domingo, 13 de dezembro de 2020

o não, o cansaço e um sorriso

o carnaubal estava visivelmente abatido

tia Neuza sonhara procurando deus

que, como de costume, se ocultava

a casa nunca me parecera tão real

embora Maria ainda não estivesse chegado

na estante, o álbum vermelho

com o Cebolinha sacando uma foto da Mônica na capa

guardando as fotografias de Eliana e seu filho na praia

dormimos, tomamos café, comemos manga

a praça vazia de domingo

o carnaubal devastado

tia Neuza sonhando como de costume

deus nunca me parecera tão irreal

apesar de minha certeza que era ele o que balançava a rede

o telefone tocou, não era Maria

as horas se curvavam ante a manhã

a casa nunca me pareceu tão silenciosa

não vi os mortos que a habitam

não senti suas presenças

o carnaubal estava em estado terminal

os ácaros do progresso faziam o trabalho sujo

o quadro de Eliana me esperava na casa ao lado

a pressa me escapara no caminho

o não, o cansaço e o sorriso

eram mais do que suficientes para tornar o dia agradável

eu também não ousaria pisar naqueles degraus onde a poeira se acumulara

se há tanto tempo eu não soubesse que aquela madeira ainda suportaria o peso

o relógio da sala estava quebrado

, por um breve instante,

vislumbrei entre seus ponteiros estacionados

a precária imensidão de meu coração

 

nuno g.

russas, 13 de dezembro.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020


 

no meio do caminho

tinha uma escada no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma escada

nunca me esquecerei que tinha uma biblioteca no último degrau

uma biblioteca dedicada ao Nada

tinha uma escada no meio do caminho

tinha os cem olhos da tempestade de areia fina

tinha a pintura de uma moça com brinco de pérolas no meio do caminho

e os cem mil raios da Senhora,

tinha um vazio no meio do caminho

nunca me esquecerei do beijo que não tinha no meio do caminho

nem da escada nem da biblioteca nem do nada

no meio da escada tinha um caminho

mas não são todos que desviam no meio das escadas

tinha uma tempestade no meio do caminho

tinha uma manta assurini awaeté no meio do Sonho

e do mirante da casa do guarda do Belmonte se via

a escada, a biblioteca,

o Nada, a Sina e o Vazio

nunca esquecerei que tinha um caminho no meio da escada

nem que no meio da escada tinha um caminho

e que quase ninguém desvia em caminhos no meio de escadas

ainda quando estes levem às cascatas de águas frescas

correndo entre antigos pés de buritis

tinha um silêncio no meio do caminho

no meio do caminho tinha um silêncio

e toda a potência que um corpo necessita:

seja para desviar-se do previsto

ou para escalar a escada até o topo


nuno g.

dez de dezembro.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Teoria das próximas horas

 para Claudio Reis,


nossos filhos nos antecedem

nossos ancestrais estão adiante

a cronologia é uma prisão de areia movediça

e paredes de acrílico

fundamento que resulta da sedimentação

grãos de tinta expostos ao sol

sempre à beira de um incêndio

caminhando sobre fios descascados

e sobre as folhas secas e as ruminações de Lilith

nossos filhos nos antecedem

nossos ancestrais estão adiante

um telefonema, um imail, uma chamada de zap

podem ser o suficiente para provocar um incêndio

de proporções inimagináveis

a cronologia é uma prisão da qual escapamos juntos

e à qual jamais regressaremos.

 

nuno g.

Crato, 03 de dezembro de 2020.