terça-feira, 30 de julho de 2019

A capoeira do Gomes ou regresso ao jardim dos homens comuns


Acenderam um primeiro fogo na capoeira atrás da serra. Nenhum deles sabia o nome exato daquela capoeira e a batizaram como sendo a capoeira do Gomes, era a marca do atum em lata que lhes serviu de primeira refeição naquela clareira onde fizeram aquele primeiro fogo e passaram aquela primeira noite sem nada que os separasse de um céu estrelado e infinito e misterioso e enigmático e cada um deles àquela noite pensou em tudo o que tinha vivido até então e em cada sentimento que lhes tocara sentir ao largo de suas vidas antes de finalmente chegarem àquela clareira e acenderem aquele primeiro fogo e passarem a noite em claro olhando aquele oceano de estrelas e todos ali sabiam que aquela não era uma simples noite qualquer como todas as outras e todos ali sentiam no mais íntimo de suas vísceras e entranhas e músculos e ossos e veias e dentro mesmo da gordura de seus tutanos e dentro de suas próprias medulas que nada mais seria como antes e todos olhavam em silêncio profundo e inesgotável aquelas chamas daquele primeiro fogo e todos pensavam com seus corações contritos e fervorosos que daqui a pouco o sol iria nascer e esse não seria um nascer do sol qualquer como todos os outros dias de sol que viveram em suas perambulações secretas pelos recônditos abismos e pelas crateras insondáveis pelas quais passaram nesses anos todos em que estiveram vagando por sobre essa terra e pensavam que nunca souberam nem chegariam a saber por quê raios de coisas vieram parar aqui neste planeta a carregarem consigo essa estranha veneração pelos abismos e pelo verde das folhas e pela alegria dos bichos e pelos sonhos e todos os mundos loucos que se abrem e se revelam nos sonhos incompreensíveis que todos nós carregamos conosco e as legiões de fantasmas que nos acompanham em longos cortejos que emergem dos tempos passados e dos tempos anteriores aos tempos passados e dos tempos anteriores a esses tempos anteriores trazendo consigo estandartes com símbolos tão antigos que nada na memória daqueles homens lhe permitia capturar o sentido que tiveram algum dia para os ancestrais de seus ancestrais que os gravaram em couro pelos campos abertos destes sertões e pelas várzeas que separam estes sertões do mar esverdeado e das dunas de areias brancas e das falésias avermelhadas e dos urubus bailarinos que se alimentam de peixes que a ressaca do mar vomita nas areias da praia. A noite foi fria e aquele primeiro fogo foi bem mais que providencial, ainda que todos eles estivessem absortos o suficiente em seus próprios transes e mergulhados com tal intensidade num ritual pessoal de rememoração que em nada lhes atingia o frio e o fogo lhes servia mais que qualquer outra coisa de guia e condutor na longa viagem pela teia de ciclos infindáveis de mortes e nascimentos e outras mortes e outros nascimentos e outras mortes e mistério e sofrimento e lama e por tudo o mais que parecia definitivamente perdido e oculto na passagem inexorável do tempo e agora sim eles entendiam que o tempo guardava sim suas dobras e nessas dobras repousavam muitas sementes de coisas que até aquele momento pareciam esquecidas em algum insólito rincão da vasta e efêmera eternidade em que suspenso, como uma jangada do litoral leste da província do Siará Grande, se encontrava o ponto minúsculo e insignificante do efêmero instante presente. Ventou muito enquanto aqueles homens atravessavam com braçadas fortes as camadas sedimentadas de areias de águas e de tempos: as grandes porções geográficas de dor, mistério, lama e sofrimento com suas aprazíveis ilhas de alegria, gozo e serenidade. Ventou muito, mas ninguém deu nenhuma importância a isso. Estavam todos em transe e quando o sol os arrancou com violência do transe em que estavam já não eram mais os mesmos. Tiveram que trabalhar duro. Levantar as choupanas, cobrir com palhas os abrigos clandestinos e varar as madrugadas recebendo as armas e os alimentos e as flores que lhes chegavam quando a escuridão se fazia absoluta e cobria tudo com os seus setecentos véus. Não se olhavam rosto-a-rosto, nunca. Não queriam saber nada uns dos outros, nada. Isso seria perigoso demais. Era a lei da guerra. Todos ali sabiam que na tortura toda carne se trai e não saber de nada era a única medida de segurança eficaz para evitar o infortúnio das traições. Esqueceram os próprios nomes e as datas dos próprios aniversários. Aprenderam a beber água diretamente do rio. Aprenderam a caçar, a pescar e a ler os sinais