domingo, 29 de outubro de 2023

os cemitérios de Ouro Preto

Bruno nunca pode esquecer nossa pereginação aos cemitérios barrocos.

O que sim ele esqueceu é que também fomos ao mosteiro budista.

E à casa do rasta que cultivava ervas sagradas.

Isso faz tempo, muito tempo.

São reminiscências que me povoam.

Como aquele show do Arrigo Barnabé.

Ou a alegria nos olhos de Malu se preparando para ir à fliquinha.

Enquanto o gavião pousou no horizonte de Gabriel.

A lua está aqui - como esteve em cada cemitério de Ouro Preto.

E depois de depois de amanhã é finados.

O caracol vem chegando sem pressa.

Estávamos em Minas. 

Terra de Milton, onça verdadeira, voz de deus, cio da terra.

Assucena acorda.

Adeus mosquiteiro / pulgas e carrapatos vão brincar no chiqueiro.

Também recordo Bruno fazendo a família parar a ouvir Bob Marley.

Reminiscências de um futuro tão distante e tão próximo.

Enquanto as bananas da terra cozinham e piso no pilão a canela.

Romeu é um gato educado e cheio de charme.

Alice o batizou assim.

Meu avô, seus cigarros e um copo de whisky.

É o único que me chega daquelas fotos do Recife.

O resto é névoa e neblina.

O resto é escuridão e a triste farsa dos que temem a morte.

A lua, o gavião, a serpente e o cio da terra na voz de Milton.

Adeus mosquiteiro / pulgas e carrapatos vão brincar no chiqueiro.

O Velho em forma de pássaro alaranjado.

O medo do medo de Gabi soprando na brisa do amanhecer.

Alice ensaia ensaia ensaia.

Já será Senhor dos Mares empunhando tridente entre barcos piratas.

As bananas estão cozidas / A canela feita em pó.

Finados está chegando - eu e minhas ruínas e o amor ao mistério.

Adeus mosquiteiro / pulgas e carrapatos vão brincar no chiqueiro...


nuno g.

Toróró, 29 de outubro de 2023.


sábado, 28 de outubro de 2023

lua cheia.

hoje é lua cheia.

Na Cisjordânia camponeses são assassinados enquanto colhem azeitonas.

Assucena conheceu dona Antônia.

E eu fiquei olhando como se olhavam.

As duas extremidades do arco.

O silêncio atravessando a troca de olhares como uma flecha.

Meu coração disparado.

Céu quase tão azul quanto o de Durango ou o de Iguatu.

Banhei Assucena com alfazema.

Minha mãe selvagem está com água nos pulmões.

Acendi uma vela para ela.

Por sua saúde e sua firmeza.

hoje é lua cheia.

Na Cisjordânia fascistas assassinam camponeses enquanto colhem azeitonas.

Finados se aproxima como um caracol, lentamente.

Não esqueço a flecha.

Não esqueço o arco.

hoje é lua cheia.

Meu coração disparado.

Maria Alice ensaia ensaia ensaia.

Domingo que vem ela será Tritão no teatro.

Será pai por primeira vez, depois de onze anos sendo filha.

Meus olhos marejam.

Estou velho, cansado e solitário.

Tenho a poesia. 

Tenho essas Marias que o astral me concedeu para me guiarem.

Tenho essa Senhora que me ensina com suas mãos de Lama.

Tenho essa Senhora que me lava os olhos com mel.

Tenho essa certeza que não fosse a poesia não estaria aqui.

Ainda assim haveria um colono enforcando um camponês enquanto colhe azeitonas.

hoje é lua cheia.

Desde sempre dona Eliana Gonçalves.

Toda luz e radiância no meio do céu.

Como essa pedra no meio do terreiro.

Como os olhos de Assucena no centro dos olhos de dona Antonia.

Como Maria Alice no meio do palco do teatro.

Como a razão e o leite no centro do corpo de Larissa.


nuno g.

Toróró, 28 de outubro de 2023.

Dádiva.

