quarta-feira, 30 de junho de 2021

quando os teus olhos O reconheceram

outra vez em fuga o cavalo:

em busca de seu dono e sob o batismo de teus olhos

outra vez sua crina banhada em mel:

em busca de seu destino de metal e mais-metal

como se a cada passo no pasto

abrisse nuvens e túneis

que O tornavam mais reconhecível aos olhos que selaram seu nome.


nuno g.

terça-feira, 29 de junho de 2021

T r a n s o m á t i c a, por Margarida Vale de Gato


De que carne cá dentro vem

aquilo que em mim tenta e pode

escrever o que estou lendo

de outrem?

           Não propriamente posse —

antes uma disposição

que internamente se impõe:

o corpo inteiramente votado

ao trânsito dum longo transe.


Não sei de que mais me envolva

tantas horas – nem dos distúrbios

do amor e respetivo sexo.


Cúpida presa mira longe texto.


Correntes desenrolam-me outra

coisa que não seca, conquanto

subam e desçam, carrossel

esconso, áspero silvado

ora escarpa, ora dossel

fluvial, Ó quanta líbido

discípulos da vertigem (à

falta de mais certeiro nome —

sanguíneo pneuma?) pode

trasladar a carne o canhão

para a fome espiritual?


Margarida Vale de Gato 

quarta-feira, 9 de junho de 2021

sedimentação / destilação / fermentação (procedimentos poéticos)

o que você chama de paz eu chamo terror / e sim, há sangue correndo entre essas águas do Jaguaribe / a minha insônia traz nome, não O revelo / meu fastio, minha insolência, meu despertencimento / só O que não se reconhece ao espelho interessa / essa fábrica de narcisos engrossando fileiras de algoritmos desenfreados / tenho a madrugada, a neblina e o meu coração cheio de covas abertas e gotas de / o gato mia / o gato foge / o gato se encurrala em seu próprio labirinto como um fauno / como um asno / como um avestruz de penas ruivas / as fezes sobre os sonhos e os dias de adoração ao Senhor / quaresma / quaresma / quaresma / e a nova penitência / como num filme antigo / preto-e-branco / como o manto sagrado do Ceará / o que você chama terror eu chamo paz / e sim, tarda em arder a sarça / a minha revelação traz nome: insônia / tenho a madrugada / a neblina / e esse leve rumor de asas que não me deixa esquecer que atrás da imagem refletida na água evapora tudo o que é sagrado.


nuno g.

domingo, 6 de junho de 2021

Sobre o Cisne de Stéphane Mallarmé, por Eduardo Guimaraens

Um Sonho existe em nós como um cisne num lago

de água profunda e clara e em cujo fundo existe

outro cisne alvo e triste, e ainda mais alvo e triste

que a sua forma real de um tom dolente e vago.


Nada: e os gestos que tem, de carícia e de afago,

lembram da imagem tênue, onde a tristeza insiste

por ser mais alva, a graça inversa em que consiste

a dolente mudez de um espelho pressago.


Um cisne existe em nós como um sonho de calma,

plácido, um cisne branco e triste, longo e lasso

e puro, sobre a face oculta de nossa alma.


E a sua imagem lembra a imagem de um destino

de pureza e de amor que segue, passo a passo,

este sonho imortal como um cisne divino!


Eduardo Guimaraens