segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Natal, 2023.

para tio Edson, Bruno e todos os teólogos da libertação,


Os nazi-sionistas bombardeiam Belém.

O mundo celebra o nascimento do Palestino.

Aqui não faltou nada.

As crianças, os sorrisos, as comidas, o presépio e a Árvore do Mundo iluminada.

Os gatos também cearam.

Os cães também. 

Os pássaros cantaram.

Houve brinquedos, abraços, carinho e alegria.

Enquanto os nazi-sionistas bombardeavam Belém.

Enquanto os poetas de Gaza recitavam seus poemas de amor, firmeza e vida.

Enquanto os miseráveis da terra cumpriam sua condenação.

Aqui a lua quase-cheia brilhou no céu.

E nas dobras do seu brilho os gritos dos condenados da terra.

E nas dobras dos seus gritos o estrondo das bombas sobre Belém.

O Palestino segue sendo o mártir dos mártires.

Em seu sangue a promessa da redenção.

Aqui os estrondos foram os dos fogos pirotécnicos.

Em Gaza as bombas sobre hospitais, escolas, crianças e Marias.

Aqui comemos em abundância.

Sem esquecer a fome dos mutilados da Cisjordânia.

Os nazi-sionistas passarão.

A memória do Palestino não.

Os nazi-sionistas passarão.

Os poemas de Dom Pedro Casaldáliga não.

Maria Assucena sorriu, brincou e cansou.

Fez tanto xixi que uma lagoa se formou debaixo da rede.

Maria Alice sorriu, brincou e não cansou.

Trouxe tanta alegria que o rio, a Árvore e os olhos do Jaguar se encantaram.

Enquanto os nazi-sionistas seguiam bombardeando Belém.

Nunca a carne do mito foi tão presente.

O mundo-ocidente se esconde, se acovarda e silencia.

Enquanto os nazi-sionistas bombardeiam as crianças de Belém.

Sim, dezembro é o mês em que todas as feridas ardem mais.

Sim, dezembro é o mês em que a Estrela que guiou os Magos da Antiguidade volta a resplandecer.

Os nazi-sionistas passarão.

A Estrela, os Magos e a memória do Palestino não.


nuno g.

Toróró, 25 de dezembro de 2023.

domingo, 17 de dezembro de 2023

o joio e o trigo (súplica & agradecimento)

Sonhei com uma guerra infinita.

As sete espadas forjadas por um ferreiro africano.

E a voz e os dedos e o desespero implacável de meu avô.

Sonhei com a sabedoria dos bêbados e a cegueira dos assassinos.

Só em deus a luz translúcida.

Só em deus a pura escuridão amorfa e indefinida.

Aqui, tudo é rio e em todo rio a água se turva.

Se mistura a todos os líquidos e corre em direção ao mar.

A única exceção é essa cidade.

Onde o rio corre ao contrário e os sonhos nos possuem acordados.

Sonhei e entre o temor e a veneração depositei meus joelhos ao solo.

Curvei minha cabeça ante as nuvens.

E esperei o tempo da Serpente e da Árvore.

Anunciarei uma vez mais a promessa e o dilúvio.

Escrevi um palimpsesto breve.

Sobre coisas que nunca aconteceram.

Sobre livros de areia e garatujas indecifráveis.

Sonhei com uma guerra infinita.

Com o alcoolismo inevitável de verdades e espinhos.

Saltando sobre a saudade de meu avô.

Sonhei com lírios brancos acesos entre outras ervas.

E com cachoeiras anteriores a meu nascimento.

Amanhã será outra vez tempo de festa.

As sete flechas forjadas por um ferreiro africano.

Eram também os sete raios da anunciação.

Agora é tempo de descansar.

Lavar os pratos, cuidar da limpeza dos lençóis, cozinhar bem os alimentos.

Enquanto a Serpente e a Árvore vão movendo os sedimentos.

Abrindo túneis entre o Nada e o Nada.

Sob a terra, luz e escuridão se amalgamam.

E todos os rios na fervura de meu sangue.

Sonhei com os olhos em brasas do Jaguar.

Olhando a lua.

Olhando o rio.

Olhando o Trono forjado pelo ferreiro africano.

Amanhã será outra vez festa de Tempo.

Amanhecer de carnes e incensar de ossos.

