quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Areia de cemitério

 para Ian Gonçalves,


A charanga d'Ajuda despertou o Caquende.

Arco-íris nenhum no céu.

Os convites de domingo se desmanchando como sorvetes ante a ira do sol.

Um amigo, filho de Odé, soltou sua angústia:

Então tenho que matar meus pais!?

A frase, tal como pronunciara, soava hesitante. 

Não chegava a ser uma pergunta nem uma exclamação.

Ou era as duas coisas a um só tempo.

As certezas se desmanchando ante o fascismo.

Era uma vez uma cidade onde corria um rio.

E junto com ele corriam os tapuias.

Nossos antepassados chegaram e construíram ali um forte.

Os traíram. Os perseguiram. Os mataram. Os expulsaram daquelas terras.

Um desses tapuias virou vento.

Seu nome é Aracati.

Sua presença me protegeu a infância.

Junto com ele vinham as onças.

Suçuaranas. Pardas. Castanhas.

Eram minhas melhores amigas.

Seu uivo me ninava.

Em meus sonhos regressavam memórias de um tempo anterior ao colonialismo.

Dois dias depois o arco-íris chegou.

Rastejando como uma serpente sobre o rio.

Não me deixando esquecer que todo chão que piso é cemitério.

E que a mesma lama roxa onde nasceram todas as formas de vida.

É o lugar onde nos encontraremos com a morte algum dia.

Botei as moedas que tinha no saco das ofertas da festa.

E a charanga seguiu pra despertar a Faceira.

Seus deuses, seus pescadores e seus indígenas.

Segui meu rumo e no mais improvável dos acasos.

Encontrei Dom Mario Benedetti. 

Na praça do Lavrador em Cruz das Almas.

Ele me recorda que o Nacional de Montevidéu.

Está nas semifinais da sulamericana.

O Ceará não.

Às vezes a vida se decide nos pênaltis.

Como quando um dedo aperta um gatilho.

Ou quando alguém salta de um arranha-céu.

O índio que me acompanha me acaricia os cabelos.

Ouço seu ponto cantado.

Vejo seu ponto riscado.

Tateio com a língua seus lábios feridos.

Entendo assim a coexistência do doce e do amargo.

Atravesso sua mirada como um raio ou uma lança atravessam uma chaga.

Entendo assim a coexistência da tristeza e da alegria.

Recordo o vale dos jaguares tapuias de onde vim.

Recordo os fortes traços indígenas nas feições de meus sobrinhos.

Em seus corpos e trejeitos.

Nem tudo o colonialismo mata.

Nem tudo o fascismo faz perecer.

O futuro é sempre o que está soterrado.

E todo passado aguarda ainda o tempo de amanhecer.

A areia de cemitério que trago nos olhos, no tórax e nas mãos.

Vem de longe, muito longe.

Vem daquele velho túmulo de azulejos azuis que já não existe mais.

Vem das margens daquele rio que o sangue dos tapuias avermelhou as águas.

E foi sobre ela que Ogum, irmão de Odé, serviu seu feijão.

Aracati, seu filho, comeu com as mãos.

Antes que a serpente das sete cores tornasse a cruzar os céus.

Antes que a procissão dos encantados tornasse a cruzar o horizonte.


nuno g.

Toróró, 21/25 de agosto de 22.


segunda-feira, 15 de agosto de 2022

doces águas.

Dino, o gato filósofo, espreitando na porteira.

Come-e-Dorme, o cão, dormindo sobre o calor das brasas da fogueira de ontem.

Um menino vestindo uma camisa com o Machado do Senhor.

Foi com um beijo que Judas traiu Jesus - me disse seu Antônio.

Também me disse seu Ivo do mercado.

A chuva voltou e com ela sentimentos bons e singelos.

Tudo teria sido mais suave se você não tivesse morrido,

mas agora eu sei que você precisava morrer.

Era isso que eu te diria hoje mãe.

Te diria também que ontem o dia foi bonito bonito.

Que sua neta cresce bem, que os tomates já foram colhidos e que as pimentas brotaram.

Pai, tudo seria mais suave se não tivessem te matado,

mas eu sempre soube que eles precisavam te matar.

Era isso que eu te diria hoje.

Te diria também que tua neta tem uma casa na árvore.

Que ontem trocamos os curativos de João e Cristalina.

E que as macaxeiras e batatas-doces vão crescendo muito bem.

A chuva voltou e com ela sentimentos bons e singelos.

Meu avô, ontem claudinha me mandou um poema que me lembrou de você.

De seu desespero, seu hálito de cachaça e seu imenso amor.

Era isso que eu te diria.

