sexta-feira, 31 de julho de 2020

O mais bonito de todos os ofícios



para uma amiga filósofa, 
em seu refúgio de insurretas cartas

Houve um tempo em que todas as manhãs eles acordavam e sentavam em algum canto à espera de pessoas que queriam dizer algo. Elas chegavam, às vezes envergonhadas outras vezes desaforadas, e lhes diziam o que queriam dizer. Eles traduziam aquilo em palavras, botavam os pontos precisos para impor o ritmo necessário, envelopavam e recebiam o pago. Esse tempo não existe mais, todos agora acreditam ser capazes de dizer por si mesmo o que querem: é um tempo de tristeza e de completo divórcio com a realidade. Escrever uma carta é saber fingir, com tanta intensidade que se chega a sentir que o que se escreve resiste à pesada acareação com o que se sente de fato. Escrever uma carta é se esquecer que quando se escreve deixamos que fale o que somos, o que vive em silêncio e reclusão, o que é ao mesmo tempo travessia e muralha. O tempo, numa carta, é sempre outro. Nunca se deixa alcançar: nele toda perseguição é frustrada. Agora, que todos creem saber dizer de si por si mesmo não encontramos mais esses homens que ao escrever nossas cartas nos revelavam. Ficaram mais pobre os amores, menos pesados os lutos e as experiências foram perdendo suas intensidades. A arte do fingimento é em tudo o oposto da mentira e da vulgaridade. A palavra água deve molhar, a palavra fogo deve queimar, a palavra incenso deve perfumar e a palavra serpente só faz sentido se capaz de envenenar. Ouvi dizer que por aí andam a medir as cartas contando os caracteres que as compõem: nada mais ilustrativo da miséria que habitamos. Escrever cartas é como abrir uma oferenda – deve seguir certos preceitos, deve se abandonar certos pudores tão necessários no cotidiano. A mensagem é sempre o que menos importa – ela se resolve com a linguagem ordinária. Sei que não faltará quem me reprove e afirme que esse ofício se extinguiu com a alfabetização em massa e sei também que sim muitos que buscavam esse serviço o faziam por não dominar a arte da escrita. Mas não é desses que eu falo, não são esses o que aqui importam. Falo daqueles que sabiam que o que sentiam e desejavam dizer estava além das palavras que traziam semeadas. Falo daqueles que não sabiam fingir e que buscavam na imaginação alheia o fingimento necessário à toda verdade. E sim, toda mentira tem na verdade sua própria condição de possibilidade. Ou como me disse uma amiga filósofa: a mentira é uma exigência da verdade. Assim como a urgência e o desespero são exigências da serenidade. Que tempo triste em que ninguém oferece sua imaginação ao outro, sua capacidade de fingir e sua perícia em tentar dizer o que, por definição, não pode ser jamais dito. Quando se escreve uma carta o que menos importa é o que se quer dizer: isso se pode fazer de qualquer jeito. Uma carta exige uma forma, exige uma maneira, exige um estilo. Como qualquer lágrima exige o sal ou qualquer chuva uma alegria. As cartas são na verdade a prova mais cabal que estamos vivos. Os fingimentos que nelas forjamos são o que nos permitem seguir. Se ainda houvessem pessoas e cartas não haveria tanta reclamação sobre ficar em casa por tanto tempo e rapidamente descobriríamos que não é tão mal estarmos juntos a nós mesmos. Se ainda houvessem esses que nos traduzem e se tivéssemos a humildade de reconhecer que não somos capazes, recorreríamos a eles para que nos dissessem com suas palavras, com seus sinais de pontuação e com todos os outros apetrechos do universo da gramática. Ser escritor em nosso tempo é isso: escrever cartas impossíveis para pessoas que não existem mais. É acordar bem cedo, olhar o céu e escrever o amanhecer para que a morte se demore um pouco mais a chegar. É mais comum do que se pensa escrever uma palavra enquanto se sente outra, por isso cada escritor tem seu próprio dicionário. Para uns chuva é alegria, para outros: tristeza. Antes, quando não se sabia como associar as duas coisas era só buscar ajuda com quem com toda energia a essa tarefa se dedicava. Esses já não existem mais e as pessoas agora recorrem aos livros de autoajuda que não são livros nem ajudam ninguém: só engordam as contas bancárias dos farsantes que os escrevem e a arrogância dos fascistas que os tomam por literatura. O mais bonito de todos os ofícios já não existe mais: todos agora acreditam que são capazes de sentir o que dizem e se vestem com trajes de inocências como se fossemos capazes de sentir sem os necessários fingimentos que exige toda e qualquer verdade. O mais bonito de todos os ofícios já não existe mais, vivemos um tempo de completo divórcio com o imaginário instituinte de toda e qualquer realidade: ao nos desfazermos dos fingimentos imaginários tornamos impossível e inalcançável a autenticidade das experiências e substituímos o poético e as angústias que nos são necessárias pelas inutilidades amontoadas nas prateleiras das livrarias contemporâneas. Toda carta é um pressentimento: a beleza daquele ofício, que já não existe mais, consistia em não nos deixar esquecer que não é possível existir, sem a mentira, nenhuma verdade.