O que é meu e o que é do mundo.

Unidos e separados.

Como o que é homem e o que é cavalo.

Nos centauros da Tessália.

O que é meu e o que é do mundo.

Nessa guerra sem trégua de sonhos e túmulos de azulejos azuis.

Nessa praia de gaviões onde avistei o horizonte.

Flechas, espadas e arcos coloridos.

No interior profundo da mata sombria trabalha um ferreiro africano.

E, aos seus pés, curvo minha cabeça em devoção.


nuno g.

Toróró, 17 de dezembro de 2023.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Hermenegildo.

Hermenegildo passou antes do sol nascer.

Sua silhueta a cavalo recortou a paisagem.

Me deu bom dia com voz de rio.

Hermenegildo, perfumado de alecrim e azeite.

Com seus olhos de facão e foice.

Abrindo o caminho de volta à terra arrasada.

*  *  *

Hermenegildo passou e o sol nasceu.

Sua voz de rio estancou ante meu amanhecer.

E com as ferramentas suas fui abrindo o caminho.

Hermenegildo me soprou um silêncio frio.

E me apontou com o olhar as três Marias ainda no céu.

Outra vez a hora de inventar um dialeto para bendizer.

*  *  *

Reza em mim que eu te perco da salvação.

Judite e Adélia cruzaram o caminho.

Alguém serviu um prato de comida aos deuses e outro aos cães.

A lua, minguante e terna, desapareceu atrás da serra.

Reza em mim que eu te salvo da perdição.

Sonhei com o sal, o mar, a sede e o corpo de Larissa.

Ela estava mais velha e eu ainda era um menino.

Nossas Marias haviam seguido viagem.

E nossos corpos celebravam todas as passagens.

*  *  *

Reza em mim e chove que essa seca já muito tarda.

Hermenegildo pronunciou o nome de Miguel sobre os maturis.

O rio está bonito hoje - na voz noturna de Larissa o tempo girou ao contrário.

Amanhã nossas Marias estarão juntas novamente.

Nas matas sombrias e no esverdeado coração das águas.

*  *  *

Suportar a dor extenuante.

Abraçar as brasas que não se extinguem.

Reza em mim e o sol se fará dicionário para a cura e para a morte.

*  *  *

Reza em mim e me rega com fogo.

Todas as estrelas no olhar de Hermenegildo.

Sonhei com Larissa coberta de sal e vestida de azul na praia do Montecristo.

Envelheci tanto que me tornei mais jovem do que o dia em que nasci.

O tempo se enrodilhou nos seus cabelos encaracolados.

Semeou serpentes e arco-íris entre eles.

E um vento de quarta-feira nos recordou nossas Marias.

*  *  *

Sentamos numa pedra.

Avistamos o Gavião.

Reza em mim e será como se me rezares eternamente.


nuno g.

Toróró, 13/12/2023.

domingo, 10 de dezembro de 2023

a dor que habito - canção de fim de ano.

Haverá um tempo em que tudo será diferente.

Não será amanhã, nem depois de amanhã.

Não haverá mais luto no coração da pedra.

E as nuvens poderão descarregar os sonhos que guardam.

Haverá um tempo em que todos os temores serão imaginários.

Não será amanhã, nem depois de amanhã.

E nós que aqui estamos não mais aqui estaremos.

Mas nossas sombras e nossas sedes e nossas fomes seguirão presentes.

Haverá um tempo em que tudo será distinto.

E a palavra encontrará seu próprio eco.

Assim como hoje o escuro encontra o escuro.

Haverá um tempo em que luz será uma metáfora gasta.

Não será amanhã, nem depois de amanhã.

Os raios abençoarão a terra.

Destruirão os castelos.

E as crianças se banharão nos rios outra vez.

Haverá um tempo em que os periódicos serão substituídos por poemas.

E que traduzir lágrimas será considerado algo honrado e honesto.

A justiça deixará de ser o que é agora.

E o conhecimento dará passagem à Sabedoria.

Velha senhora, amiga-irmã da morte.

E, de mãos dadas, as duas caminharão pela cidade vazia, esgotada.

Dezembro, às vezes, é o primeiro mês do ano.

Mas também é o tempo em que ardem com mais intensidade as feridas.

Haverá um tempo em que olhar para trás será mais que um mero exercício aeróbico.

