quinta-feira, 3 de março de 2016

: poemas pós-apocalipse

a posição vantajosa dos ameríndios reside no fato de que eles conheceram o apocalipse no século XVI e agora, quando nossa modernidade solar entra em declínio e vislumbra seu próprio apocalipse, esses povos estão saturados de experiências que lhes permitem gozar plenamente as delícias de uma vingança que cinco séculos de espera tornou ainda mais doce que a fruta paradisíaca.

nuno g.

se ainda fossem possíveis cartas amorosas

para marialice,

querida filha – eu estou morrendo
sim, estou morrendo:
a morte caminha a passos largos em minha direção
não posso evitar vê-la colada em meu rosto a cada vez que me olho no espelho
– será por isso que cada vez mais me recuso a olhar os espelhos?

querida filha – é muito pouco provável que eu esteja aqui quando você fizer quinze anos
estou morrendo: a velha senhora caminha comigo, guia meus passos, aperta meu estômago
e não há nada que se possa fazer sobre isso
talvez as minhas mãos de passarinho possam atravessar o umbral alguma vez
tocar tua face teus cabelos tua imaginação
talvez minha boca consiga permissão para vir te beijar alguma vez
talvez algum verso que escrevi ilumine tua consciência
tua saudade teu rastro brilhante por esta terra escura

filha, a saudade que sinto de ti inflama minha amargura
torna ainda mais aguda a sequidão da terra arrasada onde semeei o amor que em ti se fez carne
filha, quando não houver mais nenhuma festa pra dispersar a mágoa e o ressentimento
quando não houver nenhuma distração para ocultar o apodrecimento litúrgico das flores
quando o sol incendiar o rio onde as onças saciam a sede
quando meu corpo for só o alimento dos vermes e das árvores do campo santo
ainda assim estarei ao teu lado
te banharei mais uma vez com chá de ervas o corpo
te alimentarei com legumes cozidos ao vapor
te ensinarei a sabedoria das sementes que devorei na calmaria das tardes

querida – estou morrendo e nada pode ser feito contra isso...

nuno g.

Cachoeira, 24 de janeiro de 2016.

a visita da cigana

hoje uma cigana me visitou
leu minha mão e me desafiou:
me fale sobre as asas das pedras
               sobre um amor que seja gozo de foice & flores
atônito, procurei em vão o deus dos espelhos
e ele me soprou um punhado de terra nos olhos
banhou meus ombros
acariciou meus pés
& extraiu ossos líricos dos meus cabelos...

nuno g.

Cachoeira, 29 de janeiro de 2016.