nuno g.
Cachoeira, 31 de julho de 2020

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Luto de classes


Nas pandemias, como no cotidiano: ricos sobrevivem, pobres são enterrados.
Nas crises econômicas, como no cotidiano: ricos sobrevivem, pobres são enterrados.
Nas pandemias, como no cotidiano: quem tem privilégios se resguarda, pobres são enterrados.
Pandemias não são guerras: essa é só uma metáfora abusiva e gasta.
Nas guerras, como no cotidiano: ricos sobrevivem, pobres são enterrados.
Nas guerras, nas pandemias, no cotidiano: ricos sobrevivem, pobres são enterrados.
No fascismo, como no cotidiano: ricos sobrevivem, pobres são enterrados.
Amanhã nos noticiários teremos tudo junto e misturado:
Pandemia, crise, fascismo e guerra,
como no cotidiano:
Ricos seguirão sobrevivendo.
Pobres seguirão sendo enterrados.

nuno g.
Cachoeira, 23 de julho de 2020.

sábado, 18 de julho de 2020

Teoria de um casarão do século XIX – sem nostalgia.

o banzo é uma transcendência diante dos traumas seculares
Davi Nunes

Ela lê os livros que a descobrem.
Ela lê os livros que a revelam.
Ela se lê nos livros que lhe dizem sobre não perder tempo.
Nem tudo é esquecimento.
Nem tudo é árvore.
Ela sente no corpo as sílabas que lhe pronunciam.
Ela sabe não haver mais salvação.
Ela sente na língua o sal do atlântico.
Ela se corrói, se revira e salta.
Ela vai se geografando savana – aqui não.
Ela vai, ainda que sem bússola, revisitando os fichamentos que lhe servem de mapa.
Ela é mais que ela.
Ela é ela e sua linhagem.
Ela está junta a seus ancestrais.
Nua, ouvindo jazz, ilhada.
Ela sabe que lá fora existe uma arma apontada desejando sua cabeça.
Ela sabe que lá fora existe um falo apontado desejando seu desejo.
Ela sabe que na solidão deste quarto respira uma saída.
Ela desarma a armadilha e corta os pulsos.
Ela é sua única herança.
E a cada página a miséria fica para trás.

nuno g.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Lá, por Ayla Andrade

Saudade eu sinto de nada. Saudade nem da palavra saudade. Não tenho saudade de pessoas. Nem gosto de pessoas. Nem de cartas.
Saudade eu tenho de outro tempo que eu sabia que não era feliz, mas achava que era. Achar que era feliz era a minha máxima. Era pelo menos real. A certeza de não ser feliz e permanecer achando.
Como aquele dia na praia, no sempre-verão da cidade, dias a fio arranjando como chegar no mar e de lá nunca mais sair.
Nunca mais sair é a nova regra do viver e de permanecer vivo. Permanecer por causa das pessoas de quem nem sou fã.
Fico em casa por mim mesma. Eu, a rede e esse trabalho incessante e desnecessário que me arranjaram mas que me garante o sustento.

No fim a gente vai morrer em casa, com o armário cheio de comida e com lembrança de uma saudade vaga.

Ayla Andrade

terça-feira, 7 de julho de 2020

CONSCIÊNCIA, por Renato Suttana

Dormem bem (é o que dizem)
os que têm a consciência limpa.
Também já tive a consciência limpa,
agora a tenho vazia —
o que não impede que, a cada noite,
eu continue a chafurdar na insônia.

Têm um sono de pedra (é o que dizem)
os que respeitam os ditames
da moral e vivem segundo as conveniências
da razão. Mas isso não impede...
Por ora só tenho esta consciência vazia
e, em todas as noites, a insônia.

