sexta-feira, 26 de maio de 2017

desapontamento antibiográfico V: sangue, sêmen & mágoas.

caio, tens toda razão,
o coração não passa de um morango mofado
trancafiado num armário escuro
à prova de balas...


nuno g.

terça-feira, 23 de maio de 2017

desapontamento antibiográfico IV: a queda do céu, gente com buraco no peito & escadas para o nada.

Quando abri os olhos
  já era tarde:
o céu já havia caído
  e o buraco já estava lá
– cinzas, ossos, perfume & seda –
  era tudo que restava
um rio calado, uma cidade enfadada
  – cílios de arame farpado –
na boca até o mel sabendo a amargo...

quando abri os olhos
os mortos já estavam mortos
o fogo já em estado fátuo
– alma tem tempo próprio
se demora pra assentar coisas de dentro
limpar os trastes, arrumar a casa
se desfazer das tranqueiras
jogar fora o lixo acumulado nas entranhas
– alma vive longe
é a víscera que quando inflama canta
é o jardim que floresce quando machucado...

quando abri os olhos
esses cílios de arame farpado já estavam aqui
– cinzas, ossos, perfume & seda –
  era tudo que restava
onça ainda cantava
pedra ainda ensinava
e distante daqui,
  bem distante
corria um rio que ainda marulhava
respirava uma cidade que ainda dançava
&
embora fosse tarde
o céu já tivesse caído
e o buraco no peito fosse irremediável
havia um menino que paria borboletas
                                   tinha na pele todas as idades
e insistia em brincar de
  – com escaravelhos & estrelas –
    construir escadas
      que
        invariavelmente
          levariam outra vez
           ao nada de sempre...



nuno g.

sábado, 20 de maio de 2017

desapontamento antibiográfico I: cantares mexicanos.

tenho que te dizer
e sinto – muito –
só deus saberá quanto
você nunca esteve aqui – mesmo –
por isso talvez tenha doído mais    
por isso agora não mais
e saiba: sinto
por meus cantares mexicanos abandonados na calçada – nada –
todos os anos de león-portilla
– filologia, história, crítica & memória –  
esquecidos naquela federação de olhos ávidos
sugando seiva de árvore seca
– quase-morta –
nada muito mesmo sinto – agor
e isso tudo tão assintomático
explicitando a obviedade do fato
você nunca esteve aqui
, perdão, por ter de te comunicar,
os cantares mexicanos – nada –
desde o início estava claro
mas a paixão cega:
tua língua jamais seria capaz de soletrar o amor em náhuatl...


nuno g.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

RELÓGIO DE PONTO, por ALBERTO DA CUNHA MELO

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.

ALBERTO DA CUNHA MELO

segunda-feira, 15 de maio de 2017

...

o sadismo e a imprudência andam de mãos dadas
¡aguas!
até uma flor pode chegar a ser descartável

nuno g.

domingo, 14 de maio de 2017

...

não sou nenhum erudito
embora tenha lido algo
não sou nenhum pervertido
embora alguma pornografia tenha consumido de fato
nunca fui proletário
embora tenha uma filha e algumas horas de vida com trabalho tenha gastado
não sou muito jovem nem velho
embora goste de vestir preto e saiba bem caminhar com cajado
de alcoólatra ou junkie passo longe
embora dificilmente dispense as alucinações induzidas
meu tempo é como meus olhos
esticado pros lados horizontais
raso na vertical
e tem por centro um sol esquecido
que em tudo se assemelha
à pupila dilatada...

nuno g.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

...

Olho e o que vejo me assusta. Bem menos que o assombro que me acompanhava antes. Que me fez ser o que fui por anos e anos. Tímido, recluso e ensimesmado. A poesia foi a mão que me disse venha, o mundo não é assim de todo mal e se sim é algo perigoso esse risco vale a pena, pois no fim das contas é tudo que se tem, é tudo que se pode aqui onde estamos, agarrei essa mão de com força, como quem não tem nada mais, como quem se encontra ante o último abraço. Tempo passou, rio correu, gente veio gente se foi. Primeiro pensei que quando muito algo havia já atingido por poder cantar um blues pra esfarinhar os ossos da saudade – não era nada ainda, ou melhor: era só um bom começo; favorável a persistência, diriam os caules de milefólio. Pé quente cabeça fria, em frente sempre. Coisa melhor haveria de vir. Caldeirão que muito se mexe apura o chá que se cozinha. Ainda que se demais se mexa se estraga o feitiço. Arquitetura difícil, magia braba e delicada – obrigação de ofício, imposição do destino, sina carregada & benção de poder aniquilar algazarra toda e escutar onças cantando: de poder no meio da estúpida sucessão de imagens e futilidades olhar e ver a arcaica carroça de fogo passeando pelo vale sagrado. Ainda olho e o que vejo me assusta, mesmo sabendo tudo o que sei – mesmo tendo sobrevivido a tudo que sobrevivi. Exu me chamou e me mandou escolher. Exu me soprou um segredo que é nosso: os que sobrevivem ou os que transcendem, mas isso depende da força que tu conserva nas tuas pernas, da natureza das asas que florescem em teu espírito, das capoeiras que abrem a foice da tua imaginação. Ninguém nessa vida é maior do que pode ser. Façanha nenhuma se pode empreender para além daquele repertório que nos antecede. Só o amor abre brecha. Perdão não é pra todo mundo, compaixão muito menos. É que não são só palavras. São larvas são musgos são esperas que nos antecedem e que aguardam oxigênio de gestos nossos. São sentimentos, silêncios, abrigos antigos que espreitam nossos passos desengonçados e sussurram enquanto estamos perdidos. A tristeza ou a alegria independem do intento que move nossa fábula. A história é antiga e não nos é dado conhecer sua origem e sua trajetória, mas por um desejo estranho e tortas veredas nos chegam os instrumentos as ferramentas os mecanismos para seguir caminhando e reconectando as linhas de força que escapam à nossa vã e obcecada razão. O mundo nos antecede como o punhal antecede à mão do que o amola. Como a presa antecede à fome do abutre que a persegue. Como a ilha ao náufrago que encontra areia para seu sono e descanso à sua ânsia de entregar-se à pureza de seus delírios. Ainda sabendo disso tudo olho e o que vejo me assusta. Escrevo. Enlouqueço. Entorpeço meus sentidos e abro minha pele ao que me trouxer o amanhã. Semeei um jardim e água não havia. Semeei em terra infértil. Hoje exu venceu. No susto dos meus olhos uma delicada borboleta acena de longe dissolvendo todas as promessas que não sobreviveram à véspera...

