca coisa, mas certamente teria feito com que ele sentisse algum prazer ao comer pizza. Agora é tarde, ele está morto e enterrado no cemitério de Russas. As águas da Caiçara lavam seu corpo como lavaram o de minha mãe, o do meu avô, o da minha vó. Não sei onde enterraram meu tataravô e isso me causa insônia e desconforto. Meu corpo está novamente coberto com cera de carnaúba. Tio Joãozito, carteiro e mulherengo como Bukowski, morreu antes de ir a Portugal encontrar com sua filha. A crueldade da vida é um bem compartilhado com todos. No filme africano uma criança inventava cata-ventos usando livros escolares de física. Meu bisavô tentou inventar um moto perpétuo no Vale do Jaguaribe. A criança africana conseguiu, meu bisavô não. Será mesmo a crônica um gênero insignificante? Gostaria que o frio não fosse embora. Gostaria que o frio me levasse com ele. As duas coisas são impossíveis, mas são as coisas impossíveis as que movem verdadeiramente o mundo. As que deslocam o que precisa ser deslocado. Cada vez mais as tiranias prosperam e se espalham como sementes malignas pela terra. A democracia é como macaxeira importada, apodrece antes da hora. Minha mãe fez mais que a mãe do filme, cortou a própria alma para que eu sentisse sede. A vejo sorrindo na lua. Iluminando o gato que caça um pássaro nos últimos dias antes da primavera. Sonhei outra vez com o rio Apurímac. Havia montanhas de ossos em seu leito. Um dia Ogum se fez senhor do meu corpo em plena margem do Jaguaribe. Vi os ciganos dançando e bebendo à sombra da oiticica. E segui meu caminho. Sem nenhum temor e com a certeza de que atravessar infernos é muito mais interessante que morrer antes da hora. Os livros de faroeste e espiritismo da biblioteca do meu avô nunca foram queimados. A filha do tio Joãozito desapareceu na península ibérica. As águas da Caiçara não lavaram o corpo de meu pai. Talvez a crônica seja o gênero mais adequado para estampar a tristeza que resta quando nada mais tem nenhum sentido.
nuno g.
7 de setembro de 2025.
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