segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Tororó, por Claudia Rejanne.

Tororó
estelar
continente paragua
afluente kariry açu
açude junco
mãe jaguar
arribe
caudasjorrou
machu pichu
amazonara
jara
já lá
jord AUM

Kakituramba veio de lá
no clarão do fogo e do rapé
dançou, cantou, comemorou
no baile matinal dos curumins


Claudia Rejanne.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

ESPERANDO UN POEMA, Luljeta Lleshanaku

Estoy esperando un poema,
algo agreste, ni elaborado ni fuera de control,
algo imperturbable por las ofensas, un cuervo blanco
liberado de la oscuridad.

Las palabras que vienen naturalmente, sin apuntarle a nada,
una bala sin un blanco,
tiros de advertencia al cielo
en tierras recién ocupadas.

Un poema que brote de mi pecho

Y hasta que llegue
escucharé a mis hijos peleando en el cuarto de al lado
y arrojaré mi mirada a lo largo de la mesa
a un vaso de leche vacío
con un trazo de blanco alrededor del borde
mi cuello envuelto en plata
una servilleta en un aro servilletero
esperando que arriben los tardíos invitados...

Luljeta Lleshanaku

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Ilha do desterro.

Célia foi minha professora de datilografia,
Bia era irmã dela e
Lúcia, sua melhor amiga.

sonhei com o Martim do clube de forró,
com o Manoel Gonçalves da cerâmica e
com Sara - só ela segue viva.

Hoje é a data que Maria nasceu,
cinco para uma da tarde,
Valle de Bravo - México.

Se eu fosse Bandeira,
teria aqui o suficiente para um poema,
mas não sou e estou desde as cinco esperando o telefone atender para cantar as mañanitas.

O poema se chamaria ilha do desterro.
teria cheiro de rio e a beleza de Bia.
teria gosto de rio e a coragem de Lúcia.
teria textura de rio e a seriedade de Célia.

O poema seria o vasto rio onde corre toda a saudade do mundo.
e até Bandeira teria que reconhecer que entre a Sina e o Nada transcorrem nossas vidas.

Ontem fui à praia do Montecristo,
onde deságua este poema no mar,
escrevi nas areias teu nome, Maria,
e ainda que uma noite de mil anos nos atravesse,
nem o vento, nem as águas, nem as mãos da imprudência,
serão capazes de apagar.

nuno g.
23 de novembro.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

rosário de estrelas ou os passos de Ana na escuridão

para meus avós,

  Depois de tanto tempo sem chuva restava pouca gente no povoado, quase nada. A neta e o avô escarafunchavam o barro das ideias reinventando as estrelas, soletrando os mistérios de suas crenças enquanto tratavam de cozinhar um pouco de milho e algo do feijão que ainda tinham. Faziam render o de comer escaldando a farinha nas águas noturnas da fé. Os peitos da menina saltavam como rãs, seus olhos vagavam como moscas e sua inteligência desafiava o comum que lhe arrodeava. O velho era espinho, era raio seco de sol, era sombra de juazeiro, era réstia empoeirada na rede do alpendre. Depois de tanto tempo sem chuva restavam apenas eles dois na casa grande da Timbaúba. O calorão aumentava, a fome ameaçava e a espinha dos dias se assanhava no sopro do vento que arrebanhava as últimas esperanças. Dessa vez não chegou governo, nunca havia chegado. Ainda umas últimas arribaçãs estendidas, sal entranhado nas asas esturricadas de orações sem memórias. Quando crescesse um tanto mais iriam ao mar: fazer carneiros de areia, ouvir quebrantar de ondas, conhecer as sereias de Homero. Enquanto não, se contentavam com o azeite das lamparinas. Com o rastrear de alguma raposa. E faziam fogo todas as tardes com as folhas secas de afugentar serpentes e víboras que passavam acolá. A brisa deliciava o corpo desidratado da neta, o avô sabia que já passava da hora e só temia que findasse antes. Tomava um trago e ruminava um inverno. Uma chuva grande, um pasto verde e a lembrança das graúnas na cerca. A morte se aproximava desfazendo qualquer aura e as querências da menina iam tomando a forma de feridas exiladas. O corpo não acompanhava o passo, a velha aflorava antes da mulher, em cada gesto renunciava suas misérias. A menina era órfã, seus pais se perderam no asfalto. A história era longa e o tempo minguava, nem boi nem boiada e os corações reconheciam-se em cada migalha de palavra, em cada cigarro de palha, naqueles afetos e silêncios sem mágoas que se prolongavam. O velho era o único que sabia de tudo, mas já era velho. Seu cavalo arquejava a alma. Os ossos dos tejos eram belos quando as mãos da menina os tocavam. Fabricava com eles sinfonias inesperadas, louvava a deus e à natureza, recriava o mundo e por pouco que fora tocava a sombra esquálida. Havia amor demais naquela sede retirada. Havia um tudo que já insinuava o nada. Era clareira muita que naqueles seres se escancarava. O temor as vezes os desabrigava. O rio tinha margens largas onde vez ou outra uma onça ainda se avistava. O velho era água que morria regando a flor que desabrochava. Nessa transferência de energia tudo se ia transformando, se refazendo a estouros de espoleta, rebentando como as borboletas que escapavam de um pigarro. As lembranças eram demasiadas, o tempo era escasso. O velho já sabia que não veria as novas águas, que não estaria ao seu lado quando sangrasse. A morte deixou de lado seu hábito enigmático e se revelou como um fato: acrescentando um quilo mais no alforje já bem pesado. Um dia antes de partir pensou romper o arco, relembrar os ecos dessa passagem luminosa, quebrantar o véu inquebrantável. Sua graça lhe mantém em pé o quanto falta. E quando ela dorme ele se transforma em anjo e com suas lágrimas enche novamente o oceano onde a menina irá pastorear carneiros quando for tão tarde.

