segunda-feira, 20 de março de 2017

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Ontem foi domingo e depois do churrasco fui ao parquinho da faceira na atividade das crianças. Tinha um monte delas lá. Pintando a parede com spray. Sendo pintadas. Ouvindo a contação de estórias. Correndo. Bagunçando. Testando os limites. Todos os limites. Os delas. Os dos pais. Os do mundo. Alice não estava lá. Eu não havia tomado sequer um gole de álcool. Já conheço todos os parquinhos da região. Gosto disso. Gosto de ver Alice brincando. E quando ela não está comigo simplesmente gosto de imaginar como ela estaria brincando se estivesse ali. Os domingos são ainda mais vagarosos de passar quando Alice não está aqui. Os domingos são sempre vagarosos. Mesmo com churrasco, praia ou parquinhos. Mesmo quando se decide encher a lata e esquecer de tudo. As coisas todas já não me interessam muito. Pago minhas contas, vou aos parquinhos e deixo as memórias tristes fluírem pelo esgoto dos domingos.

nuno g.
Cachoeira, 20 de março de 2017

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Noite de sábado. A ressaca da vida toda chutando meu fígado. Dor na nuca. Dor nos ombros. Dor no tendão. O dia todo choveu. Raios, relâmpagos, trovões, uma trepada e uma soneca. Nada mais tem muito sentido. Nem esse rio, nem essa cidade, nem essas pessoas todas que aparecem na minha frente. É difícil seguir em frente assim. É difícil recuperar toda a energia que jogamos nas ruínas. É difícil ficar em casa ouvindo Lou Reed cantar perfect day comendo macarrão com frango sem lembrar da vida que poderia ter sido. Pelo menos a campainha está quebrada e posso ficar tranquilo que ninguém tocará essa porta. Ao menos por essa noite.

Às vezes saio de casa pra cabeça não explodir. Muitas vezes na verdade. Irreparável erro é não matar as pessoas que nos toca matar. Mandar pro inferno quem temos que mandar. Isso sim não nos será perdoado no dia do juízo final. Deixar certos filhos da puta andando por aí como se nada. Cada um de nós deveria ser o anjo exterminador. Talvez o mundo se tornasse algo melhor. Ou não. How do you speak to an angel. Phoda-se.

nuno g.
18 de março de 2017.

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É tudo muito estranho. Demasiado cinzento tudo. Andamos andamos andamos e nada surge no horizonte. Nenhuma cidade. Nenhum rio. Nada de novo na paisagem. As mesmas colinas, as mesmas palavras, o mesmo ritmo. O trem caminha para o abismo. Isso é irreversível. Assim como nós caminhamos pra morte. Joelhos ensanguentados no chão. Reverência. Agradecimento. Tédio. Náusea. Apatia. E essa leve sensação de que todas as vísceras estão definitivamente fora de lugar...

O mundo deu outra volta. O mundo dá muitas voltas. Algumas a nosso favor. Outras contra. Os fracos ficam esbagaçados pelo meio do caminho. Simplesmente é assim que a coisa toda funciona. Nada além disso. Ou você é forte o suficiente para desfrutar das ondas favoráveis e sobreviver às que desabam sobre você ou você é só uma vítima de nada disfarçado de ser humano. Não há muito o que fazer além disso. Segunda-feira de manhã nada parece muito misterioso nem enigmático. Tudo está claro. O horizonte está limpo. O mundo vai seguir dando voltas. Algumas a nosso favor outras contra nós. Só nos resta ser mineral o suficiente pra não ficar pelo caminho. Choramingando como um imbecil que desperdiçou todo o amor e viu escorrer entre os dedos todas as oportunidades de atingir a perfeição. Acordo. Abro os olhos. E penso. O que é realmente importante agora? E isso é tudo. O resto é ignorância e escuridão. O resto é egoísmo. O resto é desprezo, cinzas e a infinita estupidez humana.


nuno g.
Cachoeira, 06 de março de 17.