celestes. Foram descobrindo dentro de si mesmos uma nova humanidade e uma nova maneira de seguir caminhando sobre a terra e um novo jeito de sentir e de comer e de trepar e de executar cada gesto do corpo e de olhar e de assimilar cada cheiro novo e começaram a aprender a falar com as pedras e a escutar as pedras, a falar com o rio e a escutar o rio, a falar com a noite e a escutar a noite e começaram a entender que cada um deles era só uma ínfima parte de uma gigantesca teia de seres vivos interligados uns com os outros por uma enigmática e gigantesca teia de afetos e de energias e que tudo que acontecesse com cada um deles afetaria diretamente a todos eles e às pedras e ao rio e à noite e ainda assim sabiam que não deveriam olhar rosto-a-rosto nem saber o nome nem a data de nascimento nem qualquer outra coisa que seria caguetada sob a violência covarde dos instrumentos de tortura espalhados como armadilhas nas rotas incertas dos seus destinos. Comeram atum em lata e nomearam aquela capoeira com a alcunha de capoeira do Gomes. Acenderam um primeiro fogo e desceram em botes precários de madeira a cachoeira das eras e viram coisas de outros tempos e ouviram vozes de outras épocas e sentiram cheiros de mundos desconhecidos e devoraram alimentos que nunca haviam vistos e se deram conta que eram feitos de matérias e elementos que nem imaginavam serem passíveis de existência e caminharam em círculos em volta do segundo fogo e caminharam em círculos em volta do terceiro fogo e assim por diante até que perderam a conta e já todos os fogos eram um só fogo que ardia e queimava e transformava em pó tudo o que precisava ser reduzido à cinzas e eram muitas as coisas que clamavam por regressar ao seu estado originário, à sua condição de cinzas. Mas o fogo era também algo perigoso, sua fumaça poderia denunciar o acampamento, poderia trazer ao coração daquela irmandade os instrumentos metálicos de morte e de tortura, poderia trazer a ira e a impiedade e a cólera e o delírio dos obscuros. Os processos corriam seguindo ritos sumários, a cegueira e o rigor agiam de maneira implacável e as execuções se converteram em rotina e os deuses que cuidavam da justiça foram ofendidos, foram insultados, foram condenados ao exílio perpétuo e desde o exílio seguiram trabalhando e mantiveram vivas suas esperanças e redobraram suas forças e aprenderam coisas que não sabiam e se lembraram de outras que já haviam esquecido e viram vagalumes piscando e piscando e piscando e ouviram onças cantando e cantando e cantando e sentiram as gotas grossas da chuva molhando seus cabelos molhando suas pálpebras molhando as palhas de carnaúba com que cobriram o corpo e foram planejando centenas e centenas de pequenas e delicadas insurreições e foram acendendo milhares de centelhas de pensamentos de revolta e de angústia e zilhões e zilhões de faíscas de sonhos febris de amor e de serenidade enquanto as pedras deseducavam cada célula de seus corpos biológicos e cada sentimento de suas estruturas psíquicas e cada espécie do ecossistema próprio que servia de habitat às suas indevassáveis individualidades. Tudo isso se passou atrás daquela serra, dentro daquela neblina. O mês era o de agosto e chovia muito. A capoeira eu sei bem onde fica, mas não posso te levar lá. No meio dela, enterrado a sete palmos de fundura, tem uma lata enferrujada de atum. Isso é tudo o que me foi permitido te revelar hoje. Morte, mistério, dor, sofrimento, lama e o heroísmo e as pequenas glórias de homens comuns que decidiram abandonar tudo que já não fazia mais sentido e se reunirem em volta do fogo e escutarem as línguas da pedra e do fogo e que foram levados por essas línguas através de ruínas e de paisagens decrépitas e puderam assim sobreviver àqueles tempos de violência e de instrumentos metálicos de tortura e de traições gratuitas e de bizarras vulgaridades. Aqueles homens nunca mais seriam os mesmos. Eles estavam definitivamente alterados. Haviam sido arrancados de suas órbitas e agora dançavam com a grande serpente e agora sorriam como crianças e agora sabiam que não haveria mais volta e que o planeta seguia girando e que eles estavam soltos na via láctea e suas raízes e âncoras haviam sido decepadas para sempre pela guilhotina implacável do tempo. Isso é tudo o que me foi permitido te revelar hoje. Isso é tudo. Essa é a parte que me foi permitido te contar sobre o caminho de dor, sofrimento, lama e pequenas glórias e pérolas de serenidade que percorreram aqueles homens em sua longa jornada de regresso ao jardim dos homens comuns. Adiós.

