quinta-feira, 29 de outubro de 2020

fósseis

para ângela calou,

onde antes a terra
escura e imberbe
agora os seres sedimentados

o mundo feito mais curto
de forma abrupta
e o horizonte subitamente estreitado

as cismas, as fagulhas, as artimanhas
e tudo o que deixa toda partida
a espreita do cego e o sêmen da fumaça

onde antes a descrença
com o sem sabor da virilidade extrema
e o escárnio metamorfoseando-se perpetuamente em cansaço

é na matéria que a memória se grava
tal qual o trono, artefato fósforo
e o céu azul que já não esconde de quê nos protege

o sono, o vento, a cordilheira
o velho maltrapilho e suas flores que curam
amarelo-milho aceso na névoa que a ti reluz e salva

onde antes a seiva dos mortos
agora a sombra da fé
e a imagem mimética dos seres sedimentados

onde antes a vulcânica palavra
vermelha e cálida
agora o silêncio angelical,

Maria acordou, me chama, eu vou.

nuno g.
Toróró, 20 de outubro de 2020

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

máquina de moer recordações

recolhemos os farelos de ódio à sombra
e onde antes as grandes perguntas
agora só a mesquinharia burocrática dos torpes
a miséria do espírito se propaga vertiginosamente
e nós tentamos retirar nossas cabeças do berço da guilhotina
Eles nos guiam. Eles nos exigem a fé.
o intolerável está por todos os lados.
meus olhos de gavião não apodrecem nem mesmo depois de terem morrido incontáveis vezes.
excluímos juntos qualquer saudade do dicionário.
também excluímos tudo o que já não estivera vivo no canto das onças.
recolhemos os farelos de ódio à sombra.
mastigamos carvão.
e como numa película ainda inédita
atravessamos o umbral e todas as conversações que mantem os mortos entre si.
do outro lado a pedra angular e o fundamento do Tempo.
a ferida de Silvio, o miado de Judite.
O sono de Maria.
recolhemos todas as mentiras que nos contaram.
recolhemos todas as calúnias e difamações que sofremos.
recolhemos todas as sementes que não frutificaram.
seja pela aridez do solo.
seja pela imperícia das mãos.
recolhemos os farelos no alforje.
vimos as caças passeando no jardim.
abandonamos os moribundos nos leitos hospitalares.
recolhemos o silêncio que não prescreve.
os desejos que não cessam.
as feridas que não curam.
os amores que não chegam.
compramos veneno para piolhos. compramos sexo nos confessionários.
e rezamos ao silício para que não nos traga mais nenhuma novidade.
qualquer farelo nos basta nesta hora de provação.
no alento do mito gravita o futuro desta civilização que se enterra com as próprias mãos.


nuno g.
Toróró, 21 de outubro do fim do mundo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

voto de pobreza - a mala.

Raimundo era padre, vivia em Minas.
Todos os anos vinha nos visitar.
Minha avó, sua cunhada, cozinhava doce de ameixa.
Comíamos com banana batida a garfo.
Ele me ensinou a ler e escrever cartas.
E a olhar as estrelas depois do jantar.
Era o único em que ele e o irmão, meu avô, coincidiam.
Os dois olhavam estrelas após a janta.
Todos os anos Raimundo trazia uma velha mala.
Voltava sempre com uma nova, presente familiar.
No outro ano regressava com uma mala ainda mais velha.
Raimundo morreu atropelado.
E até hoje espero religiosamente suas cartas.

nuno g.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

luto.

 A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará manifesta profundo pesar com o falecimento de Raimundo Aniceto, o mestre Raimundo Aniceto, integrante da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, do município do Crato, uma das mais importantes formações da cultura tradicional popular no Ceará e no Brasil. A Secult se solidariza com os integrantes da banda, com os familiares e amigos de mestre Antônio e com tantos quantos se acostumaram a aplaudi-lo, no sem-número de apresentações que sempre combinaram música e dança, tradição e presente, intensidade e alegria.