E que o horizonte estará mais próximo do alcance de nossas línguas.

Haverá um tempo em que os sonhos nos guiarão pelo mundo.

Que o vento da tempestade varrerá com força nossa cegueira.

Nos sentaremos à mesa e comeremos o que nossas próprias mãos prepararam.

Haverá um tempo em que árvores e presépios tornarão a ter sentido.

E a Sabedoria, velha senhora, amiga-irmã da morte.

Vestida de roxo e de realidade.

Nos abraçará como se a dor nunca tivesse sido nossa primeira e única habitação.


nuno g.

Toróró, 10 de dezembro de 2023.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Agô!

para Lari,


O sangue dessa cidade sabe a dendê.

E sua cor é a da dor.

Aqui, muito se medita quando se sonha com machado ou fogo.

Eguns, ladeiras, ebós, encruzilhadas.

Aqui muito dói toda memória.

O sangue dessa cidade sabe à dor.

E sua cor é a do azeite.

Aqui, muito se medita quando se sonha com palha ou água.

O cheiro dessa cidade arde.

Orixás, Inquices, Voduns e Caboclos.

Aqui, muito se medita quando se sonha com serpente ou arco-íris.

Aqui muito se medita antes de esquecer.


nuno g.

descendo a Serra de Muritiba, 27 de novembro de 2023.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O sonho de Hermenegildo

Hermenegildo sonhou que era pássaro.

E, como todo pássaro, aprendeu o medo de quebrar a asa.


Quando o sol se põe Maria entristece, encabula.

Não pela noite que é, desde sempre, sua melhor amiga.

Mas pelo banho que se avizinha.

Ainda com os aromas dos chás, Maria não.

Hermenegildo sonhou que era beija-flor.

Botou o barco nas águas.

E voou.


nuno g.

Toróró, 27 de novembro de 2023.

sábado, 25 de novembro de 2023

Lonjuras.

Caminhamos até o Rio do Corte.

Nome bonito para dizer o lugar onde águas e navalhas se confundem.

Os tambores de São Luís e os atabaques da Rua da Feira no mesmo vento.

E o coração tão distante quanto disparado como uma segunda pele.

A luz à carne sonâmbula despertando.

Hermenegildo cruzando a montanha em chamas.

E os lábios pronunciando uma nova palavra.

Nome bonito para dizer o lugar onde morte e cura se confundem.

Adélia com seu vestido de missa e sábado.

E os dois cães rezando a Tempo e passagem.

Janeiro já chega com seu vento e seu rio.

E as onças dos sonhos sabendo à mais-realidade.

Árvores me começam.

Árvores me semeiam.

Árvores me devoram.

E vão me desensinando a ser humano.

A se libertar das folhas, das penas e dos primeiros grãos.

Judite cruzando a montanha em chamas.

Tempos de três sóis para cada ser.

Horizonte estreito, fenda na foz onde nasce a larva.

O som do choro de Maria antes de nascer.

A relva onde caminhará entre fogos e águas.

Serpente que é - à frente outra Maria.

Depois do fim do mundo ainda a incerteza sobre o que é o antes da lâmina ser rio ou navalha.

Os indíos todos aqui.

Dançando. Dançando. Dançando.

Como se as nuvens fossem uma bebida ofertada pelas divindades.

Hermenegildo, sempre ele, mergulhou nas águas (ou seria sangue?) do Rio do Corte.

E o sol nasceu por detrás do pasto da Maria Preta.


nuno g.

Toróró, 25 de novembro de 2023.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Atabaques.

Tardei, mas.

Me vieram as forças e a permissão de roçar as asas daquela noite.

A mulher ao meu lado razão e leite e perfume de.

Paisagem da janela na voz do Caçador de Si.

Todos os fogos explodindo à beira do rio que é todos os rios.

23 de novembro - nunca mais um dia qualquer.

Azia. Serenidade. Clamor de chuva.

Adélia, Hermenegildo e o inventário das coisas que sabem a pássaros.

Sobre sementes e árvores e baús onde se guardam artefatos explosivos.

Tardei, mas.

Eles eram muito mais antigos do que tudo o que até então chamei de antigo.

Eram arcaicos e enigmáticos.

Tremiam. Abraçavam com muita força. E nos fizeram leves.

Nos ensinaram o necessário.