  Saiu com parecenças à avó. O jeito de destorcer os punhos traz muito da velha. Quando se deixa desacorrentar miragens percebe a desordem com que tudo passa. É avassaladora a fúria com que se acalma e vai vertendo suas meticulosidades. A menina sabe o que o velho sabe. Que mão tão essa acaricia o ventre, sana a chaga, e vai levando o desconhecido para o outro lado. No vazio se ocupam de uns dados ou de um par de cartas a uns ciganos comprados. Feitiços de um destino bem amarrado. Reviravolta desmanchada numa madrugada. Os lençóis amanhecem lagos. O velho fraqueja, a chuva tarda. Ainda há feijão. Ainda há milho. Uma que outra caça no mato. As pedras dessa igreja nasceram a meio passo. Entre chocalhos e badalos iam se refinando, auscultando o pulso, revisando os cascos. Houve um tempo em que tempo não havia, era só a ardência infinita se estendendo no planalto. Mas esse tempo só se transfigurava em tempo quando se assentava, quando decantado ia se definindo à ribeira em paragem. Era um tempo salpicado, tinha cheiro de café recém passado e suas fronteiras eram a vertigem do inominado. Neste tempo reinava o acaso, neste tempo se movia sem medo o impulso do abutre acossado. Neste tempo se ouvia o canto assinalado. Era o tempo morto de onde a vida brotava. Era o tempo anterior. O tempo escasso, desritmado. Sem escalas, sem compassos: alguma música para ouvidos nada delicados. E foi assim que tudo foi sendo semeado. Foi assim que a origem foi ganhando sua máscara parda, sua singela insígnia acinzentada. E no meio de tudo havia uma lágrima. E no desemboucadeiro um oceano com muitos carneiros. Antes do velho outro velho já chorava. Antes da lágrima outra lágrima. Por essa vereda iam as venerações da menina. Sua solidão seria terrível se não fosse sagrada. Mastigando aquele caldo de misticismos e outras constelações minerais seguia sua relação de presságios. Afinal de contas, a vida é uma estância, sem razão pra ser desagradável, sem intuição que lhe restitua a intenção de onde parte e desarvora. O cavalo do velho arquejava, a alma se reentranhava na carne. Grilo ou outro o sangue anunciava. As rãs e as moscas celebravam sua orgia, a menina parecia cada vez mais com uma coruja e tudo ao seu redor escurecia para que ela pudesse faiscar. Saiu com parecenças a avó é certo, catava os grãos traçando espirais, assassinando desvios desnecessários. 

