sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O jaguar encantado


Pai, mas essas histórias do jaguar encantado aconteceram mesmo?
Aconteceram sim filha.
Pai, mas isso não é poesia?
São poesias sim filha.
Pai, mas poesia não é a realidade né?
Não filha, poesia é só a verdade e a beleza que moram dentro da realidade.

nuno g.
Cachoeira, 13 de setembro de 2018.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O filho do vaqueiro


Entrou no carro e agradeceu. Respondi, não há de quê. Sorriu para Maria sentada na cadeirinha atrás e foi me narrando sua história. Estudo psicologia, termino ano que vem, meu pai mata um boi a cada seis meses para me bancar aqui. O sotaque não negava, era pernambucano. Os modos educados não escondiam, era do sertão. Já vai fazer um ano que não o vejo, tem dias que a saudade me rói por dentro os ossos, me aferventa o sangue, termino esse curso e volto, antes não que o esforço dele foi muito. Ia falando e a cada tanto olhava e sorria para Maria. Preciso terminar logo esse curso e começar a trabalhar, antes que meu pai dê fim no pouco que tem, esse diploma é importante demais da conta pra ele, já eu, penso mais é em voltar, conseguir um emprego por lá e poder ganhar algum trocado pra garantir a velhice dele, ficar perto do velho, pedir sua benção todos os dias. Não conseguia mais segurar as lágrimas. Eu disse chore, tá tudo de boa, você é de que lugar do Pernambuco? A resposta veio bonita: Sou das margens de lá do rio grande, da cidade de Belém do São Francisco. Segui: Passo sempre por lá, cruzo pelo Ibó. Ele olhou Maria e sorriu: O senhor também não é daqui não né? Maria abandonou o silêncio e disse: Meu pai é do Ceará, quando a gente cruza o São Francisco já tá pertinho do Crato, da casa do tio Cláudio, lá tem o caminho das águas, lá tem o Caldas, quando passa do são Francisco a gente só precisa subir a chapada e atravessar a floresta e já chegou. Dessa vez quem sorriu foi eu. Olhando para Maria ele respondeu: Não sei por causa de quê desconfiei que vocês eram do Ceará, meu pai tem muitos amigos de lá, do cariri e do inhamuns, quando ele era mais jovem todo ano ia pra missa dos vaqueiros e lá fez essas amizades. Agora ele tá mais velho, anda adoentado, eu vivo aqui preocupado, se tivesse dinheiro ia visitá-lo mais a miúdo, mas tenho que terminar o curso, o sonho é dele, os custos aqui tão cada dia mais altos. Desacelerei o carro e fui serpenteando a subida de capoeiruçu devagarzinho, querendo encompridar a conversa: Que curso mesmo você disse que faz? Psicologia. Você é adventista? Não. Olha, vou te dizer uma coisa, no fim do ano nós vamos pra lá e se você quiser pode ir com a gente de carona. Agradeço demais e quero sim! Parei o carro no acostamento, anotei meu número de telefone e entreguei a ele. Olha que eu vou ligar mesmo. Maria sorriu e disse: Pode ligar, a gente te leva, deixa só chegar as férias. Encabulado perguntei: Teu pai é fazendeiro? Não senhor, antes fosse, meu pai é vaqueiro mesmo. Agora que tá adoentado a coisa ficou difícil. E ele tá vendendo as poucas cabeças de gado que tem pra me manter aqui. Vivo com ele desde que me entendo por gente, ela vive só com o senhor também né? Mergulhei nas nuvens de meus pensamentos. Pensei no romance que começara a escrever essa semana. E, principalmente, pensava que esse menino de prosa tão ajuizada que terminara por pegar carona com a gente nascera na mesma cidade em que nascera a Sussuarana que eu tanto admirava. Aquela que foi a única mulher do cangaço que realmente atirava e lutava. Fiquei lembrando de um conto que escrevi a muito tempo chamado as exéquias de Iararana onde eu tentava reproduzir um rito funerário indígena descrito por Darcy Ribeiro. Quando Helena da Catingueira – cadela que me acompanhou quando vim morar aqui – morreu, tentei reproduzir algo daquele rito. E, passado tantos anos, por ocasião dos oitenta anos do apagamento de Lampião em Angicos, voltei a pesquisar sobre a vida da Sussuarana – essa minha antiga paixão – e me deparei com a foto dela lavando com álcool os ossos do diabo loiro. Agora era eu que não segurava as lágrimas. A carona estava chegando ao fim. Ele me agradeceu com a sinceridade dos que sabem o que é conversar com pedra e com pássaro, dos que sabem a alegria que é banhar de rio e fazer festa pra chegança das chuvas. Só consegui dizer: Me liga mesmo viu e no fim do ano vamos. Ele sorriu para Maria e disse: Segue cuidando dela, deus abençoe vocês, ainda essa semana vou pedir pro meu pai botar vocês nas orações dele, as orações dele abrem caminhos. Nos despedimos. Trinta minutos depois chegamos à escola de Maria. Em Cruz das Almas. E não pude deixar de pensar que toda Cruz das Almas foi um dia entroncamento de aboiadores, encruzilhada onde os vaqueiros descansavam, se divertiam e rezavam. Quando cheguei em casa, ao cair da noite, continuei a chafurdar no google histórias da Sussuarana e me deparei com uma matéria antiga, da folha de são Paulo, sobre a pesquisa de Élise Jasmin, sensacionalisticamente intitulada: Maria Bonita era “poser”, Dadá não. Pensei: nem todo sensacionalismo é falso, nem toda verdade é flutuante. Abandonei a pesquisa e fui montar um quebra-cabeças com Maria. Depois brincamos de dominó e jogo da memória. Cansados, deitamos na rede e adormecemos cantando juntos terral.