Se desfazer das folhas, se desfazer das penas, se desfazer das máculas.

Tardei, mas.

Voltei a sentir o fio de prata me atar à terra.

De tão terra que eram soavam como nuvens.

Traziam a morte e a vida dentro. Traziam o Silêncio.

O Impronunciável.

Corpos-montanhas.

Já faz tempo, mas não esqueço.

Estão nessa razão e nesse leite da mulher que ao sofá amamenta agora.

Estão nessas árvores que crescem.

Estão em tudo que recorda esse 23 de novembro.

E dessa paisagem da janela aberta pela voz da onça verdadeira os vejo.

Os sinto. Os reverencio.

E a Eles rogo: razão, leite e afeto sem máculas.

Tardei, mas.

Voltei a sentir o fio de prata que me ata à terra.

E agora posso roçar de leve o que ocorreu naquela noite.

E, finalmente, ouvir a voz poderosa e sedutora da morte.


nuno g.

Toróró, 23 de novembro de 2023.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Anaeróbicos.

para Larissa & Gabriela,


Testemunho, enredo, caminho, seguimento.

Os povos que vivem na ausência de ar.

Que se reproduzem na ausência de ar.

Que se realizam na plena ausência de ar.

Difícilmente se revelam aos olhos dos povos de Ar.

Quase nunca se deixam ver pelos olhos dos povos de Fogo.

E nunca se permitem ser tocados pelos povos de Água.

Os anaeróbicos existem.

Como os arco-íris ou as plantas carnívoras.

E embora pareçam absurdos nada neles difere de tudo que existe.

Trazem a marca de estar aqui como todos.

Os afetos maculados.

A sombra do Karma.

A suspeita sobre o destino.

E a anomalia da memória que recorda coisas não-vividas.

Testemunho, enredo, caminho, seguimento.

Rio que corre em busca de um nome.

Vento que sopra em direção à sua própria origem.

Onça que quando canta redesenha todo o cosmos.

Os povos da Terra são os únicos com quem os anaeróbicos conversam.

E o conteúdo dessas conversas é de um sigilo vulcânico.

Usam palavras de larva em seus diálogos.

E quando se movem o fazem como se fossem placas tectônicas.

Dos nossos medos conservemos apenas os imaginários.

Testemunho, enredo, caminho, seguimento.

Sonhar com onças é sempre bom presságio.

Seja qual for a cor em que elas se apresentem.


nuno g.

Toróró, 22 de novembro de 2023.

sábado, 18 de novembro de 2023

Oráculo da Onça Parda

à posta do sol

em torno às brasas

palavras girando

kaftas de Beirute

um galho quebrado

renascendo ao sabor das águas

bistecas de porco e linguiça apimentada

palavras girando

Maria Flor à casa da árvore

um galho quebrado

renascendo sob a férrea vontade do fogo

severo chão

e + kaftas de Beirute

palavras girando

vento trazendo histórias de lonjuras

Moçambique, Cisjordânia, Uruguay

à posta do sol

Maria Assucena ao colo da lua

olhando a lua no céu

em torno às brasas

palavras girando

Maria, Maria, Marias...


nuno g.

Toróró, 18 de novembro do ano de 2023 da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, Além.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Efêmeros em palavras efêmeras, por Mahmoud Darwish

1.

Vocês que passam com palavras efêmeras,

levem seus nomes e vão embora

tirem suas horas do nosso tempo e vão embora

roubem à vontade do azul do mar e das areias da lembrança

tirem fotos à vontade, e assim vão saber

que não hão de saber

como uma pedra da nossa terra constrói o teto do céu.


2.

Vocês que passam com palavras efêmeras

de vocês vem espada, de nós vem nosso sangue

de vocês vêm fogo e aço, de nós vem nossa carne

de vocês vem outro tanque, de nós vem pedra

de vocês vem a bomba de gás, de nós vem chuva.

Um mesmo céu e um mesmo ar nos cobre

peguem seu quinhão do nosso sangue, mas vão embora

entrem no jantar dançante, mas vão embora

temos que zelar pela rosa dos mártires

temos que viver como a gente quer!


3.

Vocês que passam com palavras efêmeras,

como a poeira amarga, passem onde quiserem, mas

não passem entre nós como insetos com asas

temos o que fazer na nossa terra

temos trigo a criar e regar com o orvalho do nosso corpo

temos o que a vocês aqui não agrada:

temos pedra... e perdiz!