  Um dia ela destrincha o redemoinho, pressente o velho, sem espanto nem teimosia de rinhas. Um dia ela... o corpo além desse céu tão arranhado, tudo sendo pressentido, rememorado. Um dia ela também conhecerá o diabo, suas artimanhas e pertencimentos, ela vai lograr, da carência a querescência é um salto, fácil para uma rã que tem os artefatos nítidos. Um dia ela me enterra, afaga meu repouso, atraca minha erva. Um dia ela vai ver o mar como ele é, o oceano dos carneiros pálidos, o fogo sempre termina por incendiar o arco. Era mania do velho pressentir assim tão memorioso e grávido. Já era arqueiro e arco. A menina será mais e será menos, será raiz e será galho, será bicho e será rastro, será sempre o que desde sempre foi: lua em movimento, astro... Ainda que se esforce não alcançará o sangue, será de outro o destino de abrasar essa intempérie que irrompe baixo a chita. Qual náufrago tentará suportar seu lastro, qual desânimo inquietará sua paciência? Coisas como essas povoando a madrugada beira, esses estilos arrebatados que a calmaria fresca desperta. A brasa acesa devorando a palha do cigarro, café já tantas vezes requentado no barro, amor de si buscando forças para o outro que ainda cisma e insiste em ser pássaro que vem ajudar o pensamento a romper a casca. Ela dormia. Dormia como se nada. E pode um peixe viver fora d’água? Pode árvore se esticar sem raiz? Já não sabia quase nada. Na verdade nunca soube muito. Sempre foi mais de pressentir. De ruminar. Cultivar suas próprias venerações. Dessas lógicas aparentadas do sangue. O outro lado era dela. O outro lado era pedra. O outro lado ia aparecendo nas rugas de sua testa. Barco perdido bem carregado – como se deixou ceifar por essa banalidade insólita? Nunca se sabe até que ponto um nome determina a arte. O dela era Ana, nome de santa; o dele: Estevão, nome de pirata. O sertão era vasto mais ainda mais vasto era seu barco. Desolado remeteu o pé contra a parede e embalou as cismas que àquela hora já se faziam confusas embora mansas, como os sentidos de quando voltava da casa das putas, como a cabeça de um jovem que herda uma herança, como uma mosca que sabe o desejo que arde no salto preciso da língua faminta do anfíbio, como uma iminência parda. Três colheradas de uma coalhada um tanto azeda. Pedaço de queijo seco. Talagada de cachaça. Velho não dorme, abundância de cavilações e espreitas. Quem iria preparar a terra quando chegassem as águas? Os anjos por certo, os mesmos anjos que agora lhe devolviam o sono. Assim lhe agarrou a tala e tudo que pressentira se fez fumaça. O velho dormiu como despertara, com uma leve sensação de que o que se percebe nunca se instala, que o deserto sempre está mais próximo que se desejara. A única certeza é que a menina sangraria no mesmo porto em que seu coração estancara. Ausência por ausência o sono foi se tecendo na casa. Ela era o que ele recordara. A chuva chegava com a mansidão dos gatos. Sereno. Neblina. Chuvisco. E enxurrada. Lágrima vai lágrima vem o suco vermelho foi inundando a casa. Primeiro parecia sonho depois trovoada. Animal que sangra tem suas próprias teimosias. Conhece outras insistências. Deflagra querências de outra linha. O marasmo chega de outra forma. A boca beija com outra ânsia. A morte se vê diferente. Tão certo como lição de tabuada, acendeu a vela e bebeu a lágrima. Era a primeira vez de tudo, a primeira vez que chorava. Sangrava pela primeira vez. Com as mãos suaves enterrava o velho nas penas de galinha que recheavam a almofada. Jogou a aguardente que sobrara sobre a pele sem voz. Perdeu a maciez das mãos cavando à terra pedregosa uma cova rasa. Deitou o velho na cama de piçarra. Já não tinha mais nada que fazer ali, a chuva era para os outros que retornavam. Botou roupa de ir à rua, cobriu tudo com atmosfera de domingo e deixou pra trás o que restava. Se voltaria não alcançava saber. Sentia que ia. Que era inevitável partir. Sabia que a morte era meia-irmã do amor. Assim como a vida... assim como o horror...