nuno g.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Um Cartão de Visita, por Alberto da Cunha Melo

Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.

Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.

Há tão somente o mesmo túnel
de brasas que antes percorri,
e que à medida que avançava
foi-se fechando atrás de mim.

É preciso ser companheiro
do Tempo e mergulhar na Terra,
e segurar a minha mão
e não ter medo de perder.

Nada será fácil: as escadas
não serão o fim da viagem:
mas darão o duro direito
de, subindo-as, permanecermos.


Alberto da Cunha Melo

segunda-feira, 8 de maio de 2017

alívio, paralelepípedo de muitos lados.

nem todo mundo está pronto / pra receber as lições azuis do parto / tem gente que se afoga no próprio leite / tem gente que arma arapucas / tem gente que mata passarinhos / tem quem não mereça a cusparada que recebe / tem quem pense encontrar na morte a liberdade / tem quem ache que esquecimento se vende em farmácia / tem gente que é larva / gente que é vírus / gente que é lixo / nem todo mundo está pronto / pra receber as lições azuis do parto / tem quem ache que a vida é farra / tem quem sabe que o mundo é fera / tem quem pense ser possível ignorar o musgo da ressaca / tem gente que é vento / tem gente que é pedra / tem gente que é água / nem todo mundo está pronto / nem todo mundo é gente / pra uns o arco-íris é belo / pra outros é fardo / esporro / escarro / tem gente que é fogo / tem gente que é poeira / tem gente que é nada / tem gente que vive / tem gente que atrapalha / tem canto que é carne / tem quem não vale a maconha que fuma / tem canto que é faca / tem gente que é fardo / tem canto que é alma / tem gente que é só disfarce: que não vale sequer a pica que chupa / tem quem faz do próprio ego – régua medida compasso – imperativo ético da própria desgraça / nem todo mundo está pronto pra ter coração de palha / pra se deixar acolher no ninho e ser dádiva / tem gente que é nuvem: uva que apodrece antes de virar passa / tem poema que se faz com espinho & promessa de umidade / tem poema que é verde e dá flor / tem poema que é belo & áspero / tem poema que é resistente & delicado / tem poema que é cactos: oração de 116 bodes & 116 cabras.

nuno g.

Cachoeira, 18 de abril de 2017

a terceira dança do tempo

Algumas cicatrizes servem para nos lembrar do que não repetir. 
Outras nos dão vontade de sangrar novamente.

ayla andrade

pela terceira vez arranhei meu joelho na superfície da pedra
pela terceira vez sangrei em reverência e adoração
pela terceira vez engoli o silêncio e mastiguei o horizonte

nuno g.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

gracias craterdãm, gracias cachoeira, gracias fortaleza

ainda & sempre sob a má influência dos signos do zodíaco.


20 anos do cacos de cristo: 40 de planeta terra: solidão amor desesperança: o inferno no coração: fiapos de nuvens distorcidas escorrendo entre os dedos: camisa negra, calça jeans, ao som de lou reed: mantra de rutilância & escuridão: pupilas dilatadas & uma procissão de fantasmas: à sombra do sol esquecido, protegido por um daimon arcaico: pedra, rio, onça, imensidão: borboleta pousada no ombro esquerdo: sobrevoando os vales dos suicidas dos traidores dos mutilados: cultivando oceanos áridos: caminhando nos labirintos do calabouço de reticências: cruzando a floresta do esquecimento num alucinado automóvel verde: com os joelhos sangrando de tanto chão: anjo vermelho, alga marinha, mãos de passarinho: hálito de cachaça estrangulando a garganta aberta do inimigo: aprendiz do aprendiz de feiticeiro: magia & perda: costurando uma lua nova com os restos dos restos de sonhos apedrejados: fígado carcomido destilando o veneno das serpentes: regendo a frágil sinfonia do mito cósmico: venerando o amolador de punhais, o gavião e a estrela venérea que gravita entre os imperturbáveis anéis de saturno: girando a delicada roda de samsara e esperando a terceira dança do tempo: gratidão gratidão gratidão: janaína, marialice & a tarântula do paraguassú: carroças de fogo, cantos de onças, paredões de pedra: insano caleidoscópio girando entre ressentidas estrelas: nau insensata, jangada de náufragos: alguma música para ouvidos nada delicados: nenhuma paz, todos os rios, qualquer alegria: perfect day & que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês.


nuno g.