regresso da mais longa das viagens

também o tempo morre e como todos os mortos exige sua sepultura
estive na trácia na índia no paquistão
buscando um chão para esse intervalo miserável de tempo
perambulei maltrapilho e insone carregando esse fardo
esses farrapos de luz e cultura e amor e baba de vira-lata
buscando um lugar adequado para depositar esses restos de vida
que na íngreme subida do himalaia
iniciaram sua transmutação em lixo radioatômico
e ameaçaram a estrutura saudável de minhas células
estive em persépolis na babilônia e em creta
implorando aos filhos de zoroastro um pedaço de cosmos
para enviar esses satélites paralíticos e deformados
que no auge de uma combustão espontânea
ardiam sobre meus ombros
como uma sarça silenciosa e infeliz
irradiando uma poeira fina e asquerosa
que nem bem tocava a pele ou qualquer outra superfície
se transformava em vorazes vermes insaciáveis
que a tudo corroíam com uma fome febril e desmesurada
no meu encalço sempre o hálito da morte
bafo de cálcio e amianto
promessas de vinganças nada doces
rastejando como uma entidade decaída e maquiavélica
na órbita daquele sol que um dia habitou com plenitude a minha face
estive no cariri em olinda e no rio das onças
procurando um palmo sagrado de terra prometida
onde enterrar esse defunto estirado nessa rede
que me tocou carregar sozinho
que transformou minha coluna num tobogã
que provocou dores corporais intraduzíveis
e acelerou o processo natural de envelhecimento dessa carcaça
estive fora por muito tempo
agora estou de volta
trouxe comigo uma das luas de saturno
trouxe comigo uma cor verde típica de uma alga marinha em extinção
trouxe uma nova e estranha serenidade
que encheu de perfume a mochila anteriormente cheia de esterco e solidão
trouxe comigo uma fita cassete com canções jamaicanas sobre a liberdade
com uns poemas novayorkinos sobre magia & perda
com uma linda loira junkie alemã cantando a mais aprazível de todas as estações
cheguei nessa cidade em estado meio sonâmbulo
e andei e andei e andei por essas ruas antigas de calçamento irregular
como um fantasma que mal termina de adentrar o inferno
e percorri todos os caminhos desse povoado de sombras e loucos
como se nunca estivesse saído daqui
como se nunca tivesse conhecido o oriente
como se nunca houvesse existido nenhum regresso
alguns me reconheceram apesar do estado deplorável de meu espírito
e seus dedos e seus olhares e suas mórbidas curiosidades
se esticaram em minha direção
denunciando a deterioração de minhas vestes
o desânimo de minha alma em frangalhos
e o nonsense de meus gestos todos
alguém não hesitou aproximar-se
entregou-me algumas flores
visivelmente mal tratadas pela ação implacável do sol dos trópicos
e me ofereceu um beijo simples e cheio de amor e ternura
em seguida se retirou com passos seguros
com passos de quem sim há muito aprendeu a caminhar só na noite escura...
 
nuno g.

Cachoeira,02 de março de 2016.

estadia em éfeso

para vossa desgraça me transformei no astrônomo
que tomou para si a missão
de calcular a exatidão de todos os teus erros
para vossa agonia me transformei no mago do inframundo
que por desconhecer qualquer noção de compaixão
entregou teu sangue à sede do povo da rua
para vossa infinita infelicidade me converti no desorientado oráculo
que lhe ofertará por toda a eternidade
as mais equivocadas previsões...

nuno g.

Cachoeira, 02 de março de 2016.

o banquete da terra arrasada

quando toda a terra era um só amontoado de pedras
e gaia se resumia a uma ilha de única cor
um inseto de antenas compridas e exuberantes
cometeu a ousadia insensata de sonhar as imagens aquáticas
aprisionadas atrás do espelho
primeiro ouviu-se a voz de uma lagarta de fogo
narrando a aventura dos homens escondidos dentro do cavalo de madeira
descrevendo em detalhes os recôncavos de um labirinto construído para servir de cárcere a um monstro
em seguida se apoderou de toda a atmosfera o uivo agudo de uma caverna tão ou mais antiga que a terra
e finalmente se pode ter a certeza que aquele senhor de cabelos longos
que gostava de andar por aí com andrajos esfarrapados
havia sido realmente crucificado
e com ele todo o cortejo das noções que integravam a infame caravana do amor à humanidade...

nuno g.

Cachoeira, 02 de março de 2016.

memórias do exílio – ou ainda sobre aqueles tentáculos do ostracismo...

o asco da última despedida foi vagarosamente cristalizando
até se transformar numa delicada estrela de açúcar
que por algum mistério astrofísico
despencou do céu tirano
e se transformou no mais precioso fóssil
daquele magnífico arrecife de corais
que delimita a fronteira extrema do mar morto

nuno g.

Cachoeira, 02 de março de 2016.

a amargura dos assassinos de atahualpa: faroeste da finitude

quando o ouro dos tolos
depois de asfixiar todas as tentações que afligiam santo Antônio
se transformou em sangue e desceu a ladeira da montanha
o que se viu foi um rio vermelho e estéril
desembocando numa praia suja e sem vida
e nessa última paisagem pós-apocalíptica
o espectro da sereia de outros dias
encontrou a morte
nos braços cruéis do insano são Thiago

nuno g.

Cachoeira, 02 de março de 2016.