Adélia sabe dizer das coisas de deus - carrego essa força comigo.
Escrevo com Assucena no colo.
Escrevo com Alice no colo.
A mulher que traz a razão no corpo agora também traz leite em si.
Hermenegildo passa com o olhar perdido na outra margem do rio.
Onde a montanha queima criminosamente.
As cobras, os pássaros, os tatus, os lagartos encontram a morte.
Alguns conseguem escapar e caem nos telhados das casas de São Félix.
A estiagem segue. Rego as plantas antes de escrever.
O Senhor do Fogo me exige ser todo justiça.
O Senhor da Pedra me exige ser todo firmeza.
A mulher que traz a razão no corpo desayuna uma canja de galinha.  
Adélia sabe dizer coisas que eu não sei - carrego esse amor comigo.
Cleonice passa na estrada falando de sua roça.
Judite passa na estrada falando de sua égua.
As duas pisam no mesmo chão onde pisara Hermenegildo.
Sylvia Plath escreveu sobre o caçador de mamangavas e eu chorei depois que Alice partiu.
Ela escutou o conto com atenção e em seguida foi brincar junto ao fogo.
Assucena teve um dia difícil.
Muitas são as agruras do encarnar.
Estar aqui exige muito.
Leite, razão, colo, fé.
Penso em Jó todos os dias.
E quando o Cavaleiro passa cantando meus nervos bailam.
E quando o Caçador passa sua flecha me atravessa.
E quando o Anjo Azul se deixa avistar tremo.
Já é sábado, finados se aproxima.
Como um caracol que anda devagarzinho.
Tenho que ir dar voltas de rua hoje.
Comprar uma vela pra minha mãe da floresta que está adoecida.
Comprar pão, broa de milho e colher flores pra mulher que tem a razão e o leite no corpo.
Papai, passou rápido o tempo, quando eu estava aí ela tinha dez dias, agora já vai fazer um mês.
Passa rápido o tempo.
Quem sabe das coisas de deus saberá das coisas de tempo.
Em Minas existe uma cidade chamada Divinópolis.
Nessa cidade existe uma rua chamada Ceará.
É lá que vive Adélia - a poeta que me ensinou a ver com olhos livres.
Tenho que ir à rua. Minha mãe da floresta está com água nos pulmões.
Preciso lhe acender uma vela em agradecimento.
Nós sim sabemos que a morada da vida é no coração da morte.

nuno g.
Toróró, 28 de outubro de 2023.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Verão

Ainda estamos em outubro e já arde um sol pra cada um no céu.

As plantas estão tristes.

Os animais acabrunhados.

Um bom leitor sabe quando a frase flui.

Um bom leitor reconhece quando o estilo dita naturalmente o ritmo.

Um bom leitor reconhece no espelho do texto a guerra que o origina.

Um bom leitor sabe que tudo é ficção.

A verdade dessa primavera é a estiagem.

E essa espera de trovoada na qual se encontra mergulhada toda a cidade.

O rio segue sereno.

E as bombas seguem caindo do outro lado do mundo.

Deixando órfãos e semeando ódio no horizonte.

A verdade dessa estiagem é o resguardo.

E esse temor ao verão que se anuncia.

O calor nos evapora.

O calor nos resseca por dentro.

O calor derrete coisas que não nos servem mais.

A verdade desse resguardo é a trovoada.

Ontem levamos Assucena para fazer o exame de audição.

Bestagem - ela escuta mais que nós.

Ouve com perfeição eguns e encantados.

E sonha muito além do que nos é dado sonhar.

Um bom leitor sabe que não existe verdade além da ficção.


nuno g.

Toróró, 27/10/23.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

O vestido branco de dona Eliana Gonçalves.

Alice, esse vestido foi da sua vó, agora é seu.

Gêgê, um dia esse vestido vai ser seu também.

Seu pai gosta de rio, eu gosto de mar.

Sentamos na pedra no meio do terreiro.

A vela acesa, o perfume do incenso.

Correu um vento.

Alice guardou o vestido na mala.

Gêgê tornou a mamar.

E Gabi se perdeu tentando ler as tortas linhas das nossas mãos...


nuno g.

Toróró, 25 de outubro de 2023. 

terça-feira, 24 de outubro de 2023

ao som de David Bowie na feira de Cachoeira

 para Campos de Carvalho,


olhei as estrelas e a igreja dos remédios

pisei onde antes o trailer de dona Irá

e lhe estendi a mão em sinal de benção

um sapo cruzou meu sonho

com uma enorme língua de fogo acesa

e uma voz vinda de muito longe sussurrou

tenho medo, tenho medo, tenho medo

olhei outra vez a igreja dos remédios e as estrelas sobre a feira vazia

pisei na vazante do Jaguaribe

onde antes pisara o Touro que tem a cabeça enterrada no Icó

e as onças que nunca pararam de cantar

um louva-deus pousou no ombro esquerdo do meu sonho

e a voz longínqua tornou a sussurrar

tenho medo, tenho medo, tenho medo

às vezes os moribundos aguardam anos a permissão dos seus para descansar

às vezes o medo nos proteje como um Anjo que conhece o futuro

mas muitas vezes o medo nos cega e nos ata ao que devíamos abandonar

a voz de David Bowie se fez ouvir entre as estrelas

as portas da igreja dos remédios se abriram

dona Irá me concedeu sua benção

acariciou as coroas das cabeças de minhas duas Marias

e a luz do sol foi se esparramando sobre a feira

enquanto os primeiros transeuntes chegavam com suas frutas, verduras, legumes

e o cheiro de café e de cigarro inundava a primavera do sonho...