Levem o passado, se quiserem, ao mercado das quinquilharias

devolvam, se quiserem, o esqueleto do passarinho ao prato de porcelana.

Temos o que não lhes agrada: temos o futuro

temos o que fazer na nossa terra.


4.

Vocês que passam com palavras efêmeras,

soquem seus dramas num buraco abandonado e vão embora

voltem atrás o ponteiro do tempo até o bezerro sagrado

ou até o disparo ritmado do revólver!

Temos o que a vocês aqui não agrada, então vão embora

temos o que por dentro vocês não têm:

uma pátria que jorra um povo que jorra uma pátria

que combina com esquecer e lembrar.

Vocês que passam com palavras efêmeras,

é hora de irem embora

de morarem onde quiserem, mas não entre nós

é hora de irem embora

de morrerem onde quiserem, mas não entre nós

temos o que fazer na nossa terra

aqui temos o passado

temos a primeira voz de vida

temos o presente, o presente e o que está por vir

temos o mundo aqui e temos a outra vida

saiam da nossa terra, do nosso deserto, do nosso mar

saiam do nosso trigo, do nosso sal, da nossa ferida

de tudo

saiam das lembranças da nossa memória,

vocês que passam com palavras efêmeras.


Mahmoud Darwish.

tradução: Alexandre Facuri Chareti, Beatriz Negreiros Gemignani, Camila Alcântara, Renata Parpolov Costa, William Diego Montecinos.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Ode à Cachoeira

Existem cidades que são somente cidades

Lugares onde as pessoas vivem

Outras cidades são prólogos, prefácios, pequenos pressentimentos

Existem cidades que são somente lugares

Onde as pessoas vêm e vão

Como as algas marinhas

Ao sabor das marés

Outras são como oráculos encravados à flor da terra

Nos recordando quem somos, de onde viemos e para onde vamos

Existem cidades que são feitas de fogo e água

Nelas não habita o acaso

As esquinas gritam e sussurram a depender de coisas que nos escapam

Existem cidades que são somente cidades

Onde os sonâmbulos caminham

Outras acendem escuros e abrem túneis debaixo da crosta do corpo

Existem cidades que são só passagem

Outras são ancoradouro de rios e galáxias

Existem cidades onde tudo é espera

Lugares onde tudo que acontece recorda a presença do Nada

Outras são todas elas presságio

Reminiscências do mistério que nos acompanha desde o berço

E memória profunda da morte que nos aguarda.


nuno g.

Toróró, 12 de novembro de 2023.

sábado, 11 de novembro de 2023

O monstro Zack. (série poemas para crianças - 02)

Era uma vez um monstro chamado Zack

Ele era roxo, todinho roxo

E as crianças o chamavam de monstro porque ele devorava todos os bichinhos

Ele comeu os bichinhos da floresta

Ele comeu os bichinhos do deserto

Ele comeu os bichinhos do mangue, dos rios, dos mares

O monstro Zack veio do reino do Nada

E antes do arco-íris desaparecer ele atravessou o portal

E assim chegou no reino da Magia

As crianças do reino da Magia ficaram muito tristes

Pois não havia mais bichinhos pra elas brincarem

Então elas se reuniram e decidiram salvar os bichinhos

Agarraram uma lança com a ponta muito afiada

E furaram o bucho do monstro Zack

Saiu bichinho pulando pra tudo que é lado

E as crianças voltaram a brincar e a sorrir

Entre os bichinhos havia um verdinho verdinho como as algas de açude

O nome dele era Saudade

E desde aquele dia ele anda aprontando traquinações no reino da Magia


nuno g.