Te diria também que está tudo bem.

Ontem foi um dia lindo. Choveu e comemos bistecas de porco com batatas ao forno.

O Ceará perdeu o derby, mas não doeu tanto.

Esse mês aqui tem muitas flores e pipocas, vovô

- e entre pétalas e grãos sempre vejo suas lágrimas.

Era isso que eu te diria meu querido avô.

Apesar da tosse, tudo está no seu lugar.

Ainda fumo e talvez o cigarro me mate como lhe matou um dia.

O resto das coisas que eu te diria não cabem em palavras meu avô.

E você, mais que eu, bem sabe.

Levei as crianças na escola.

Passei um café.

Tomei um rapé.

E escrevi esta oração no meu dicionário:

paternidade é o caminho que nos leva de volta à casa onde nascemos.


nuno g.

Toróró, 15 de agosto de 2022. 

terça-feira, 9 de agosto de 2022

O Senhor que habita a Pedra

O que tudo vê.

O que tudo sabe.

O que aqui estava quando não estávamos ainda.

O que conhece nosso rosto antes mesmo do nosso nascimento.

O que nos guia em nossa distração.

O que é rude e áspero por ser entendimento em estado bruto.

O que nos cuida quando perdidos.

O que nos reconduz ao nosso coração quando farrapos.

O que nos reconcilia com o escuro de dentro e com o excesso de luz lá de fora.

O que nos permite as canções da lua e a coragem do amor.

O que nos ampara quando caídos erramos pelos subterrâneos.

O que é água quando somos sede.

O que não diferencia sonho e realidade.

O que não nos permite desistir.

O que nos quebra os ossos quando hesitamos ante o necessário.

O que nos desperta quando o engano nos seduz.

O que é mais Velho do que o mais velho de nossos desejos.

O que é pensamento em perpétua sedimentação.

O que é larva no interior de nossa memória.

O que é futuro arcaico e passo firme em direção ao amanhã.

O que se desdobra sempre e outra vez.

O que com seu sopro faz emergir na árvore de Tempo a face do que somos.

O que é o que sempre desconhecemos de nós mesmos.

O que nos acompanha, nos cura e nos mata, com amor e ferocidade.

O que é, simultaneamente, terror e delicadeza.

O que habita a Pedra e a Palha.

O que nos cura.

O que nos mata.

O que nos escuta.

O que dança e não nos abandona.

O que sabe da formação geológica da terra e das almas.

O que se transmuta em pássaro quando quer voar.

Em serpente quando quer guiar.

E em esquecimento quando quer nos proteger do Nada e seus maus agouros.

O que é mais velho e mais terno

- pois mais caminhos já percorreu nessa gira.

O que aqui ainda estará quando nós já não mais estaremos.

O Senhor que habita a Pedra, a Palha e o destino das almas deste mundo.

O que tudo vê.

O que tudo sabe.

Siga guiando nossos passos.

Siga regendo nossa peregrinação.

Além.


nuno g.

toróró, 09/08/22.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Os pescadores da Faceira.

O Velho veio em sua forma de pássaro.

As lavras das mangabeiras pelas mesmas mãos que chamavam a Serpente.

Toda uma vida talvez não seja suficiente para regressar à casa onde se nasce.

A igrejinha de Nossa Senhora da Conceição perdida entre as voçorocas de um sonho.

O Velho veio em sua forma de pássaro.

Todas as passagens fechadas.

Os pescadores em volta do fogo cultuando o Velho.

A Senhora das Sementes cultuando a Senhora das Serpentes.

Toda uma vida talvez não seja suficiente.

Era o primeiro dia de agosto.

A dor no osso do joelho esquerdo do Ferreiro que fazia as joias.

Em sua casa de palha, numa capoeira no meio do verde da mata.

Sozinho e em silêncio.

Trabalhando o ferro como quem ora.

O Velho veio em sua forma de pássaro.

Junto com ele a Senhora das Sementes.

Junto com ele a Senhora das Serpentes.

Junto com ele o Ferreiro das Doces Águas.

Junto com ele o Menino da Encruzilhada.

Licença - e meus olhos entraram na casa de palha.

Licença - e meus olhos cruzaram o verde da mata.

Licença - e meus olhos tocaram o roxo do vestido e se encharcaram de lama.

O Velho partiu e deixou seu canto de pássaro.

O osso em trauma e uma névoa nos pensamentos.

Na pedra do rio uma criança.

Na praia os pescadores repetindo:

somos parentes e temos toda a vida para regressarmos à casa

- mas talvez uma vida não seja suficiente.


nuno g.

Toróró, 03 de agosto de 2022.