nuno g.

toróró, 24/10/23.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

o último poema de Heba Abu Nada

A noite na cidade é sombria, 

exceto pelo brilho dos mísseis; 

silenciosa, exceto pelo som do bombardeio; 

aterrorizante, exceto pela promessa tranquilizadora da oração; 

escura, exceto pela luz dos mártires.

Boa noite.


La noche en la ciudad es oscura, 

excepto por el brillo de los misiles; 

silenciosa, excepto por el sonido del bombardeo; 

aterradora, excepto por la promesa tranquilizadora de la oración; 

negra, excepto por la luz de los mártires. 

Buenas noches.


Heba Abu Nada.

24/06/1991 - 20/10/2023.

sábado, 21 de outubro de 2023

Eliana e as onças III


para Gaeth Castanheiro,


o acerto pode ser incerto

mas o erro tem que ser exato

Gaeth Castanheiro


o tempo mergulhou em sépia a lua

lágrimas de tornassol se esparramando

pelos Caminhos da Aranha do Destino


o tempo mergulhou em sépia o sol

e a casa onde a morte se gestou em vida

areando os olhos cegos aferrados à escuridão da matéria


o tempo mergulhou em sépia a luz das estrelas

as sertanejas sussuaranas, Marias

reencontradas na ancestral suicidada 


nuno g.

Toróró, 21/10/13


sexta-feira, 20 de outubro de 2023

o mundo feito com as mãos, por Demetrios Galvão.

no universo antropomágico
do mundo feito com as mãos
existem seres bonitos em sua simplicidade
uns visíveis e outros invisíveis
essa comunhão que frutifica
uma espiritualidade suave

de mãos dadas com a mística do mundo
o ciclo cósmico renova ruínas
e a força transformadora
produz alimentos
molda idades abstratas
reluz palavras na escuridão

a humanidade come na mão da natureza

 

 

Demetrios Galvão (Teresina/PI, 1979) é professor, poeta e editor. Autor dos livros de poemas Fractais Semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), O Avesso da Lâmpada (2017) e Reabitar (2019). Também publicou  o objeto poético Capsular (2015) e a plaquete A Inconstância dos Fluxos (2023). Tem poemas publicados em diversas antologias e revistas literárias. É coeditor da revista Acrobata em atividade desde 2013 – https://revistaacrobata.com.br/

 

el mundo hecho con las manos, # Tradução por Gladys Mendía.

 

en el universo antropomágico

del mundo hecho con las manos

existen seres hermosos en su simplicidad

algunos visibles y otros invisibles

esta comunión que fructifica

una espiritualidad suave

 

de la mano de la mística del mundo

el ciclo cósmico renueva ruinas

y la fuerza transformadora

produce alimentos

moldea edades abstractas

brilla palabras en la oscuridad

 

la humanidad se alimenta de la mano de la naturaleza

 

 

Gladys Mendía, escritora, tradutora e editora na LP5.

 

