sábado, 30 de julho de 2022

Ayê

Noêmia sonhou com os três porquinhos.

Assim me narrou Bernardo ao amanhecer.

Rezo à Adélia - como se minhas mãos fossem sândalo.

Penso em Ogum Beira-Mar.

Penso em Ogum-Iara.

Penso em Ogum Megê.

Penso em Ogum.

A mulher que dorme ao meu lado tem a razão no corpo.

Assim como eu tenho a escuridão e a rutilância.

Ela me ensina uma foto de Francine.

Remoçada. Jovial. Renascida.

Me alegra a alegria dos que cruzei ao caminho.

Penso no Sétimo e no seu reino do sertão.

Me revelando seu nome em sonho.

E soltando gargalhadas de marfim e calcário.

Rezo à Adélia - como se minhas mãos fossem parafina.

O horror está em todos os lados.

Penso na Pombagira entoando canções ciganas.

Só a poesia importa - o resto o sol da morte dissolve todos os dias.

A mulher que dorme ao meu lado tem a razão no corpo.

Assim como eu tenho uma infância mergulhada em mentiras e covardia.

Chove. Chove. Chove.

Chove e falta água nas torneiras e nas descargas.

Penso em Ogum e rezo à Adélia.

Quem sabe Ele também em sonho me revela Seu nome.

Todas as perversões entregues ao dicionário da noite.

A moça que vende café preto e mixto quente.

A moça simples que vende broas de milho.

Ser mulher é ser bruxa.

É trazer dentro a força que resiste à nadificação.

Rezo à Adélia - como se minhas mãos fossem espumas.

Ouço o Sétimo gargalhando no sertão.

Recordou o sonho em que me revelou Seu nome.

Recordo o hálito de cachaça, benção e proteção.

Soterrado vivo - meu coração dispara como um cavalo.

Meio-irmão dos raios, meio-irmão dos trovões.

Penso em Rimbaud - o poeta é mesmo um místico selvagem.

Avesso às amarras de qualquer doutrinação.

Entregue à semântica das tempestades.

Nas curvas que sobem a serra duas placas chamam a atenção.

Pastel do Alemão - em negro e vermelho.

Deus julgará a todos - em amarelo-ouro.

A cidade do Senhor de São Félix fica para trás.

Penso em Artaud entre os tarahumaras.

Buscando ressuscitar divindades em seu gélido coração.

A mulher que dorme ao meu lado tem a razão no corpo.

Sonha com Miguel - como eu sonhei algum dia.

Chove. Faz frio. E falta água nos canos.

Meu Ori sente a irresistível atração do Orum.

O Ayê me quer aqui.


nuno g.

Toróró. 27 de julho de 2022.




segunda-feira, 18 de julho de 2022

Orum

para Serena Assumpção,

I.


Nasci em cidade nenhuma.

Nasci em um rio.

Entre ferros d'água e espelhos de pedra.

Nasci às margens e às avessas.

Como uma pluma sem cão.

Uivando em dialeto acalanto.

Nasci como nascem as ilhas.

Num instante de distração do rio.

Mãos dadas ao escuro.

Olhar posto à imensidão.

Nasci mil vezes em uma só vida.

No rio onde nascem todos os rios.

No rio onde nascem todas as ilhas.

No rio onde as águas estão em permanente estado de distração.

Às avessas. Às margens.

Como uma pluma sem a ferocidade do cão.


II.


Não quero mais estar aqui.

Mas sigo.

Penso nos meus filhos no Orum.

Penso nos meus pais no Orum.

Penso no Orum.

Mas sigo.

Entre mares de azeite e encruzilhadas de farinha.

Com a precisão com que se movem as ruínas de um engenho.

E sigo.


III.


Beira-fogo, sina, artefato.

Na minha morte meu corpo coberto de sementes e nada.

A matéria cega devolvida à terra.

E o meu espírito à imensidão.

Orum.


nuno g.

Cachoeira, 17 de julho de 2022.

domingo, 17 de julho de 2022

os lírios do cotidiano e os sonhos que os ventos trazem.

havia tendas - como nas caravanas ciganas que acampavam sob as oiticicas.

e quando acordei o sonho ainda estava lá - escorrendo em sua voz ao telefone

e se amalgamando às fotos do Velho 

que esperaram quatro décadas para chegar aos meus olhos.

havia um bebê - como no dia em que me levaram na mata para conhecer Miguel.

e quando acordei as tendas ainda estavam lá e sua voz escorrendo como óleo

entre as teias e as flores e as crianças.

havia tantas camadas de febre e esquecimento sobre as pequenas coisas do amanhecer

que parecia ser impossível qualquer despertar.

havia muita água doce e uma gargalhada sincera aprisionada numa garrafa.

havia tendas e fogueiras e alguém aprendendo as primeiras letras.

sua voz escorrendo no telefone, uma fotografia antiga e um arrepio à pele.

somos o que esquecemos e sangramos para que o nada não soterre o amanhã.

somos o sangue que derramamos sobre a terra.

somos também a terra onde se erguem as tendas.

e sim, no seu sonho ela era a mais bela das mulheres daquele rio.

ela te disse como se chamava e te entregou mais uma vez a infância de Maria.

quando acordei a foto estava lá - e nela todo o passado que me foi negado.

havia lírios, sonhos e águas doces.

quando pronunciei teu nome tua voz me chegou ao telefone.

só no óleo certas esperanças alcançam sobreviver.


nuno g.

Toróró, 17 de julho de 22.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

entre Serrinha e Santa Bárbara.

à margem esquerda da estrada

atrás, muito atrás, do brejo onde as garças pousam

o arco-íris se apresentou

e conversamos sobre todas as cores

uma suave distração

e obrigamos um caminhão verde a frear na subida

um cafezinho e entramos na cidade antiga

notícias do fascismo, bolo de milho, saudades

animais domésticos e uma bela noite

no outro dia a chuva

notícias de uma despedida

e as luzes de alerta sanitário piscando no céu

à margem esquerda da estrada

atrás, muito atrás, do horizonte que nossos olhos alcançam

pulsa uma força imensa que não sabemos nomear


nuno g.

Toróró, 11 de julho de 22,

sexta-feira, 8 de julho de 2022

a cabeça de touro e a igreja de Nossa Senhora da Conceição

Vazaram todas as águas.

Da bexiga de Alice.

Do radiador do pirata.

Um gordo numa moto nos guiou à oficina Edson & irmãos.

Passamos pela igreja suspensa.

Recordei da cabeça de touro enterrada ali.

E do gavião morto no asfalto na entrada da serra do Pereiro.

No porta-malas as mudas de oiticica.

O queijo, a nata, a paçoca, a manteiga da terra, o doce de leite e o Sonho.

A lembrança do serrote do Peixe onde não fomos.

E de todas as outras coisas que nunca aconteceram.


nuno g.

Icó, 07 de julho de 22.