segunda-feira, 27 de junho de 2022

Regresso à linha do equador

o mar levou pro rio

um presente pra mamãe Oxum

e o rio levou pro mar

um presente pra Yemanjá

Maria Alice

a procissão de fogueiras da Vila Gonçalves à Ingá

ossos frágeis e delicados e um sem-número de objetos outros

enterrados sob este chão:

escapulário de ferro

o prato fundo repleto de sangue

e o sonho dos dois caixões

a Gare de Astapovo

os pedreiros ateando fogo na cozinha

a chuva no Peixe Gordo

e o dia amanhecendo alaranjado nos olhos do jaguar enfeitiçado

ossos frágeis e delicados e um sem-número de objetos outros

enterrados entre as estrelas desta noite insaciável

a paz aqui é só uma palavra

fervendo entre outras palavras

mergulhadas no dicionário das placas tectônicas

e na larva que escorre entre as frestas

do túmulo de azulejos azuis 

que não existe mais

a lagoa da Caiçara repleta de aguapés, serpentes e eguns

que insistem em remar suas canoas

entre os ossos frágeis e delicados deitados na alvorada 

entoando esse coro insuportável

que rompe a harmonia das esferas

e ecoa nos cânions do Aquém e do Além

despertando a divindade asmática

e desnorteando os ponteiros da lazarenta memória

dos castiçais esfumaçados

dos aprazíveis licores

dos habitantes da cidade sem-nome

do arco-íris órfão ressuscitado

demasiadas coisas enterradas sob este chão

entre a escuridão imensa destas estrelas

o sangue do esquecimento atravessando as vértebras

de cada palavra que escrevo no ventre obtuso desta chuva

hálito tapuia & o rugido do sino da Catedral

carregados em liteira de marfim e assombramento

pelo vento Aracati que sopra desde as fronteiras do infinito

arrastando os raios da Senhora ao som dos címbalos que anunciam

a partida prematura dos deuses de ontem

e o inexorável atraso da chegança dos deuses do amanhã

o sol assenta sobre seu trono

sem que se saiba quem terá pés capazes de tocar o solo dos salões iluminados

onde as aranhas tecem e destecem os destinos

e as linhas-de-força encruzilhadas no moto perpétuo deste incansável rio

nesta maldita insônia, neste sagrado oráculo

a procissão de fogueiras da Vila Gonçalves à Ingá

no sinal de acesso à Barão do Rio Branco

um velho com uma guia de contas negras e azuis cruzando o tórax

exibe um papelão onde se lê em vermelho a palavra FOME

à esquerda um desses carros modelos naves espaciais

com bandeira pátria e adesivos com o nome do inominável

a palha, o mel e os olhos do Senhor das Estradas

recordando a guerra e os seus hinos

recordando o sonho do velho conde 

repousando em Iásnaia Poliana

entre ossos frágeis e delicados

e um sem-número de objetos outros

esparramados sobre as cinzas do quilômetro oitenta

a palha, o mel e os olhos ávidos e sinceros do Senhor da Estrada

se movendo no interior da cidadela inexpugnável da insônia

e nos caleidoscópicos labirintos do oráculo

a procissão de fogueiras da Vila Gonçalves à Ingá

o hino das águas e dos erês no açude do Bixopá

os unicórnios e jabutis dançando entre as corredeiras onde vivem os pitus da ilhota

canjica quente, pé de moleque, bolo de macaxeira, paçoca e vatapá de galinha

o hino das águas e dos erês apascentando as doces fúrias do Aquém e do Além

e a ternura impronunciável dos habitantes da cidade sem nome

a palha, o mel e os olhos ilegíveis do Senhor da Estrada

orando através de mim quando meus olhos leram outra vez a inscrição no jardim:

rua do meu pai - café negro, longo e amargo

se derramando sobre o azul-azul do céu do Iguatu

e entre as árvores do esquecimento 

onde repousam ossos frágeis e delicados

escapulários metálicos, pratos repletos de sangue

e os dois caixões do sonho

a clepsidra de vidro gira mais uma vez no quilômetro oitenta

e o daimon arcaico desperta de seu torpor

gravando entre as cicatrizes as recordações de antigas atrocidades

rua do meu pai - o jardim em tudo o mesmo

Iggy Pop vagando na domingueira eternidade de sua felina existência

o mel, a água doce, o sorriso

nos protegendo da ferocidade de Tempo

nos guardando dos abandonos que abandonamos antes da alvorada

entre ossos frágeis e delicados

entre um sem-número de objetos outros

enterrados entre as estrelas reluzentes

que seguem faiscando e vibrando

nos obscuros subterrâneos dessa terra onde as promessas nunca são cumpridas.


nuno g.

russas / fortaleza, 21 a 27 de junho de 2022.


quarta-feira, 22 de junho de 2022

O caminho das almas ou o teleférico fantasmagórico

O óleo da caixa de câmbio vazou em Teofilândia

Atravessamos o deserto mais uma vez

No Ibó as sertanejas mãos de Jean voltaram a encher de óleo a caixa

As águas do São Francisco estavam mais calmadas que de costume

E todos falavam sobre a colheita das cebolas

As engrenagens da quinta marcha colaram definitivamente

As mãos sertanejas de Jean as arrancaram como quem arranca as vísceras de um pirata