nuno g.
Cachoeira, 30 de julho de 2019.

sábado, 13 de julho de 2019

Às divindades sequestradas


   Descumprimos as prescrições, esquecemos as oferendas, rompemos as interdições. O céu se fez vermelho de sangue e a água dos rios ferveu como nos primórdios da criação. Foi longo o caminho que levou os decaídos ao poder e durante este tempo nós estivemos festejando. Nos distraímos, deixamos de lado nossas abluções. Eles foram crescendo, ganhando espaço a pulso, infestando o labirinto de pulgas, piolhos e ratos. Quando acordamos já era tarde e não havia ar que não estivesse contaminado e então nos demos conta que nosso fogo estava apagado e enquanto dançávamos esquecemos de alimentá-lo. Dormimos em demasia, não acendemos as velas necessárias e deixamos o incenso mofar. Eles procriaram em tempo hábil, cumpriram todas as normas e os prazos, se apossaram do pouco que havíamos guardado e nos olharam com olhos de escárnio. Invocamos a chuva e a chuva não veio, desaprendemos a extrair o sal das pedras, dos vegetais e das águas do mar. Eles nos ofereceram risadas de escárnio. Foram apagando as luzes do labirinto até que tudo estivesse em completa escuridão. E nós, encurralados pela quantidade excepcional de feras baixamos as cabeças e fomos desfazendo nossos pactos antigos. Entregamos tudo. Nossas roupas, nossos alimentos, nossos utensílios de higiene e, por último, nossa preciosa dor. Eles queimaram nossas flores, escarraram em nosso jardim e pisotearam nossa horta. Eram muitos e traziam no semblante a memória da peste. Eles eram rudes e gravaram em nossa pele a memória da peste. Eles sabiam à morte e foram implacáveis com os nossos anos de descaso. Nossos membros estavam atrofiados e nada havia para colher nos campos que não havíamos semeados. A voracidade com que se apossaram de tudo não nos permitiu reação, estávamos atônitos e o único que nos restava era uma inútil catarse. Vimos os faróis de seus automóveis cruzando as avenidas. Vimos os faróis de seus automóveis se alastrando pelas ruas menores. E quando os mais violentos deles se espalharam como brasas pelos becos de nossas vilas e aldeias entendemos que já era demasiado tarde e não nos restava mais nada além das mãos com as quais escrevíamos palavras confusas e versos desconexos no ar gelado que escapava da boca deles e dominava a atmosfera. O preço da nossa distração estava sendo cobrado com mais juros e correção do que havíamos imaginado. A chuva não chegava. Nada crescia nos campos. A peste se propagava entristecendo todos nossos animais. Entregamos tudo enquanto dançávamos. Deixamos de orar e de vigiar quando orar e vigiar era o que mais necessitávamos. Nossas casas estavam tomadas pela umidade e pelo musgo e não mais nos servia de abrigo. Estávamos nus caminhando sobre a terra arrasada e o único que víamos era uma que outra catarse desnecessária. Eles exibiam nos cumes das montanhas suas novas habilidades. Eles executavam com perfeição seus malabarismos obedecendo à exatas equações matemáticas que desconhecíamos as fórmulas e as composições. Quando um de nós caía, exausto pela jornada, eles se limitavam a escarrar sobre o cadáver. Quando um de nós chorava, tomado pelo clamor ante a certeza do insuportável, eles se limitavam a escarrar sobre estas lágrimas. Fomos fúteis e o preço de nossa futilidade estava sendo cobrado. Eles vinham de longe e traziam a força que acumularam enquanto nós deixávamos escapar entre os dedos as sementes que nos foram ofertadas. Vimos as máquinas metálicas chegando e destroçando os gravetos de nossas barricadas. A nossa língua, reduzida à máxima vulgaridade, se revelava incapaz de comunicar o que sentíamos e o que pensávamos. O labirinto era deles e os minotauros dominavam toda a terra. Não havia onde se esconder, não havia onde se ocultar. Nossos pensamentos estavam congelados, nossos músculos estavam paralisados, nossos desejos estavam enfermos e nossos sonhos haviam se convertido irremediavelmente em pesadelos que não conseguíamos decifrar. Escrevíamos frases sem sentido no ar e essas frases se convertiam em nossos novos e imprevistos algozes. Escutávamos o ressoar dos chicotes que açoitavam a tristeza de nossos pequeninos animais domésticos abatidos sobre a terra arrasada. Eles imprimiram seus selos esotéricos por todas as partes. Eles ofereciam nosso sangue à sede das perversas entidades que lhe acompanhavam. E a sede era infinita