  Os bicos dos seios já salivavam, os cabelos exigiam suas carícias. A estrada era larga, profunda. A vila era pequena e desprovida de promessas. Um vazio entre tantos outros, um santo morto entre os demais. Alguma fagulha de não se sabe o quê naquele carro que ia por lá manhã e à tarde regressava. O resto era o resto que nunca assumia alívios, nunca dizia sensatezes. O resto era o que pouco-a-pouco definhava. Quando beijou o pé da estátua sentiu amargar o céu da boca e cuspiu sem refletir. Toda a gente lhe olhava sem poder compreender. Era simples demais para tudo aquilo, era complexa demais para tão pouco. Os sapos já coaxavam alegrias pelo lago e as moscas pululavam feira em feira sem ressaibos. Um dia voltaria onde enterrara o velho. Flor na mão, vento na alma. Um dia voltaria à casa. O amargo desceu garganta abaixo com ossos revirados. Trocou os panos que aparavam o sangue, juntou os trapos que lhe deixaram, subiu na boléia da camionete e foi até o mais longe onde chegara. Tudo era estranho e alheio. As pessoas andavam como andavam. Os carros eram muitos. As casas não eram casas. Eram espigas de cimento ensimesmadas. Não se viam varandas não se arrastavam aqueles dizeres salpicados. Mas tinha algo de bom, de aprazível, em viver sem nenhuma amenidade. Tinha algo do que o velho chamaria o outro lado. Algo de desterro, algo de hemisfério, algo alumiado. Foi assim que foi o que foi. E o que foi era o que desde sempre tinha de ser. Foi assim que ela foi se vendo cidade. Foi se sendo outra menina. Foi matando o velho como quem mata uma sina. As rãs foram criando asas, a flecha farejando o alvo. Vez ou outra recordava as boiadas, os ciganos e as aves de arribaçãs. Mas já era dialeto outro o que alfabetizava seu corpo, o coro dos anjos desafinados descontentava seus acentos. E nessas marés de lembranças não se deixava enganar, a delicadeza era bela por ser violenta, o corpo sangrava para seguir vivo e com lágrimas foi inventando o mar. O primeiro homem acolheu como um carneiro. Apascentou-lhe. Sem juras nem confusões entregou-lhe o que lhe devia e retirou dele o que necessitava. Não perdia tempo escutando algaravias. Tinha juízo. Tinha amor. Tinha criado mais de mil insônias na imaginação. O carneiro era fresco e saiu dali carregado de felicidade. Ainda quis outra vez mais já era tarde, a relva estava mais além de sua imperícia. Com um deus no ventre Ana se abriu à tempestade. Se fez luz ao novo abrigo que surgia. Com aqueles passos leves de não acordar a noite foi seguindo sua travessia. E quem sabe as tantas línguas de que são capazes um corpo sabe também que a cada uma delas corresponde um abutre. A cidade se fez mais tranqüila por um instante. O sangue parou de escorrer por um bom tempo. O carneiro ainda insistiu mas a imensidão do céu se fez muito intensa para sua ira. Sonhou com o silêncio do velho e havia mais sons naquele silêncio que nos passos apressados da multidão. Sonhou com a vila, triste e melancólica vila de azulejos. Tudo era uma questão de chão. Ali estavam as estrelas, os planetas e o clarão da escuridão. Tudo era uma questão de estômago. De vísceras. A vida era um retiro, um desterro: fagulha de um sonho na escuridão... Um pouco de vinho, um pouco de pão. Foi o suficiente para chegar até ali. Foi o suficiente para adormecer como se não fosse órfã, como se não tivesse cicatrizes no joelho, como se o sol não fosse uma perpétua maldição.        

nuno g.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

sonho.

Despertei no Jaguaribe,

na ilhota para ser preciso.

Trazia às mãos umas unhas verdes,

compridas e bem feitas.

Um boiadeiro tangia umas vacas,

à sombra da ponte as garças e um cágado.

Havia uma feira dentro da água,

muitos violeiros, muitas putas e uns cães.

Um arco-íris na direção do Quixeré,

uma escuridão pros lados das Baraúnas.

Acordei mais surdo,

o tempo cobra – nestes tempos até os juros sabem à chumbo.

Cuscuz com ovo & café com leite.

Benjamin regressou. Desentupimos as bocas do fogão.

Tudo indica que esse ano não encontrará seu término em dezembro.


Já é novembro e a chuva não cessa:

é a terra chorando as águas do futuro... 


nuno g.