Uma coruja de olhos esbugalhados seguiu caminho conosco

Alice falou do Bené e da Inaê

Mastigamos beterraba, couve e carne assada

O resto da viagem foi desapressada

E quando o sol se pôs já estávamos no meio da floresta do Araripe

Tomamos cumaru, fizemos uma fogueira

Brincamos de macaca e cozinhamos o milho que Luís plantou

Falamos sobre sonhos e sobre o Senhor da Vida e da Morte

Deayunamos frutas com aveia e café negro

Trezentos anos ou a eternidade

E nossos passos entrando no vagão do metrô

E nossos passos cruzando o coração da cidade sagrada

Os olhos do padre Cícero pousados sobre nós

Como as asas do gavião sobre o açude

Ou o clarão da lua sobre a noite imensa

Tomamos mais cumaru e conversamos sobre o pesadelo fascista que nos assola

Chico catou entre as ferragens as engrenagens da quinta

Recordei do velho Aranha e Alice falou sobre a Débora

Assistimos Tico & Teco, comemos baião-de-dois e pizza

O Velho nos abençoou com a palha

E pegamos outra vez a estrada rumo ao fantasmagórico teleférico do Caldas...


nuno g.

Crato, 18 de junho de 2022.

sábado, 11 de junho de 2022

oráculo.

Havia águas e serpentes

E ainda assim havia fogo e veneno

Foi antes do estopim da guerra

Foi depois do nascimento das mãos que erguiam casas com aéreos materiais

Havia fogo, águas, serpentes, venenos e metais

Com os quais se forjaram os três caminhos

E todas as sentenças da justiça

E ainda assim no sonho veio o que tinha de vir

E se fez carne e memória e habitou entre os cardeiros e a piçarra

E se fez memória do vermelho das flores dos cardeiros

E se fez memória do vermelho da poeira da piçarra

E se fez serpentes e águas

Fogo e veneno

Antes do cessar da guerra

Antes do amanhecer do escuro

Antes do sonho ser sonhado como tinha que ser sonhado

Antes das mãos modelarem os materiais aéreos

E erguerem a casa sertaneja

E o mítico coração da barca que navegar no mar

Havia uma guerra e mais coragem que argila

Havia um sonho e mais água que veneno

Havia um fogo e mais metal que entorpecimento

Havia o escuro e seus refúgios infinitos

Havia um sol, uma lua e uma estrela:

Três caminhos e todo mistério para além de qualquer esquecimento.


nuno g.

Toróro, 11 de junho de 2022.


terça-feira, 7 de junho de 2022

entre feiticeiros e despertencimentos.

chove sobre a colina sagrada

o frio penetra minha omoplata

sem pedir licença

acende a bursite

o chão de lama, escorregadio

e a cidade com seus paralelepípedos centenários

e sua ponte de ferro & ferrugem & tempo

os gatos invadem a casa

como os degraus da escadaria amarela

invadem os sonhos

chove sobre a colina sagrada

ao longe, a pedra da baleia e um saveiro

venta e no vento vêm vozes e mais vozes

de aquém, de além, de cima, de baixo da direita e da

esquerda da esquerda da

chuva que cai sobre a colina sagrada

da chuva que molha os centenários paralelepípedos

da chuva que afoga todas as coisas de ontem de anteontem

como a areia da sepultura da serpente

apenas os olhos expostos ao sol

o frio, a guerra, o parapeito de madeira e estrela

tudo se move como se movem as pedras

a cidade, o vento e as frutas pintadas a óleo

os gatos, o som da casa de farinha, tilintar de copos e nada

aos palmos medindo a distância de todas as órbitas

e cruzando o mundo como um trem mineiro fora dos trilhos

abarrotado de bugigangas


nuno g.

Toróró, 07 de junho de 22.


quinta-feira, 2 de junho de 2022

as águas do Jaguaribe

 para Dellany Oliveira,


todos os rios, o rio

e em seu leito de várzeas todos os sonhos

correndo em direção ao outro lado

como se a noite fosse mesmo um pássaro

e as estrelas seus ninhos

todos os rios, o rio

e em seu leito canoas, jangadas, saveiros

correndo em direção ao outro lado

como se os pássaros fossem mesmo noturnos

e a única forma de aplacar a sede

seguisse sendo beber o fogo

todos os rios, o rio

e suas nuvens correndo em direção ao outro lado

como se o tempo fosse apenas um calafrio passageiro

ou o osso de um mártir encontrado entre os lajedos

todos os rios, o rio

correndo entre o esquecimento e a loucura

e atirando flores nos despenhadeiros da chapada

todos os sonhos, o sonho

correndo entre o lodo e as pedras

como se a única forma de saciar a fome fosse jejuar ao sereno

amanhece na pedreira - o galo canta

Aracati chega, apascenta, acarinha

e canta devagarzinho antigas canções de ninar

sobre túmulos de azulejos azuis e vespas dançarinas

sobre árvores de raízes pardas e onças tão imensas quanto o coração da lua

todas as onças, a onça

Sussuarana chega, espreita e se vai

boqueirão de vertigens, caleidoscópio de estrelas

a força da tempestade, o som dos sinos,

o sangue das sete aldeias correndo pro mar

amanhece - devagarzinho

todas as noites, a noite

se enrolando como uma serpente colorida

entre as névoas que não se desfazem

e as promessas que não se cumprem

todas as águas nas águas deste rio

todas as pedras nas várzeas deste rio

todos os sonhos nos sonhos deste rio

um deus que dança e usa espada chega e assenta

desalvoroça, destorce, semeia ramas de tempestades

sorri e ascende

sete aldeias sangrando, uma cabeça de touro enterrada na vila do Icó

e o campanário da catedral atingido por um raio

o rio corre e com ele correm todos os rios

o rio corre e com ele correm todas as embarcações

o rio corre e com ele corre o meu coração...


nuno g.

Toróró, 02 de junho de 22.