O toque do primeiro pife da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, comandado pelo Mestre Antônio, jamais será esquecido. Junto ao seu irmão, Antonio Aniceto, e a seus sobrinhos, Mestre Raimundo seguiu se apresentando até pouco tempo, desfilando destreza no pife e na dança, na elegância dos uniformes de cores vivas, na tradição secular das bandas cabaçais. Sempre em movimento, deixando como legado a descoberta e a admiração despertadas em novas gerações, graças à continuidade do trabalho dos Irmãos Aniceto.

Mestre Antônio  se despediu aos 86 anos, foi responsável por manter viva uma das mais belas e marcantes expressões da cultura cearense, estando sempre pronto para transmitir conhecimentos e compartilhar histórias e vivências. Assim foi, por exemplo, com os novos integrantes da banda-mirim dos Irmãos Aniceto, reunindo garotos da comunidade, unidos e encantados pelo poder da tradição, da música, da brincadeira. Tudo com a simplicidade e a gentileza que sempre caracterizaram a presença do grupo, em inúmeras apresentações e em eventos especiais, como o Encontro Mestres do Mundo.

Contribuir para que os Irmãos Aniceto sigam adiante e tenham repercussão cada vez mais ampliada para sua obra é a melhor forma de homenagear Mestre Raimundo. Nosso agradecimento, mestre, por toda uma vida dedicada à cultura cearense.


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

poesia.

Porque assim como há fantasmas que parecem remédios, 
assim há remédios que parecem fantasmas. 
Cousa notável, que o mesmo que lhes metia medo como perigo, 
os livrou da tempestade como remédio.
Padre Antônio Vieira

chegou aqui e mergulhou o que sou nas águas do silêncio.
sobreviverei a isso e esse é meu único temor real: meu único medo que não é imaginário.

não quero mais estar aqui, faz tempo.
a minha vida foi sempre uma luta corporal contra o luto, estou exausto.

tenho tanto apreço pelos meus contemporâneos quanto os vampiros ao alho.
eles só querem que isso passe, eu só quero ir à grande Aldeia.
nada nos une, nenhum nó nos ata.

nos próximos dicionários deveria se escrever dinheiro onde se lê alma.
não creio em amor, creio em Maria - ela também veio do que antecede o nada.

tem gente que escreve com palavras.
só sei escrever com as vísceras.
e quando escrevo silêncio, águas, mata, 
é uma forma de orar.
é uma vela amarela que acendo.
é um pedido que faço.

não quero ser condenado a sobreviver ao fim do mundo.
com ter que ser e estar entre meus contemporâneos é uma punição que já basta.

os que me pensam pessimista estão longe.
os que não me pensam quase me agradam.

quando escrevo serpente invoco o veneno que ao parecer remédio é fantasma.
quando escrevo nada o que quero dizer é tempestade.

nuno g.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Eliana e as onças

Eliana suicidou.

Ou como dizia Raimundo,

distraída que era saiu de casa pela janela.

Prefiro acreditar que conseguiu voar.

Trazia no sangue o sangue das onças.

Eu sei quando as ouço cantar.

Eu sei quando as vejo em procissão.

Acendo os vaga-lumes.

E não esqueço.

Eliana suicidou.

E quando em súplicas lhe atribuíram milagres.

Voltaram a violentá-la.

Crucificada outra vez como o índio de Chiapas.

De quem retiraram a infância para ter um Cristo à imagem e semelhança.

Os azulejos azuis, outra violência.

A ausência à lápide, mais violência.

O rosto tão branco quanto o leite.

E a voz das onças pousada ao ombro.

Subindo e descendo a escada espiralada.

Acendo os vaga-lumes.

A vela aos mortos e aos suicidados.

O vento entra.

É primavera.

Da janela: o juazeiro, a jurema, o dendê.

Ou como diria Raimundo,

a trindade vegetal.

Prefiro acreditar que conseguirei voar.


nuno g.

Toróró, 23/09/20