(O dia lá fora é frio e cinzento
e enfarruscado de norte a sul,
com ameaça de chuva:
é inverno, e inverno
em todos os quadrantes.)

Dormem como dormem os peixes,
porque têm a consciência tranquila.
Também já a tive tranquila,
agora a tenho vazia,
o que não é nenhuma vantagem.
(O que não impede que, a cada noite, eu me afunde na insônia
e role de encontro
a grandes massas de pensamentos imprestáveis.)

Dormem como dormem as pedras,
mas isso nada tem a ver com consciência.

Renato Suttana

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Lúcifer, o encantado

Saudade mesmo sinto é das palavras que as pessoas escreviam nas cartas. Hoje, já não existem mais pessoas, já não existem mais cartas – o tempo sim existe, esse deus miserável que por temor ao próprio destino segue engolindo os próprios filhos como os mágicos de circo outrora engoliam fogo-fátuo. Saudade é como um dente podre implorando pra ser arrancado: ser poeta é aguentar nos ombros até a beleza de um cadáver. Não de um cadáver qualquer. Um cadáver de velho tem obrigação de trazer paz. Pelo que viveu. Pelo que sonhou. Pela ameaça que seria o futuro caso seguisse se recusando a ir ao outro lado, a regressar à morada originária. Ser poeta é aguentar nos ombros a beleza do cadáver de uma criança morta. Não te olhando. Não te chorando. Não te pedindo mais nada. Saudade sinto é das coisas que nunca vivi e que sei não me estarem reservadas. Nunca tive tanta comida no armário e posso ficar dias a fio sem fazer nada. Saudade sinto é das rezas, dos cânticos, das ladainhas e da falta de misericórdia que alegrava nossas mais terríveis madrugadas. Ouço o asno do vizinho. Ouço as galinhas da casa de farinha. Desligo o telefone. Os cães latem. Saudade eu sinto é do meu irmão Claudio. O resto tá perfeito. Não ter que ir à universidade. Não ter que escutar professores universitários. Não ter que fazer nada. Quando o mundo some só nos resta a vontade. Já enterrei dois filhos. Já enterrei pai e mãe. Já enterrei avô e avó. Já enterrei meu primo mais próximo. Sou especialista em enterrar cadáveres. Saudade eu tenho de quando fascista era um ser raro: um substantivo pesado, quase-excluído do dicionário. Do que mais sinto saudade é do ato profano de ter saudade. De vagar no labirinto de livros à procura de uma libélula solitária. Os amigos estão bem. Tenho saudade da chuva e do direito de destruir aquários: libertar as esponjas, as algas e todos os seres de sal aprisionados. Não tenho saudades de nada. Amo a casa que vivo. Amo o corpo que tenho. E quando me dizem adeus sou profundamente grato. Não há nada que me faça sair deste campo esférico que habito: o nada me respira, o nunca me pertence e o jamais é dom e é graça. As flores desconhecem a saudade, os espinhos também. Minhas mãos foram feitas para empunhar pás de areia / para enterrar entes queridos – a iluminação destes versos me acompanha: como me acompanham os tapuias jaguaribanos e o árido e inclemente sol do sertão de minha infância. Estamos cercados de trogloditas armados e isso não muda nada. Estamos cercados de impiedade e isso não quer dizer nada. A intolerância é um mais entre tantos signos com os quais fomos ferrados: e sim somos apenas um rebanho mais entre tantos outros. As nossas vacinas não serão capazes de extinguir as colmeias de vírus da terra: graças aos deuses, já exterminamos demasiadas espécies, já acumulamos demasiado karma. Agradeço a onipresença do café. Agradeço a onipotência do amargo. Agradeço a onisciência do insólito. Sei que agora sabemos que somos menos e só nos resta fazer deste mantra nossa nova forma de oração: o resto é sabotagem e desconsideração.

nuno g.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Para o ano dos loucos, por Anne Sexton

uma oração

Ai Maria, mãezinha frágil,
escuta-me, escuta-me agora
ainda que eu não saiba tuas palavras.
O rosário negro com o Cristo prateado
repousa profano em minha mão
pois sou a incrédula.
Cada conta dura e redonda entre meus dedos
é um anjinho negro.
Ai Maria, permite-me essa graça,
essa travessia,
ainda que eu seja feia,
submersa em meu próprio passado
e minha própria loucura.
Embora haja cadeiras,
estou deitada no chão.
Apenas minhas mãos estão vivas,
tocando as contas.
Palavra por palavra, tropeço.
Iniciante ainda, sinto tua boca tocar a minha.

