sábado, 11 de maio de 2024

Alzira

para André Dias,


Amanheceu chovendo.

Em cada gota d'água uma estrada para o infinito.

Todos os automóveis verdes dos meus sonhos com os motores ligados.

Avançando entre os escombros de Gaza e a cegueira da classe média.

Amanheceu chovendo.

Em cada gota d'água uma estrada para o Nada.

Todos os automóveis verdes dos meus sonhos com os motores ligados.

Avançando entre montanhas e montanhas de cansaço.

Amanheceu chovendo.

Acender uma vela ou encher o filtro.

Enfiar as mãos no barro como se houvesse algum futuro depois da estupidez.

Tamarindos, acerolas e umbus-cajás.

Amanheceu chovendo.

Todos os automóveis verdes dos meus sonhos com os motores ligados.

Alzira olha Tempo.

Hermenegildo cruza as nuvens.

Um pássaro sobrevoa o rio onde a morte se fez esquecimento e náusea passageira.

Amanheceu chovendo.

Ouço os sussurros de Adélia.

Ouço os cânticos de Alcides.

Tudo é feitiço sobre a terra.

Tudo é encantamento e evaporação.

Alzira olha as vestes de Tempo.

Hermenegildo toca a nudez da estrela.

O mundo semeia novas tempestades.

E todos os automóveis verdes dos meus sonhos avançam sobre as flores nascidas na pedra.


nuno g.

Toróró, 11 de maio de 2024.



sexta-feira, 10 de maio de 2024

haiku de outubro

Assucena comeu uma borboleta,

só conseguimos salvar uma asa:

a miração do monge dissipou o horizonte.


toróró, 10 de maio de 2024.

a eternidade dos campos-santos ou a lucidez que reluz na lâmina do pessimismo

 É que o cemitério de que lhes falo, respondia Pereda, é a cópia fiel da eternidade.

Roberto Bolaño


Estivemos em Cruz das Almas.

Passava das seis e, inevitávelmente, recordei que toda Cruz das Almas foi lugar de reza.

Que toda Cruz das Almas foi lugar de bebedeira.

Que toda Cruz das Almas foi lugar de descanso.

Que toda Cruz das Almas é lugar de passagem.

Compramos Kombucha: dez litros.

Incensos, um par de roupas e empadas.

A porta do cemitério estava batida.

Acendi a vela ali mesmo, ao pé do muro branco.

E deixei os doces ao tempo.

Talvez chovesse de madrugada e apagasse a vela.

Talvez chovesse e dificultasse o trabalho das formigas.

Passava das seis.

Regressamos.

Ao ponto zero da experiência.

Mas agora tínhamos uma raquete de matar muriçocas.

Passava da meia-noite quando a chuva chegou.

Sonhei que, finalmente, estava na ilha caribeña.

Nada no sonho recordava a revolução.

E tudo parecia tão perdido quanto todos aqui.

Assucena comeu chuchu, sem convicção.

Come-e-Dorme, em agonia, segue sua guerra pela vida.


Estive em Cruz das Almas.

A vela segue no mesmo lugar.

Os doces também.

Tem sempre uma estrada aguardando nossos mais primitivos abandonos.


nuno g.

Toróró, 10 de maio de 2024. 

quarta-feira, 8 de maio de 2024

O livro dos pequenos estremecimentos ou a trajetória da flecha em chamas

para Larissa, Alice & Assucena,


Assucena brinca com uma borboleta - tudo arde,

nada é em vão sob o sol,

essas mãos que pousam sobre o ventre da terra machucada 

encharcadas de lama roxa e luz arcaica

são as mesmas mãos que nos guiaram quando andávamos pelas entranhas da terra.


Assucena brinca com uma borboleta - tudo arde,

onde antes olhos, agora sóis

essas estrelas que nos guiam

são as mesmas estrelas que nos guiaram à sombra da distração.


Assucena sonha com uma borboleta - tudo arde, nada é em vão.

Essas mãos convidam à ceia - o pão da terra é amargo.

Essas mãos convidam ao sono - quem teme o próprio medo não deve seguir.

Essas mãos convidam a passear por ruínas e escombros:

na cidade da imaginação tudo está sempre aceso.

Não existe vida fora do risco.

Não existe vida além da poesia.

Não existe vela que arda sem intenção.

Essa Senhora que nos deu a vida nos conceda agora e sempre memória.


Assucena sonha com todas as cores nesta tarde.

Um vento fresco corre pela casa.

Haverá sempre um porto à nossa espera.


nuno g.

Toróró, 08 de maio de 2024.


o mistério das pequenas doenças ou quando a carne do Sonho sangra

Assucena come tangerina com alegria.
As mãos feridas pousam sobre a folha agônica.
Quando lhe perguntarem: tudo bem ou como estás sorria, apenas.
Esse fogo nos lábios, essas farpas entre os dentes.
O que eu quero, meu bem, é o que está sempre distante.
Senhora Obscena, eu também não me movo de mim e te agradeço.
Assucena resiste. O suco da tangerina escorre pelo queixo.
Esse fogo nos lábios de Tempo, essas carícias angelicais entre as mais discretas náuseas.
Quando me perguntarem: conhecestes a felicidade e o contentamento? receberão a mais brilhante das respostas - não importa.
As mãos e a memória das feridas sobre a folha que já é asa de pássaro livre.
Sob os escombros do viaduto, o silêncio de Orides.
Meu bem, só o que está sempre distante importa.
Antes de curar é preciso amar a ferida.
Uma e outra vez,
Além.

nuno g.
Toróró, 08 de maio de 2024