segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Navios do deserto

espalhei os bombons sobre sua cova

e ele sorriu: discreto arco-íris que se

desfez antes do pôr-do-sol

e da BR-101 vimos as águas ligeiras

despencando das alturas e erguendo

uma nuvem carregada de navios que

como os navios do deserto

flutuavam e flutuavam entre gotas

de águas e gotas

de areias entre a

solidão e o absurdo

entre cavalos, pedras e

desbotadas primaveras

 

as formigas, as flores, o ventre

do campo santo de espumas e mel

o discreto arco-íris-sorriso

dissolvendo em timidez antes

do beijo sabendo a sexo e oração

a chama pegou e o carro abandonou a estrada de terra

já no asfalto

uma lágrima tocou o tímpano

esquerdo, antes do pôr-do-sol

entre notícias de desabrigados

e promessas de ano-novo

espalhadas como bombons em covas de anjos

ou como navios de guerra

estrategicamente semeados

na oceânica aridez do deserto


nuno g.

Toróró, 27/12/21.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A terceira vela

Em tua cama de areia e pedra descansa, menino

E ainda assim, soterrado antes, hás de sonhar

Entre a torrente incessante de sonhos que é tua única realidade

Sempre retornará a imagem daquele efêmero instante

Em que nos meus braços teus olhos fechados

E teus cabelos encaracolados

Em tua cama de pedra e areia descansa, menino

Para nós, os nascidos, tudo se resume a efêmeros instantes

Ao contrário, para ti, natimorto

Nada é efêmero e só existe a estrada da eternidade

Descansa menino, descansa

Sob o fio de luz desta vela que te acendo,

Descansa,

E com tuas mãos morenas vais abrindo o caminho

Por onde passam as serpentes emplumadas

E a legião dos cegos missionários da floresta

Em tua cama azul e amarela, descansa meu menino

Descansa como descansarias na rede que te teceu a aranha rendeira

Descansa e escuta minha prece, menino

Entre a torrente incessante de teus sonhos

Sentirás o perfume destes incensos que te acendo

Ian, anjo entre anjos,

Luz, firmeza e a consciência profunda dos que se recusam a abandonar a eternidade.

 

Nuno g.

Toróró, 14 de dezembro de 2021.

sábado, 11 de dezembro de 2021

***

 QUEM ESTÁ CERTO ESTÁ ERRADO E QUEM ESTÁ ERRADO ESTÁ CERTO.


Padrinho Manoel Corrente.

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

gira de Mateus

                     para Claudio Reis,


todas as Marias são palestinas



Eles chegaram e bailaram a noite inteira

entre as nuvens e o cume da chapada

entre as árvores de Tempo

e as águas do amanhecer



todos os soldadinhos do Araripe são palestinos



Eles bailaram a noite inteira

entre meus sonhos trôpegos e o Sonho límpido da terra

entre o tempo das árvores

e as águas do entardecer



todos os espíritos são palestinos

inclusive os que nos estendem a mão

quando os rumores nos ameaçam



Eles sabiam que ali estavam guardados

e sob o escudo Azul ergueram a ciranda-matriz

colunas de salamandras e batalhões de encantados

ao som de pífanos e zabumbas

Eles também se sabiam palestinos

e desconheciam qualquer hesitação.



Eles dançaram a noite toda

entre as estrelas e as estrelas da madrugada

Eles eram muitos e tinham nomes sagrados:

Cachoeira, Mosquito, Império.

Margaridas de couro cravejadas no peito

e os três caminhos selados nas palmas do espelho.

Eles eram palestinos e herdeiros

e nunca nos deixaram esquecer

que até o mais agônico cortejo

é regido por uma austera e faiscante alegria.



Eles bailaram a noite toda

e como os Magos Reis da antiguidade

foram guiados por Vênus e Andrômeda

até o terreiro sagrado de Mestre Aldenir

xilogravado na lira esmerada de Walderêdo Gonçalves.



guiados pela lua

abriram os três caminhos:

fertilidade, delicadeza, alegria:

e a memória das coisas que nunca se devem esquecer.



Toróró, 07 de dezembro de 2021.

nuno g.