terça-feira, 19 de março de 2024

A morte do xilógrafo & outros sonhos

Subíamos a serra de Guraramiranga

Eu, Claudio e o velho pajé do seminário

Havia muito verde e muita água

Umas poças de argila branca

Conversávamos sobre a morte de Bitú ou de Adriano ou de Walderedo

Amássavamos a argila branca entre as mãos

E seguíamos subindo a serra


Estávamos na Terra do Gelo

Eu, Alice, Larissa e Assucena

O automóvel atolava na neve

E nós ficávamos conversando sobre o nosso medo que as meninas congelassem

Apesar do temor ou talvez por ele

Seguíamos bem


O Mensageiro o enviou

Trouxe uma tapioca do Aquiraz

Duas mudas de lírios

E um exemplar digital do segredo da flor de ouro debaixo do sovaco

A terça-feira amanheceu alaranjada


nuno g.

Toróró, 18/19 de março de 2024.


domingo, 17 de março de 2024

Uma vela para minha vó

 para Maria Zilá Lima Gonçalves


minhas mãos

trêmulas desde antes da criação do mundo

úmidas como úmida a madrugada de minha infância

te ofertam essas duas flores encarnadas como carvão em brasa


minhas mãos

unhas sempre ruídas 

palmas riscadas por pequenos relâmpagos

te apresentam essas duas flores que a seu pedido foram nomeadas marias


minhas filhas

seus nomes são memória de que a carne é estremecimento e devoção

seus nomes são memória de que ainda em sonhos sua bisavó seguia em oração

seus nomes são memória que uma serpente rasteja ainda no chão de meu coração


minha vó

o caminho da novena era mais estreito e comprido que eu imaginava

o caminho da novena era mais cheio de curvas e insensatezes que meus delírios

o caminho da novena, minha eterna febre enlaçada em suas rugosas mãos de serenidade


a paz está sempre em algum lugar onde nunca se chega

a paz está sempre fora do alcance das mãos

a paz é um pássaro do passado que os ornitólogos nomearam amanhã


nuno g.

Toróró, 17 de março de 2023.

quarta-feira, 13 de março de 2024

oração ao rés do chão.

 ao Senhor dos Cemitérios,

aos Erês que O acompanham,


Assucena brincando na casa da árvore.

As bananeiras, o abacateiro e a mangueira.

Do outro lado da cerca, a árvore das lagartas cortada por ordem do Almirante.

A terra chora sempre que uma árvore é cortada.

Larissa sobe os degraus com alegria.

Vós que aqui entrais, abandonai todos os medos.

Os fogos amanhecem a cidade heróica.

Com suas ruínas exuberantes.

E as cicatrizes do desleixo português por todos os cantos.

Com seus mistérios e mistérios e mistérios.

Assucena brincando na casa da árvore.

Vós que aqui entrais, abandonai todos os medos.

Vaga recordação de um sonho em que Paçoca vomitava borboletas amarelas.

Presságio emoldurado à madeira.

O canto de Alice cruzando o horizonte como um gavião.

Capim-santo. Sorriso no rosto de Lari.

Take it easy my sister Lari.

A terra sorri sempre que se semeia uma árvore.

Yãkoana, Yagé e o caminho dos Sonhos Lúcidos.

Antes do despertar é necessário atravessar muitas vezes o mesmo lugar.

Antes de seguir adiante é necessário revisitar muitas vezes o mesmo chão.

Antes de abandonar todos os medos é necesário sonhar outra vez os sonhos de antes.

Do outro lado da serra, sorri aquele que não ouso pronunciar o nome.


nuno g.

Toróró, 13 de março de 2024. 

terça-feira, 12 de março de 2024

da ponta do iceberg ao coração das águas

Assucena me despertou e meu sonho se esvaiu ao entreabrir dos olhos.

As asas da Esperança sempre me roçando suavemente o corpo.

As exigências do destino. As obrigações do karma. 

A amorosa luz de seguir caminhando entre a resignação e a revolta.

Alice tão longe e tão perto. As cobranças e as encruzilhadas.

Dentro de mim as camadas e camadas de cinzas e o fogo de Tempo.

E a árvore de Tempo. E as sementes de Tempo.

E a boca faminta da Morte ao calcanhar.

Já não há mais dúvidas:

pertenço a uma geração que legará um mundo pior que o herdado.