assim como infinito era o séquito dos seres decaídos que lhe acompanhavam. Nossos dedos atrofiados queimavam antes de tocar o ar onde pretendiam escrever qualquer coisa que nos salvasse. Todos os roteiros haviam sido queimados. Todas as bússolas estavam desnorteadas. Eles davam o compasso. Eles imprimiam o ritmo. Eles zombavam de todo o tempo em que distraídos assistimos a dissolução dos reinos circulares. Buscávamos ervas para cozinhar um chá e não as encontrávamos. Buscávamos chão para enterrar os náufragos e chão não havia. Eles eram muitos e estavam por toda a terra. A nossa aflição era imensa e o sol não dava conta de evaporar o mar de lágrimas em que estávamos mergulhados. Nossas crianças nos olhavam com olhares de súplica e nenhuma reação nossa era capaz de aplacar desespero tanto. Tamanha era a ferida que não cicatrizava. Não havia remédio, não havia consolo, não havia estação onde repousar nossa tormenta. Eles estavam dentro de nós, circulavam por nossas veias e artérias e se apossavam de nossas múltiplas terminações nervosas. Eram falanges e falanges e falanges incontáveis. Traziam a memória sem-fim de nossos crimes de nossos pecados de nossas inércias. Conheciam nossos pontos fracos e atacavam sem trégua ou piedade. Cortaram nossos cabelos, deceparam nossas cabeças e ofereceram nosso sangue aos bastardos de todas as eras. O futuro era deles e isso nos ensinavam enfiando à estocadas espinhos afiados em nossos corações aquáticos. Desaprendemos a dançar. Desaprendemos a rezar. Desaprendemos a simplicidade de nossas primeiras brincadeiras. A peste se espalhava. Os piolhos nos devoravam. Nossa carne, inflamada por tudo que não havíamos feito a tempo, fedia como fedem os esgotos das grandes cidades. Eles sequestraram nossas divindades. Era a última parte do plano que com a frieza de um dramaturgo perverso e audaz executavam à luz do dia. Nada tinham a esconder. Nada temiam. O mundo era deles e só nos restava ajoelhar perante a obscuridade que os sustentava. Nossas mãos tremiam como varas verdes. Nosso umbral de areia movediça nos tragava sem que pudéssemos sequer assimilar as desrazões e as suspeitas que nos conduziram até agora. Os incensos não ardiam. As velas não queimavam. As canoas não se sustentavam sobre as lâminas de água. O veneno não aderia às flechas. Nossos animais não mais brincavam em nossos jardins. Eles haviam sequestrado nossos deuses e agora era tarde. Eles haviam sequestrado nossos deuses e o aqui se convertera num campo próspero e fértil à proliferação de toda a miséria. A tristeza corroía nossas almas e a cegueira em que nossa distração nos mergulhara se desfazia junto às ilusões que nos permitiram seguir vivos. A embriaguez passara rápido demais e a realidade se apresentava com uma crueza inédita e uma crueldade despovoada de qualquer máscara ou disfarce e isso nos parecia insuportável. O labirinto era deles e apagado foram todos os fios que poderiam nos conduzir para além do vale de medo, culpa e lágrimas em que estávamos mergulhados. O que estava acontecendo não podia ser real, mas sabíamos que se tratava da única realidade possível. Nossa angústia os alimentava. Nossa paralisia os enchia de gozo e prazer. Todas as possibilidades estavam reduzidas a nada. Todas as esferas imaginárias que abasteceram nossas necessidades energéticas se desfizeram no ar ao simples contato com o bafo deles. A descrença povoou nossos reinos circulares e toda nossa fé se revelou ser um amontoado de quimeras tolas e fantasias inúteis. Eles sorriam. Eles cuspiam. Eles esbravejavam. Tudo era escárnio. Tudo apodrecia. Tudo se dissolvia. Tudo nos aniquilava. Já havíamos passado por tudo aquilo, mas havíamos nos esquecido. Não era a primeira vez que eles venciam a batalha. Não era a primeira vez que nos despojavam de tudo o que nós éramos. Não era a primeira vez que nos víamos reduzidos a nada. Mas havíamos nos esquecido de tudo isso. Havíamos esquecido da façanha do Alecrim. Havíamos esquecido da chuva de asteroides. Havíamos esquecido das memoráveis batalhas. Estávamos em transe e eles estavam dentro de nossos corpos. Estávamos em transe e eles estavam dentro de nossos sonhos mais íntimos. Estávamos em transe e as trombetas deles não nos permitiam escutar nenhuma canção de ninar. As ondas do mar de fogo chegavam aos nossos pés como outrora chegava a alegria de nossos doces animais domésticos. A ira deles era maior