Toróró, 11/11/23.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

O navio. (série poemas para crianças - 01)

Havia um navio encalhado no mar
Do aterro da praia se via o navio
Ancorado em seu próprio peso
Havia uma aranha que andava sobre as águas do mar
A aranha ia e vinha
               vinha e ia
Da praia ao barco
Do barco à praia
E trazia as pontas das patas branquinhas
Da cor do sal da espuma do mar
No barco havia uma girafa de asas alaranjadas
E uma zebra com uma língua de fogo
Ou talvez fosse o contrário
Uma girafa com língua de fogo
E uma zebra com asas alaranjadas
Haviam outros animais que não recordo
E outras cores além do verde do mar
Atrás da praia uma coluna de prédios
Árvores de concreto feias e autoritárias
Insistindo em tentar apagar as histórias mágicas do mar
Era uma vez um navio com animais africanos
Encalhados no mar de Iracema
E um índio sentado na praia sonhando
No sonho do indío uma aranha com as pontas das patas branquinhas
Andava sobre as águas do mar
Ia e vinha
Vinha e ia
Do barco à praia
Da praia ao barco
Escrevendo histórias mágicas do mar
Sobre navios, animais, cores, espumas, asas
E outras palavras da bonita língua do mar

nuno g.
Toróró, 08/11/23

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

A chuva. (série poemas para crianças - 00)


Nasceu uma chuva dentro de mim

Uma chuva sobre uma ilha

E dentro da chuva nasceu uma borboleta

Uma borboleta nadando num lago bravo

Em meio a um vale algo mágico

E nas pupilas da borboleta nasceu uma flor

E na cavidade da flor nasceu uma luminosa ilha

Uma ilha onde choviam chás de ervas

Alfazema, camomila, arruda, alecrim

Benjoim e outras ervas que nasceram entre os raios

Da chuva que chovia na ilha

Nasceu uma chuva dentro de mim

Um jaguar correndo no meio da chuva

Um jaguar cruzando um largo rio

Um jaguar proseando com borboletas e flores

Nasceu um jaguar dentro de mim

E nas pupilas do jaguar duas luas

Uma cheia, outra nova

E dentro dessas luas se ouviam canções de ninar

Tão perfumadas quanto a alfazema

A camomila, a arruda, o alecrim


A flor pousou na asa da borboleta

Kakituramba choveu chá de benjoim

E novas águas nasceram dentro de mim


nuno g.

Toróró, 07/11/23

domingo, 29 de outubro de 2023

os cemitérios de Ouro Preto

Bruno nunca pode esquecer nossa pereginação aos cemitérios barrocos.

O que sim ele esqueceu é que também fomos ao mosteiro budista.

E à casa do rasta que cultivava ervas sagradas.

Isso faz tempo, muito tempo.

São reminiscências que me povoam.

Como aquele show do Arrigo Barnabé.

Ou a alegria nos olhos de Malu se preparando para ir à fliquinha.

Enquanto o gavião pousou no horizonte de Gabriel.

A lua está aqui - como esteve em cada cemitério de Ouro Preto.

E depois de depois de amanhã é finados.

O caracol vem chegando sem pressa.

Estávamos em Minas. 

Terra de Milton, onça verdadeira, voz de deus, cio da terra.

Assucena acorda.

Adeus mosquiteiro / pulgas e carrapatos vão brincar no chiqueiro.

Também recordo Bruno fazendo a família parar a ouvir Bob Marley.

Reminiscências de um futuro tão distante e tão próximo.

Enquanto as bananas da terra cozinham e piso no pilão a canela.

Romeu é um gato educado e cheio de charme.

Alice o batizou assim.

Meu avô, seus cigarros e um copo de whisky.

É o único que me chega daquelas fotos do Recife.

O resto é névoa e neblina.

O resto é escuridão e a triste farsa dos que temem a morte.

A lua, o gavião, a serpente e o cio da terra na voz de Milton.

Adeus mosquiteiro / pulgas e carrapatos vão brincar no chiqueiro.

O Velho em forma de pássaro alaranjado.

O medo do medo de Gabi soprando na brisa do amanhecer.

Alice ensaia ensaia ensaia.

Já será Senhor dos Mares empunhando tridente entre barcos piratas.

As bananas estão cozidas / A canela feita em pó.

Finados está chegando - eu e minhas ruínas e o amor ao mistério.

Adeus mosquiteiro / pulgas e carrapatos vão brincar no chiqueiro...


nuno g.

Toróró, 29 de outubro de 2023.


sábado, 28 de outubro de 2023

lua cheia.

hoje é lua cheia.

Na Cisjordânia camponeses são assassinados enquanto colhem azeitonas.

Assucena conheceu dona Antônia.

E eu fiquei olhando como se olhavam.

As duas extremidades do arco.

O silêncio atravessando a troca de olhares como uma flecha.

