segunda-feira, 6 de julho de 2020

Lúcifer, o encantado

Saudade mesmo sinto é das palavras que as pessoas escreviam nas cartas. Hoje, já não existem mais pessoas, já não existem mais cartas – o tempo sim existe, esse deus miserável que por temor ao próprio destino segue engolindo os próprios filhos como os mágicos de circo outrora engoliam fogo-fátuo. Saudade é como um dente podre implorando pra ser arrancado: ser poeta é aguentar nos ombros até a beleza de um cadáver. Não de um cadáver qualquer. Um cadáver de velho tem obrigação de trazer paz. Pelo que viveu. Pelo que sonhou. Pela ameaça que seria o futuro caso seguisse se recusando a ir ao outro lado, a regressar à morada originária. Ser poeta é aguentar nos ombros a beleza do cadáver de uma criança morta. Não te olhando. Não te chorando. Não te pedindo mais nada. Saudade sinto é das coisas que nunca vivi e que sei não me estarem reservadas. Nunca tive tanta comida no armário e posso ficar dias a fio sem fazer nada. Saudade sinto é das rezas, dos cânticos, das ladainhas e da falta de misericórdia que alegrava nossas mais terríveis madrugadas. Ouço o asno do vizinho. Ouço as galinhas da casa de farinha. Desligo o telefone. Os cães latem. Saudade eu sinto é do meu irmão Claudio. O resto tá perfeito. Não ter que ir à universidade. Não ter que escutar professores universitários. Não ter que fazer nada. Quando o mundo some só nos resta a vontade. Já enterrei dois filhos. Já enterrei pai e mãe. Já enterrei avô e avó. Já enterrei meu primo mais próximo. Sou especialista em enterrar cadáveres. Saudade eu tenho de quando fascista era um ser raro: um substantivo pesado, quase-excluído do dicionário. Do que mais sinto saudade é do ato profano de ter saudade. De vagar no labirinto de livros à procura de uma libélula solitária. Os amigos estão bem. Tenho saudade da chuva e do direito de destruir aquários: libertar as esponjas, as algas e todos os seres de sal aprisionados. Não tenho saudades de nada. Amo a casa que vivo. Amo o corpo que tenho. E quando me dizem adeus sou profundamente grato. Não há nada que me faça sair deste campo esférico que habito: o nada me respira, o nunca me pertence e o jamais é dom e é graça. As flores desconhecem a saudade, os espinhos também. Minhas mãos foram feitas para empunhar pás de areia / para enterrar entes queridos – a iluminação destes versos me acompanha: como me acompanham os tapuias jaguaribanos e o árido e inclemente sol do sertão de minha infância. Estamos cercados de trogloditas armados e isso não muda nada. Estamos cercados de impiedade e isso não quer dizer nada. A intolerância é um mais entre tantos signos com os quais fomos ferrados: e sim somos apenas um rebanho mais entre tantos outros. As nossas vacinas não serão capazes de extinguir as colmeias de vírus da terra: graças aos deuses, já exterminamos demasiadas espécies, já acumulamos demasiado karma. Agradeço a onipresença do café. Agradeço a onipotência do amargo. Agradeço a onisciência do insólito. Sei que agora sabemos que somos menos e só nos resta fazer deste mantra nossa nova forma de oração: o resto é sabotagem e desconsideração.

nuno g.

4 comentários:

  1. Vamos tomar um chimarrão, então? Me identifiquei muito.

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  2. "Saudade mesmo sinto é das palavras que as pessoas escreviam nas cartas."abracos Nuno

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  3. Que beleza! Saudades do seu próximo conto.

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  4. um rebanho entre tantos outros.... saudade do tempo nos acreditávamos únicos? que nada. muito bom te ler, abraço nuno.

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