que nossa esperança. As feras estavam soltas e o campo tornara-se um lugar terrivelmente perigoso. As borboletas sucumbiam à bestialidade dos indevassáveis. O silêncio de nossas divindades nos evaporava e cada segundo se estendia ao infinito e prolongava o terror que nos açoitava. Nossas armas não funcionavam. Nossas preces voltavam ao lugar de origem como bumerangues enfeitiçados. Nossos cotovelos estavam mergulhados em lagos de ácidos e os mais perversos e insensatos demônios circulavam sem resistências ou obstáculos pelas ruínas do que outrora foi nossa floresta sagrada e nossos templos adoráveis. Implorávamos por chuva e a chuva não chegava. Implorávamos por um lugar de descanso e lugares de descanso não se apresentavam. Desejávamos um instante de trégua, mas instantes de trégua no horizonte não surgiam. Éramos cada vez mais menos e estávamos acossados. Nossos pés estropiados pelos paralelepípedos não encontravam forças para seguir. Não havia para onde ir. Não havia onde se esconder. Nossa jornada chegara ao fim. Eles venceram. Eles dominaram o labirinto. Eles nos impuseram suas sentenças e as executaram com a frieza de um dramaturgo amaldiçoado e ressentido. Nossos caminhos estavam fechados e nossas oferendas não eram recebidas pelo senhor de todas as encruzilhadas. Nossas mãos tremiam. Nossa carne queimava em brasas. Nossos sonhos estavam convertidos em pesadelos indecifráveis. Nossas crianças nos olhavam com aflição e nós não encontrávamos reação que as apaziguasse. Nossos animais estavam enfermos e morriam sem que encontrássemos maneira de confortá-los. Tudo nos recordava que era tarde demais e que todo nosso otimismo se perdera irremediavelmente no coração das trevas. Tudo nos recordava que era tarde demais e que nossa terra prometida se perdera na fugacidade do vento. Tudo nos recordava que só nos restava o vale de lágrimas das antigas profecias. Tudo nos recordava a supremacia deles. Tudo nos recordava a nova hegemonia. Tudo nos recordava o tempo que desperdiçamos celebrando o que ainda não possuíamos. Tudo nos açoitava e a aflição de nossas crianças multiplicava a nossa dor. O selo deles estava impresso em cada sinal da peste que se abatia sobre nossos animais. A nossa horta estava morta. O nosso campo se transformara num piscar de olhos numa terra árida e a sequidão dela se entranhava em cada célula dos novos corpos que habitávamos agora. Fazia frio e não encontrávamos agasalhos. Tínhamos fome e não encontrávamos alimentos. Queríamos orar e vigiar, mas nos foram roubadas as palavras e os gestos. Nossa jornada chegara ao fim e sequer podíamos recordar dos apocalipses anteriores pelos quais havíamos passado. Tudo estava reduzido à cinzas. A nossa dor era imensa, a nossa devoção não encontrava alvo. Como um bumerangue o nosso descaso e as nossas pretensões retornavam ao vazio onde floresceram. Eles sequestraram o que éramos. Roubaram de nós o que fomos. Apossaram-se de nossos corpos e alteraram irremediavelmente nossa capacidade de sentir. Eles se fizeram a matéria com a qual poderíamos moldar o que viríamos a ser. Eles se tornaram o que somos. Nossa distração os fez crescer. Nosso esquecimento os alimentou. As brasas do ódio que trouxeram consumiram nossa imaginação. Eles eram muitos e se reproduziam como vermes sob a lama. Nossa impotência se fez maior que a nossa capacidade de veneração. E as doenças se alastraram por nossas vilas e aldeias sem que sequer chegássemos a compreender as desrazões do que ocorria. Era tarde demais. Queríamos morrer e a morte não chegava. Queríamos desistir e os nossos corpos já não obedeciam. Queríamos descer uma terceira vez aos infernos e as portas dos infernos não se abriam. Nossos desejos estavam distantes demais da realidade e eles haviam se convertido em realidade numa velocidade rápida demais. Andamos distraídos por muito tempo e isso era imperdoável. Eles eram implacáveis e aprendemos isso da pior maneira possível. Eles eram senhores das nossas náuseas moribundas e nossas náuseas eram tudo o que nos restava. Nossos corações sangravam e não havia remédio que estancasse a sangria desatada. A noite seria longa e tenebrosa, só a inércia movia nossos passos pelos caminhos de trevas que adentrávamos. Não havia estrelas no céu. Não havia ciclos lunares a nos orientar. Não havia astros se movendo na abóbada celeste. Nossas velas não acendiam. Nossos incensos não perfumavam. Nossa