Ainda nisto encontrar uma pedra ou nuvem para firmar a delicadeza.

Aprender com algum inseto sobre essa habilidade da natureza.

Que destrói o que lhe serve de insrumento à materialização de algo.

Hoje é terça e terça nunca é um dia qualquer desde que escutei a voz do silêncio.

Povo das águas - recebei entre seus fios de cabelos o rogo dos povos de Ar.

O cansaço se avoluma sobre a montanha de cansaços.

Certa ternura se agiganta no redemoinho de tristezas que preenche a tarde.

Ouço o eco de sonoridades muito antigas.

Caminho por paisagens que já não existem mais.

E me agarro com força ao porvir.

Já não há mais dúvidas:

confiar na áridez e desaprender tudo que nos ensinaram.

Pouco convém determinadas insistências.

Existem respostas e medicamentos que se resumem a prolongar sofrimentos.

A sobrevivência só guarda serventia quando tática.

Sábado entregarei minhas últimas arrogâncias e o que restou da verdade.

Depois de amanhã terei atravessado mais uma quaresma.

Entre mel, gafanhotos e sangue.

Jordânia significa descendência.

Ou o rio onde os órfãos podem reconhecer seus antepassados.

Depois da quaresma terei me atravessado mais uma vez.

Sem ter me tornado um com o abismo que me olha desde antes de meu nascer.

Sem ter me enforcado com a corda que ante meus olhos propõe: desata-me.

Depois de amanhã a quaresma terá me atravessado mais uma vez.

Descêndencia significa rio que corre em direção contrária.

Ou oceano que engole praias e montanhas.

Assucena me despertou e todo o sonho se dissolveu.

Restou apenas a bonita imagem de Paçoca, a cadela, 

devorando borboletas amarelas no alpendre da casa do Almirante.


nuno g.

Toróró, 12 de março de 2024.

sexta-feira, 8 de março de 2024

haiku

a vaca mugiu no pasto do Lio

uma borboleta pousou sobre uma flor

um arco-irís serpenteou o céu


nuno g.

toróró, 08 de março de 2024.

sexta-feira, 1 de março de 2024

O cobrador e a encruzilhada.

Ele sempre vem.

Sorrateiro. Disfarçado. Artimanhoso e corroído.

Ele sempre vem e cobra.

Eu só peço a meu pai: gira-me, uma vez mais e sempre.

Deixa Ele falar. Deixa passar. Deixa o Azul sombrear seus golpes.

Eu só peço a meu pai: gira-me e conserva minha devoção.

Ele sempre vem e cobra.

Ainda depois da dívida ele olha e espuma.

Eu só peço a meu pai: gira-me e me conserva.

Balança. Balança. E balança uma vez mais.

E sempre.

Ele julga e passa. Ele fere e segue. Ele abre a janela esquerda e

Eles vêm em socorro.

Estendem a mão, sorriem e dizem sim.

Eles sempre vêm.

Giram-me e cuidam. Giram-me e guardam. Giram-me e abrigam.

O Azul soterra os golpes.

O Amarelo apascenta o ódio que O move.

Eles vêm da esquerda e me giram.

A balança do julgamento.

O balanço das águas do mar.

Firmeza. Lucidez. E a certeza de que por trás Dele existem coisas que não podem ser ditas.

O disfarce não suporta a alegria.

Artimanhoso e corroído ele recua ante Os que fazem a ronda.

Ante Os que seguem de guarda.

Não existe pureza sem mácula.

Só a da Rainha Soberana que Reina na imensidão da Floresta.

Não existe mácula sem pureza.

Só a do cobrador, cego em seu trono de fezes e morte.

Eu só peço à minha mãe: gira-me e guia.

Onde eu for escuro seja lua cheia.

E não permita esquecer que no princípio tudo era firmeza, disciplina e alegria.

E no final também.

O enforcado, o julgamento e o Archanjo.

Aos pés da Rainha Soberana da Floresta.

Eu só peço à minha mãe: gira-me e não permita o esquecimento.

Eu só peço à minha mãe: seja a lua cheia que me guia.

A estrela onde ancoro meus pensamentos.

A vibração da firmeza com que mais de uma vez atravessei os caminhos do inferno.

E este fio de luz que sustenta a pulsação de meu coração.

Amém.

nuno g.
Toróró, 13/12/21