quarta-feira, 8 de março de 2017

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ei garoto não era você que sempre estava caindo fora e que sempre se ligava nas pessoas que estavam caindo fora e que simplesmente achava que tudo aqui dentro estava demasiado apodrecido e sem vida e que todo esse mau cheiro era simplesmente insuportável e que não havia nada mais que se pudesse fazer do que sair por aí e perambular tentando mover os círculos concêntricos de sua própria loucura enquanto tratava de demolir todos os pontos-de-vista que surgissem na sua frente e toda e qualquer certeza que se apossasse da sua mente ou de seu coração... Ei garoto, não era você que sempre se vestia de negro, ouvia lou reed e amava as ruínas? Não foi você que escreveu aquele poema que falava sobre flores roubadas, primeiro milhão de amores, feridas, enigmas, maconha e um certo concerto de Patti Smith?  Acho que lembro bem de você garoto: andando pelas ruas, fumando um cigarro e cantarolando i wanna be your dog. O que aconteceu com tudo isso garoto? Por que estás a chorar tão copiosamente na calçada dessa igreja? Levante a cabeça. Caia fora outra vez. Que meteoro destroçou tudo aquilo? Ao menos vejo que você ainda se veste de negro, não cortou os cabelos e ainda tem esse olhar de fuzil. Mas se percebe que a vida foi dura demais contigo. Se percebe que teus velhos sonhos estão todos arruinados e que te faltam forças para reconstruir tudo outra vez. Você soube que dylan recebeu o nobel de literatura? Você ainda escreve poemas? Como deixastes te fazer tão refém? Tão catatônico agora? Levanta garoto. Olha outra vez o horizonte. Sacode essa névoa impenetrável. Abandona essa cara sombria. Vamos garoto. A vida segue apesar de tudo. Apesar de qualquer coisa. Apesar de toda a merda que as pessoas fazem com aquelas que elas realmente gostam. O que passou com aquele garoto que falava sobre a não-interferência e que fazia ninhos com gravetos recolhidos nas beiras das estradas? Ei garoto esse não é você, esse não parece você, esse é ainda mais estranho mais triste e mais autodestrutivo do que você. Apesar de tudo nunca conheci ninguém que tivesse tanta facilidade de tocar as nuvens com as mãos como você e agora te encontro aqui chorando nessa calçada de igreja e me pergunto sobre o que realmente aconteceu contigo durante esses anos que não nos encontramos. Aceita um cigarro? Vou buscar um café pra nós... ei garoto você segue com essa cabeça baixa! Levante essa cabeça – é simples, você sabe melhor que qualquer outro, você também sabe exatamente o que está acontecendo – é simples, ela quer lhe matar, ela precisa lhe matar, não existe outra maneira dela crescer, você pode entender isso facilmente, nada cresce sem matar alguma coisa, ninguém cresce sem matar o que ama e o que amamos sempre termina por nos atacar ferozmente, você sempre soube disso garoto, erga a cabeça, respire fundo, olhe para o céu e siga – você sabe que não pode morrer agora, você sabe que a estrada ainda é sua companheira, você sabe que tudo termina mesmo escorrendo pra algum esgoto, não se deixe abater, não se deixe esmorecer, não se renda tão facilmente, ainda existe oxigênio suficiente na atmosfera, você ainda tem um coração, você ainda não perdeu toda a fé. Lá fora tem um coelho mágico te esperando pra brincar um pouco mais nos jardins do paraíso...

nuno g. 

Cachoeira, 05 de março de 17.

sob a flauta de pan

hoje é domingo: dia de cinema!
bernardo acordou querendo doce-de-leite
desejando que o mundo fosse feito de sorvete
você acordou querendo carinho
como se soubesse que hoje é domingo de partida
eu acordei com saudade do sonho
sem vontade de acordar
suco de maracujá, bolachas de centeio com manteiga
café e espinho atravessado na garganta
saudade da vida que poderia ter sido
certeza de que as horas passarão devagar até as pipocas...

nuno g.

cachoeira, 05 de março de 17.