nuno g.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

A pedra de Bendegó.



Para marialice, contra o desencantamento do mundo, sempre.

O museu nacional virou cinzas: metáfora mais-que-perfeita do tempo que vivemos.
Só restou lá dentro, a pedra de Bendegó.
Aquela que exigiu do império impensáveis esforços de engenharia.
Aquela que os cientistas batizaram de meteorito.
Aquela que sempre foi sagrada para os sertanejos.
Aquela que foi roubada e nunca devolvida.
O museu nacional virou cinzas: cultura e barbárie em chamas.
Em tempos de falsos profetas e mitos despossuídos de qualquer autenticidade, resta a pedra.
Que seja devolvida agora ao sertão com um pedido de desculpas.
Que se junte à fé dos seguidores do Conselheiro.
Que se reúna às cabeças de Lampião e seus homens sobre a escadaria de Piranhas.
Nela pulsa um reino inteiro.
Nela toda a viagem imaginária de Dom Sebastião.
Nela a delicadeza e aspereza do amor de Corisco, o diabo loiro, e Dadá, a sussuarana.
Que a injustiça seja desmanchada.
Que a pedra seja finalmente devolvida.
E que seja ela a deseducadora sentimental que necessitamos.
E que seja ela o amálgama mineral dos nossos rios de sangue.
E que seja ela o grito de repulsa a toda violência reunida no nosso projeto imperial.
Nela pulsa um reino inteiro.
A distopia de uma anti-nação.
Nela as veredas todas que cortam o sertão.
Os gerais sem-fins.
Contra o rumo tóxico da civilização.
Contra os tentáculos de um colonialismo que não perece.
Contra o esquecimento e o presentismo.
O reino da pedra.
Com seus encantados.
Último mito vivo.
A pedra de Bendegó é feita de carne e de osso.
As pedras sempre foram as vísceras do sertão.
Recordo do poeta ñuu savi me dizendo:
Foram os invasores que nos nomearam mixtecos.
Foram os invasores que nomearam nossos centros cerimoniais de sítios arqueológicos.
Aqui também foram os invasores que nomearam meteorito
à pedra sagrada de Bendegó que caiu dos céus em meio ao sertão.                         
Foram eles os que nomearam meteorito a esse talismã mágico.
O museu nacional virou cinzas:
Todo monumento de cultura é um monumento de barbárie,
nos ensinou Walter Benjamin.
A cultura da memória e a memória da cultura
perderam um de seus mais opulentos monumentos:
As labaredas de fogo escreveram
em um par de horas
alguns volumes de esquecimento,
mas nem tudo foi reduzido a pó:
sobrou a pedra de Bendegó –
Esperamos que a devolvam com brevidade ao sertão de onde nunca deveria ter saído.
Esperamos que nos devolvam o Sono e o Sonho.
O interior dessa pedra mágica é um caleidoscópio.
Nela vivem a sede dos mapuches e todas as línguas dos índios da terra do pau-brasil.
Nela, o emparedado Cruz & Souza.
Nela arde o arcaico Sol Esquecido.
Que ela seja regressada o quanto antes
e que na próxima vez que cruzemos a 116
eu possa finalmente dizer:
eis aí marialice a pedra que caiu dos céus
a que foi roubada pelos Senhores do Império
a que resistiu ao incêndio do museu nacional
aquela que tantas vezes te contei a história
enquanto tomávamos um suco descansando para seguir viagem
que soem os pífanos de Bendegó!
que a pedra, a poesia e o Sonho sejam ilhas de imaginação nesse mar de barbárie.
Além.

nuno g.
cachoeira, 04 de setembro de 2018.