Conto as contas como ondas,
martelando sobre mim.
Perco a conta, desanimo com o número delas,
doente, doente do calor do verão
e a janela acima de mim
é minha única ouvinte, meu ser acanhado.
Ela aceita tudo, me conforta.
Ela é a que dá alento,
e murmura,
bafejando os largos pulmões como um peixe enorme.

Cada vez mais perto,
chega a hora da minha morte
enquanto rearrumo meu rosto, retrocedo,
regrido, meu cabelo fica liso.
Tudo isso é morte.
Na mente há uma viela estreita chamada morte
e passo por ali como se estivesse n’ água.
Meu corpo é inútil.
Jaz imóvel, enrolado como um cachorro no tapete.
Entregou os pontos.
Não há palavras senão as aprendidas pela metade,
o Ave Maria e o cheia de graça.
Agora iniciei o ano sem palavras.
Noto a entrada esquisita e a voltagem exata.
Elas existem sem palavras.
Sem palavras pode-se tocar o pão
e receber nas mãos o pão,
sem som algum.

Ai Maria, médica afável,
vem com pós e ervas,
pois estou no centro.
É bem pequeno e o ar é cinzento,
como numa casa de máquinas
Passam-me o vinho como a uma criança dão o leite.
É ofertado num cálice delicado,
bojudo e de bordas finas.
O vinho em si é cor de piche, mosto e secreto.
O cálice ergue-se sozinho rumo à minha boca
e só percebo e entendo tudo isso
porque acontece.

Tenho medo de tossir
mas não falo,
medo de chuva, medo do cavaleiro
que entra galopando em minha boca.
O cálice entorna por si só
e estou em fogo.
Vejo dois filetes que descem queimando meu queixo.
Vejo-me como se fosse outra.
Fui cortada em duas.

Ai Maria, abre tuas pálpebras.
Estou nos domínios do silêncio,
o reino dos loucos e dos sonâmbulos.
Há sangue aqui
e eu o comi.
Ai mãe do ventre,
vim apenas em busca de sangue?
Ai mãezinha,
estou em meu juízo perfeito,
estou trancada na casa errada.

Anne Sexton
(agosto de 1963)
tradução: Renato Marques de Oliveira

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Proyecto de un beso- Leopoldo María Panero

Te mataré mañana cuando la luna salga
y el primer somormujo me diga su palabra.
Te mataré mañana poco antes del alba
cuando estés en el lecho, perdida entre los sueños
y será como cópula o semen en los labios
como beso o abrazo, o como acción de gracias.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y el primer somormujo me diga su palabra
y en el pico me traiga la orden de tu muerte
que será como beso o como acción de gracias
o como una oración porque el día no salga.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y ladre el tercer perro en la hora novena
en el décimo árbol sin hojas ya ni savia
que nadie sabe ya por qué está en pie en la tierra.

Te mataré mañana cuando caiga la hoja
decimotercera al suelo de miseria
y serás tú una hoja o algún tordo pálido
que vuelve en el secreto remoto de la tarde.

Te mataré mañana, y pedirás perdón
por esa carne obscena, por ese sexo oscuro
que va a tener por falo el brillo de este hierro
que va a tener por beso el sepulcro, el olvido.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y verás cómo eres de bella cuando muerta
toda llena de flores, y los brazos cruzados
y los labios cerrados como cuando rezabas
o cuando me implorabas otra vez la palabra.

Te mataré mañana cuando la luna salga,
y al salir de aquel cielo que dicen las leyendas
pedirás ya mañana por mí y mi salvación.

Te mataré mañana cuando la luna salga
cuando veas a un ángel armado de una daga
desnudo y en silencio frente a tu cama pálida.

Te mataré mañana y verás que eyaculas
cuando pase aquel frío por entre tus dos piernas.

Te mataré mañana cuando la luna salga
te mataré mañana y amaré tu fantasma
y correré a tu tumba las noches en que ardan
de nuevo en ese falo tembloroso que tengo
los ensueños del sexo, los misterios del semen
y será así tu lápida para mí el primer lecho
para soñar con dioses, y árboles, y madres
para jugar también con los dados de noche.

Te mataré mañana cuando la luna salga
y el primer somormujo me diga su palabra.

Leopoldo María Panero
Poema del libro El último hombre, 1984.