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Prece às crianças de Gaza

Crianças de Gaza,

De tão longe lhes escrevo

Que quase duvido que me ouçam

Desertos e oceanos me atravessam

Quando nos olhos de minhas filhas, Marias

Avisto as bombas que caem sobre vossas casas

Como pássaros desnorteados posuídos pelo espírito da morte

Quando no choro de minhas filhas, Marias

Ouço o choro assustado que escapa de suas gargantas

Como súplicas de prisioneiros sob as perversões de um carrasco

Que desconhece qualquer limite às suas fantasias de torturador

Crianças de Gaza,

Lhes negam água

Lhes negam abrigo

Lhes negam comida

Mas não podem lhes negar minhas lágrimas

Não podem lhes negar minhas preces

Não podem lhes negar minha poesia

Oceanos e desertos lhes atravessam

E unem os olhos de minhas filhas, Marias, aos seus olhos

Crianças de Gaza,

Algum dia vocês olharão para trás

E verão o horror a ira e a covardia

Destruindo vossas infâncias

Ouvirão o som das bombas e a pulsação das cicatrizes latejando em seus corpos

Vocês nunca deixarão de ser o que são

Nunca poderão esquecer o que estão vivendo agora

Nem o que viveram vossos pais e vossos avós

Crianças de Gaza - Alláh não as abandonará

Nele encontrarão seus indecifráveis oráculos

E os misteriosos labirintos da existência

Nele encontrarão a pedra firme onde ancorar seus íntimos desesperos

Crianças de Gaza,

Sórdidos homens de corações impuros

Mergulham suas infâncias na dor e na amargura

Mas suas almas permanecerão ilesas e intocadas

Na abundância em que crescem minhas filhas, Marias

Saltam como rãs no pântano

As misérias de suas existências

Crianças de Gaza,

Seus pais com armas, fé e angústia descomunal

Tentam lhes devolver a Terra Prometida

Crianças de Gaza,

Suas mães se fazem água para que não morram de sede

Suas mães se fazem pão para que não morram de fome

Suas mães se fazem esperança para que não morram de desgosto

Suas mães se fazem azeite de oliva para que não desconheçam a doçura

Suas mães se fazem tecidos para vestir vosso supremo sofrimento

Crianças de Gaza,

O mundo assiste a tudo e não faz nada

Como um estúpido espectador ante um espetáculo de entretenimento

Somente os seus se fazem escudos para que as bombas não caiam sobre vossas pequeninas cabeças

Crianças de Gaza,

No sono sereno de minhas filhas, Marias

Avisto os destroços de vossas infâncias

Ouço a indiferença absurda do mundo ante o vosso supremo sofrimento 

Crianças de Gaza,

A poesia nada pode ante a realidade e a crueldade e o absurdo do mundo

Crianças de Gaza,

Vosso clamor é o clamor de todos os oprimidos da terra

Alláh nunca as abandonou

Alláh nunca as abandonará

Nas ruínas dos hospitais destruídos pelas bombas

Nas ruínas das escolas destruídas pelas bombas

Nas ruínas dos versos dos grandes poetas palestinos

Nas ruínas das místicas árabes e do sufismo

Nas águas dos desertos e na áridez dos oceanos

Vocês encontrarão a matéria-prima e as reminiscências da Terra Prometida

Vocês encontraram o alimento e o abrigo que lhes negam agora

Crianças palestinas

Lhes negam os peixes do mar

Lhes negam o pão da terra

Lhes negam uma casa onde dormir, sonhar e orar

Lhes negam o sal que dá sabor à existência

Crianças de Gaza,

Mas não podem lhes negar uma língua, uma história e uma tradição poética

Não podem lhes negar a fé nem a dor que sustenta toda fé

E vossa dor ecoa nos olhos serenos de minhas filhas, Marias

Palestinas como todas as Marias do mundo

Palestinas como a Maria que amamentou aquele em quem o Ocidente enxergou o próprio Deus

Crianças de Gaza,

Sem saber se essas palavras cruzarão os desertos e oceanos que nos separam

Impotente ante a vossa dor e o vosso sofrimento

Só me resta orar e crer

Que o amor e a misericórdia de Alláh

Hão de vencer a ira, a covardia e a maldade que lhes destroça a infância

Só me resta acreditar

Que algum dia essas pedras que hoje lhes servem de armas

Serão a matéria-prima de sua futura Terra Prometida

E os brinquedos da infância de seus filhos, de seus netos e bisnetos

Só me resta rezar para que algum dia possam brincar de roda

No oásis que lhes concederá o destino

Crianças de Gaza,

Vocês serão maiores e melhores algum dia

Pois lhes tocou não ter outra infância senão a da guerra e dos destroços

E saber da mutilação e da perda antes de conhecer o acolhimento e a alegria

Crianças de Gaza,

A paz sem justiça é qualquer coisa menos paz

Que a poesia seja vossa prece

E que a memória da indiferença do mundo os fortaleça

Crianças de Gaza,

Do outro lado do oceano

Do outro lado do deserto

Alláh lhes olha

Alláh lhes alimenta

Alláh sacia vossas sedes

Algum dia vocês serão maiores e melhores 

Pois nunca esquecerão o poder destrutivo do ódio e das bombas

Pois nunca esquecerão o silêncio ensurdecedor da indiferença do mundo

Pois nunca esquecerão o choro e ranger de dentes que soa no campo de batalha

Crianças de Gaza,

Recebam minhas lágrimas e estes humildes versos

Que essa injustiça absurda e esse sofrimento supremo

Que esmaga vossas infâncias com a voracidade de um abutre maligno ante uma presa indefesa

As convertam em guerreiras da Luz e da Sabedoria

E as tornem capazes de vencer as sombras da ignorância

Que não poupam infâncias, oceanos e desertos...


nuno g.

toróró, 18/10/23