distração e nosso esquecimento não eram perdoados. O vale de lágrimas se expandia sobre a terra prometida como um buraco negro se expande num universo recém-parido por uma divindade sequestrada. Nossos membros não obedeciam a nossos comandos. Nossos sentimentos não correspondiam às nossas necessidades. Nosso espírito não habitava nosso corpo e nossas mentes se dispersavam como uma boiada que atravessa uma terrível tempestade. As feridas não cicatrizavam. Não tínhamos ervas para cozinhar os chás. O nosso medo alimentava a voracidade dos que nos consumiam. Estávamos enferrujando e nossos ouvidos não suportavam os ruídos que produziam o movimento de nossos corpos oxidados. Era tarde demais. Eles beberam nosso sangue. Eles comeram nossa carne. Eles torturaram o nosso sol até a morte. Eles nos deixaram vivos apenas pelo sádico prazer de assistir a nossa procissão se arrastar eternamente nessa árida terra que nos ofertaram. Fomos nos transformando em escamas de um lagarto sem órgãos. Fomos nos transformando numa serpente inútil que vaga sem direção buscando as asas que lhe foram decepadas. Fomos transformados em esqueletos descarnados que com suas pupilas dilatadas vociferam às margens de ilhas brutalmente dissecadas. E como desejando com incalculável avidez romper de maneira total e irreversível qualquer elo entre nós e nossas expectativas chegaram os cavaleiros leprosos das galáxias ocidentais e montaram seus acampamentos e ceifaram os vestígios da última e mais primitiva de todas as constelações que por séculos e séculos houvera sido nosso acalanto, nossa promessa, nossa aprazível morada.

nuno g.
Cachoeira, 13 de julho de 2019.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Visão agônica de um cavalo branco relinchando na neblina ou os cem mil degraus da escada espiralada no interior da roda de samsara


para os que chegam quando cessam as tempestades

  Assentei um santo neste chão de barro quando tinha onze anos. Assentei um santo neste chão de barro quando tinha onze anos e fiz dele o fundamento do destino todo. Assentei um santo neste chão de barro, enterrei seu corpo e com a fúria de meu joelho esquerdo soquei esse mesmo chão de barro. Soquei este chão de barro até que em pedra se fizesse o barro deste chão onde assentei um santo quando tinha ainda onze anos. E quando em pedra se converteu esta parcela de chão de barro nela esfreguei esse meu joelho esquerdo que de tanto atritar nesse chão de macio barro transfigurado em áspero mineral jorrou sangue como em Caldas do Jorro jorra termal água. E esse sangue que jorrou de meu joelho esquerdo irrigou cada veio do áspero mineral que outrora fora macio barro. E de cada veio desse chão de pedra que um dia fora chão de barro floresceu uma flor negra que por intuição e ignorância batizei de tulipa de mil fogos. E em cada uma dessas flores negras que por intuição e ignorância batizei de tulipa de mil fogos surgiram mil pétalas que na forma na textura e na viscosidade se assemelhavam a mil línguas de algum animal selvagem. Reparei que meus pelos se arrepiavam à simples proximidade dessas pétalas que pareciam línguas que cresceram em flores negras que batizei de tulipas e que nasceram da pedra em que se converteu o barro com que enterrei o corpo do meu santo e todos os seus íntimos pertences. Acendi uma vela, acendi um incenso, rezei em língua que desconheço a gramática, a sintaxe, a fonética e a origem. Os hieróglifos que gravei nesta pedra com o sangue que jorrou de meu joelho esquerdo eram a transcrição de um canto muito arcaico e severo. Os hieróglifos que gravei nesta pedra áspera com o sangue que jorrou de meu esquerdo joelho em chamas eram a transcrição musical do uivo de três indecifráveis onças selvagens pertencentes a distintas raças e habitats. Uma era parda, outra era russa e a terceira pintada. Cada uma delas trazia gravada em cada pata uma digital inusitada. A primeira trazia como selo uma espécie de cruz duas vezes cortada e que na raiz trazia um círculo que não se fechava. A segunda trazia uma chave enfeitiçada que cambiava de cor a cada mirada e que parecia feita de movediça areia de tal maneira que sua embocadura se movia como águas de maré. A terceira trazia uma pirâmide que de tão branca meus olhos identificaram rapidamente como sendo feita de sal. Com essas patas imprimiram essas onças selvagens todos os arabescos que envolvem os hieróglifos que