quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O ano do infinito

                                                                                              para Maria,

Sete vezes dançaram os praiás sobre a coroa de sua cabeça.

Sete vezes cruzamos os sete rios sem que as águas nos molhassem.

Sete cânticos o jaguar encantado nos presenteou.

Nossa pele por sete fogos atravessada.

Às vésperas do oceano, do sal e do infinito.

Deixando as árvores se desfolharem.

Segurando às mãos a flor sem pétalas.

E ouvindo o tempo.

Sentindo o tempo.

Sabendo a tempo.

Sete vezes dançaram os praiás sobre a coroa de minha cabeça.

Sete rios nos cruzaram sem nos molhar.

Sete jaguares nos cantaram.

Sete fogos atravessaram nossa pele.

Às vésperas do oceano, do sal e do infinito.

Deixando as folhas se libertarem das árvores.

Segurando às mãos as pétalas sem flor.

Sendo ouvido pelo tempo.

Sendo sentido pelo tempo.

Sendo conhecido pelo tempo.

Sabendo que nada sabemos.

Que somos menos.

E que as onças curam ao cantar.

 

nuno g.

23/09/20

terça-feira, 22 de setembro de 2020

os guardiões da floresta e as ruínas do Asno-mor

Hoje foi dito e assentado na ONU, pelo fascista-mor desta terra, que são os caboclos e os índios os que queimam a mata.
Também foi dito que a mata não queima por ser úmida e que estamos à beira de sermos engolidos pela cristofobia.
Os guardiões escutam. Os da terra, os dos subterrâneos, os dos céus.
A insanidade beira o patético. O que eles querem nunca foi tão claro.
Têm apoio e avançam. Têm as armas e avançam. Têm a doença no coração e avançam.
Mas eles são mortais e passam antes de florescer.
Os índios e os caboclos bem sabem o que é um apocalipse.
Já viveram muitos e souberam guardar boas memórias.
Cristo, por supuesto, faz tempo se fez adepto à pajelança.
Há muito tempo, no livro das sete estrelas, foi assentado.
A insanidade, o patético e a enfermidade passam.
Os índios, os caboclos, as onças e as serpentes não.
As cidades do agronegócio já serão ruínas e se ajuntarão às ruínas de nossas chagas verticais.
Será um tempo longo, duro, difícil.
Mas ainda podemos aprender com as ciências indígenas os ensinamentos caboclos.
Ainda poderemos nos resguardar.
Eles sabem o que é um apocalipse e também sabem que sempre haverá quem guarde a mata das memórias e as clareiras do ser.
Não sabemos nada e sentimos que somos menos.
Que venham os guardiões e que nossa humildade os permita nos guiar.
Onças são para sempre.
Poesia também.
saravá!

nuno g.

domingo, 20 de setembro de 2020

As onças – lição do Jaguaribe

O que eles não sabem é que elas não morrem.

Nem o fogo da cidade branca.

Nem a arma esmaltada e bandeirante.

Nem o hálito pode.

O que eles não sabem é que um dia chove.

E que eles sim morrem.

No Icó tem uma casa encarnada.

O vermelho dela não é tinta.

É sangue de menstruação.

É sangue de sussuarana.

O que eles não sabem é que seus automóveis são uma extensão.

Que seus sonhos de Miami são uma triste reedição.

Dos antigos sonhos dos bárbaros de além-mar.

Sem a valentia. Sem a inocência. Sem a coragem dos primeiros.

O que eles não sabem é que seus apartamentos.

Só servem ao vôo dos gaviões.

Que ao se chocarem contra o chão.

Enfiam olhos adentro a sífilis a gonorreia e a solidão.

Lhes devolvem as escaras do tempo.

E gritam não.

O que eles não sabem é que onças reencarnam.

Eles não.

No Icó tem uma cabeça de touro enterrada.

A maquiagem do shopping não desfaz a escuridão.

Poconé e Araguaia: ódio e salvação.

O que eles não sabem é que onça canta.

Assobia, tripudia, ora.

Tem onça que é de Iemanjá.

Tem onça que é de Iansã.

Tem onça que se basta em sua primitiva santidade.


nuno g.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

sábado, 12 de setembro de 2020

Fantoches, por Francisco Espinhara

Os fantoches da rua Sete 

Seguem cegos na procissão.


A puta diurna da Palma

Traz uma venérea na alma

E uma cova diária na mão.


Da Ponte Velha a secular ferrugem

Reticente ao trajeto branco da nuvem

Come o estrado, o arco, o vergão.


Os poetas esquecidos no beco

Transam sangue a trago seco

Dormem como trapos sobre o chão.


Recife, musa, maldição

Cadela suja, traiçoeira

Seta certeira

Encantada cidade do cão.


Francisco Espinhara

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

flores siberianas, por Patti Smith

Flores siberianas são rosadas

como o bracelete de uma filha

pálido penhoar

postado contra uma janela

que não mais desse vista

Há sangue em toda parte

privado de sua cor de sangue

E o rosto do amor é nada

além da brancura do inverno

cobrindo a colina

abeto e pinheiro

gamo e galhada

tudo soprado

e no entanto desejamos

Dois olhos negros

Uma cabeça curvada

Uma coroa caída


Patti Smith

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A alfabetização do éter

Meu pai por fim morreu.

Mais de trinta anos depois de seu corpo ter sido abatido como um bicho.

 

Naquela noite não dormi e saí às quatro e meia da manhã em busca de cigarros.

Fazia um frio intenso e não havia nada na rua.

Nem cães. Nem vendedores de tacos. Nem vendedoras de flautas douradas.

Encontrei numa cantina às margens do lago e voltei fazendo fumaça.

Passos rápidos. Uma viatura de polícia. O carro do lixo.

À minha espera um quarto em paz profunda.

O sono das mulheres depois do milagre.

 

A paz profunda do corpo de meu pai no bagageiro do avião.

Finalmente.

Mais de trinta anos depois.

Sentei na escadinha onde minha avó estivera sentada sete dias atrás.

O corpo no bagageiro do avião como anos antes o corpo de minha mãe.

Belém-Recife-Fortaleza.

Não lembro se havia lua no céu.

Não lembro de sentir frio apesar do tanto de frio que fazia.

Só a paz do sono pós-parto.

O cigarro entre os dedos.

E o silêncio que sempre antecede o amanhecer nos pueblos mexicanos.  

 

A morte sorrindo com a boca atascada de pimenta.

Don Abel Hernández segurando a alça do caixão.

Embarcando o corpo no avião.

Sob o olhar assustado dos policiais do aeroporto.

E o silêncio que antecede o tiro do caçador contra o corpo da cegonha que traz os bebês.

E eu ali. Parado. Fumando.

Na mesma escada em que minha vó esteve sete dias atrás.

Enterrando meu pai na mesma cova onde estava enterrada minha mãe.

Esperando o dia amanhecer para escutar a canção que Maria, recém nascida, entoaria.

 

O alfabeto escrevendo com éter o destino num último instante de calmaria.


nuno g.