inconscientemente eu gravara naquela pedra em que se convertera o barro da parcela de chão onde assentei meu santo e todos seus pertences íntimos forjando assim o fundamento e o labirinto daquele que viria ser meu inescapável destino. Acendi nessa pedra uma vela e sua chama era azul. Acendi nesta pedra uma vela e de sua chama azul escapavam faíscas azuis. Acendi nesta pedra uma vela e na lâmina das faíscas azuis que escapavam de sua chama também azul vi refletidos os olhos da primeira onça, a parda. Seus olhos eram da cor das esmeraldas verdes que os navios negreiros contrabandeavam da África e desembarcavam nos portos destas colônias onde seguimos assentando santos e convertendo em ásperas pedras macios chãos de barro. Acendi uma segunda vela e vi os olhos da segunda onça e estes eram brancos como são brancas as hóstias imaculadas depois de pelas mãos do vento consagradas. Acendi uma terceira e derradeira vela que possuía uma cera que ao invés de parafina era constituída por átomos e moléculas oriundas de distintos objetos astronômicos amalgamados por uma seiva escura de forte odor e sabor forte que em muito me lembrava a resina de uma planta amazônica que um pajé de beiços esticados me ensinara num sonho que tive em algum momento de minha primeira infância. Assentei um santo neste ponto exato, suspenso no meio do nada e equidistante de toda e qualquer estrela de nossa humilde galáxia. Assentei um santo neste sertão e como não tinha lágrimas o reguei com sangue, com esperma e com a primeira saliva do amanhecer. O sangue se fez flor, do esperma nasceram as três onças e a saliva cristalizou como cristaliza o mel das jandaíras em sua mais primitiva florada. Desses cristais me alimentei por anos alternando épocas de voracidade e parcimônia. Desses cristais retirei as substâncias que me compõem e que formataram este corpo tal como se apresenta hoje. Nunca utilizei outra ferramenta para colher esses cristais que não as próprias mãos e, por escassez permanente de água, nessas mãos sempre havia algo de poeira algo de suor algo da indevassável e inquebrantável veneração pelo santo assentado neste chão de barro. Esqueci de tudo, menos disso. Me afastei de todos, menos deste santuário de barro em pedra transubstanciado. Minha fé, meu coração e todos os palimpsestos que produzi foram sendo ali depositados. Minha fé, meu coração e esses palimpsestos todos foram se sedimentando de acordo com seus pesos suas texturas e a substância de suas cores e vontades originando esse santuário. Mil foram os degraus que eu percorri no interior deste labirinto. Mil foram os náufragos que eu vi serem engolidos pela ausência de águas. Mil foram as serpentes que encontrei decepadas nas margens dos degraus dessa escada espiralada. Mil foram os dias que se passaram desde que assentei aquele santo neste chão de barro. Mil foram os anos que se passaram enquanto eu intencionalmente arranhava meu joelho esquerdo nesta pedra áspera. Mil foram as lágrimas que não chorei. Mil foram as ausências que se transfiguraram em mil fantasmas e cada um deles era portador de mil presságios. Nunca cortei os cabelos, nunca fiz a barba. Tive mil corpos, habitei mil moradas. Sangrei como goza um vulcão quando em erupção sente esvaziar-se do insuportável calor do magma em estado líquido. Sangrei como um bode sacrificado na sombra de uma oiticica em homenagem ao nascimento de uma criança. Sangrei como sangra um cometa ou um asteroide que desgarrado de sua órbita se decompõe ao se aproximar da atmosfera de algum planeta. Sangrei como uma fada de pulsos abertos quando a borboleta das terras geladas do norte lhe rói a pele, os cílios e os ossos. Sangrei como sangram as onças selvagens quando sonham com seus ancestrais que viveram o tempo da chegança dos conquistadores com suas carabinas, suas cegueiras e o relinchar ensurdecedor de seus cavalos. Sangrei e suei, suei e sangrei. E o meu corpo se fez pífano. E o meu joelho se fez abismo: buraco negro, ferida aberta e permanente cavilação. E o meu corpo se fez mangue e de mangue foi se transformando em semi-árido e logo regressou a ser sertão. E o meu corpo seguiu pulsando em absoluta arritmia e foi se desfazendo de suas folhas de suas cascas e de todas as cicatrizes por ele espalhadas. O meu corpo se tornou abruptamente florescente e começou a irradiar ondas de mil cores. O meu corpo se fez chão de barro se fez chão de pedra se fez onça parda se fez onça russa se fez onça pintada. O meu corpo se fez corpo do santo por minhas mãos assentado. O meu corpo se fez canto se fez olho e se fez cera de espécie rara. O meu corpo se fez assentamento, destino e fundamento de uma tragédia silenciada. Enfim, o meu corpo se fez nada e desprovido de corpo pude regressar ao leito pedregoso do rio seco que foi minha primeira morada. Desprovido de corpo pude regressar até onde, apesar de nunca ter saído, nunca havia estado. Desprovido de corpo pude outra vez abraçar as pessoas por quem nutria algum afeto. Desprovido de corpo pude brincar de ser vegetal e sonhar os sonhos selvagens que só os vegetais podem sonhar com plenitude. Desprovido das ausências sedimentadas de meu santuário fui separando os grãos de poeira e as gotas de suor em minhas mãos acumuladas. Minha mãe, meu pai e o gavião foram os primeiros órgãos que voltaram a ganhar forma. E eram formas de unhas de algum predador já extinto. Eram unhas negras, roxas e afiadas como nenhuma outra lâmina neste mundo tenha sido vista. Eram unhas que feriam fundo a carne e sentiam imenso prazer em atravessar as camadas de pele, músculo e gordura das presas que caçavam. Rompiam veias, nervos e artérias com a mesma facilidade com que uma faca quente atravessa um tacho de manteiga. Foi destas unhas que voltei a nascer. Elas foram o embrião deste novo corpo que agora se apresenta. Minha mãe, meu pai e o gavião. Os três dispostos numa encruzilhada numa tal forma que denunciava todo o carinho investido na preparação daquela oferenda. O segundo a nascer foram os joelhos e depois os cotovelos e depois os pulsos e todas as dobradiças do novo corpo. Depois o sangue depois o sêmen depois o suor e depois todos os líquidos. Quando enfim senti que tinha novamente língua lambi minha nova pele e senti o seu sabor. Quando enfim senti que possuía dentes outra vez mordi e mastiguei meus próprios músculos a fim de reconhecer seu sabor. Quando senti uma vez mais narinas no meio da imensidão da cara ainda sem rugas cravos ou espinhas aspirei todo o oxigênio do universo e gozei com a ardência deste oxigênio ocupando os vácuos de minhas entranhas. As montanhas eram enormes, o mar era imenso e o meu novo corpo era pequeno como o corpo de uma formiga. As montanhas eram enormes, o mar era imenso e o meu corpo era escuro como o não-lugar onde enterrei o corpo de meu santo e seus pertences íntimos. Tudo estava fora do lugar e só sobrevivera meu destino e meu fundamento. As flores negras e o canto das onças. As montanhas e o mar. O sangue e o suor. A matilha de espíritos decaídos em sua jornada solitária pela terra do invisível. Os fragmentos de astros desfeitos na implosão que se seguiu à sua entrada na órbita de nosso miserável planeta. E aquelas unhas fantasmagóricas parindo meus novos corpos que se alinhavam em fila indiana como se fossem membros de alguma corte marcial de zumbis produzidos pela magia do vodu. Minha testa se inclinou até a pedra e suavemente se deixou arranhar por sua aridez. E durante mil anos minha testa sangrou ao atrito com a pedra que um dia foi barro, onde um dia assentei meu santo. Até que a pedra tocou meu crâneo e descobriu que este era feito de matéria mais dura que ela. E como se fosse uma broca de diamante meu crâneo foi comendo a pedra e esta foi esfacelando em grãos de areia que em seguida se transformavam em macio barro. E quando nada mais restava que não fosse barro acendi uma vela e um incenso. Vi onças, flores negras e úmidos cristais. Comi os cristais com as mãos como um dia havia comido o feijão de Ogum. E enquanto comia os cristais sentia minha pele se arrepiar como se arrepiara cada vez que eu me aproximara das flores negras que batizei de tulipas. Ouvi as onças cantarem e vi os invasores chegarem com suas carabinas e sua sede inextinguível. O cavalo branco ainda relinchava na neblina e meus pés haviam percorrido os cem mil degraus da escada espiralada no interior de samsara. Estendi a mão e levei meu último corpo até o chão de barro onde quando tinha onze anos assentei um santo. Ele disse adeus, uma lágrima escorreu pela minha face e sem dizer palavra nenhuma me recolhi ao silêncio fulgurante de um sol completamente desconhecido suspenso num mar de éter, desprovido de fundamento, de destino e de qualquer promessa ou raiz que lhe conferisse lógica, sentido ou razão.

nuno g.
Cachoeira, 01 de julho de 2019.