Meu coração disparado.

Céu quase tão azul quanto o de Durango ou o de Iguatu.

Banhei Assucena com alfazema.

Minha mãe selvagem está com água nos pulmões.

Acendi uma vela para ela.

Por sua saúde e sua firmeza.

hoje é lua cheia.

Na Cisjordânia fascistas assassinam camponeses enquanto colhem azeitonas.

Finados se aproxima como um caracol, lentamente.

Não esqueço a flecha.

Não esqueço o arco.

hoje é lua cheia.

Meu coração disparado.

Maria Alice ensaia ensaia ensaia.

Domingo que vem ela será Tritão no teatro.

Será pai por primeira vez, depois de onze anos sendo filha.

Meus olhos marejam.

Estou velho, cansado e solitário.

Tenho a poesia. 

Tenho essas Marias que o astral me concedeu para me guiarem.

Tenho essa Senhora que me ensina com suas mãos de Lama.

Tenho essa Senhora que me lava os olhos com mel.

Tenho essa certeza que não fosse a poesia não estaria aqui.

Ainda assim haveria um colono enforcando um camponês enquanto colhe azeitonas.

hoje é lua cheia.

Desde sempre dona Eliana Gonçalves.

Toda luz e radiância no meio do céu.

Como essa pedra no meio do terreiro.

Como os olhos de Assucena no centro dos olhos de dona Antonia.

Como Maria Alice no meio do palco do teatro.

Como a razão e o leite no centro do corpo de Larissa.


nuno g.

Toróró, 28 de outubro de 2023.

Dádiva.

Adélia sabe dizer das coisas de deus - carrego essa força comigo.
Escrevo com Assucena no colo.
Escrevo com Alice no colo.
A mulher que traz a razão no corpo agora também traz leite em si.
Hermenegildo passa com o olhar perdido na outra margem do rio.
Onde a montanha queima criminosamente.
As cobras, os pássaros, os tatus, os lagartos encontram a morte.
Alguns conseguem escapar e caem nos telhados das casas de São Félix.
A estiagem segue. Rego as plantas antes de escrever.
O Senhor do Fogo me exige ser todo justiça.
O Senhor da Pedra me exige ser todo firmeza.
A mulher que traz a razão no corpo desayuna uma canja de galinha.  
Adélia sabe dizer coisas que eu não sei - carrego esse amor comigo.
Cleonice passa na estrada falando de sua roça.
Judite passa na estrada falando de sua égua.
As duas pisam no mesmo chão onde pisara Hermenegildo.
Sylvia Plath escreveu sobre o caçador de mamangavas e eu chorei depois que Alice partiu.
Ela escutou o conto com atenção e em seguida foi brincar junto ao fogo.
Assucena teve um dia difícil.
Muitas são as agruras do encarnar.
Estar aqui exige muito.
Leite, razão, colo, fé.
Penso em Jó todos os dias.
E quando o Cavaleiro passa cantando meus nervos bailam.
E quando o Caçador passa sua flecha me atravessa.
E quando o Anjo Azul se deixa avistar tremo.
Já é sábado, finados se aproxima.
Como um caracol que anda devagarzinho.
Tenho que ir dar voltas de rua hoje.
Comprar uma vela pra minha mãe da floresta que está adoecida.
Comprar pão, broa de milho e colher flores pra mulher que tem a razão e o leite no corpo.
Papai, passou rápido o tempo, quando eu estava aí ela tinha dez dias, agora já vai fazer um mês.
Passa rápido o tempo.
Quem sabe das coisas de deus saberá das coisas de tempo.
Em Minas existe uma cidade chamada Divinópolis.
Nessa cidade existe uma rua chamada Ceará.
É lá que vive Adélia - a poeta que me ensinou a ver com olhos livres.
Tenho que ir à rua. Minha mãe da floresta está com água nos pulmões.
Preciso lhe acender uma vela em agradecimento.
Nós sim sabemos que a morada da vida é no coração da morte.

nuno g.
Toróró, 28 de outubro de 2023.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Verão

Ainda estamos em outubro e já arde um sol pra cada um no céu.

As plantas estão tristes.

Os animais acabrunhados.

Um bom leitor sabe quando a frase flui.

Um bom leitor reconhece quando o estilo dita naturalmente o ritmo.

Um bom leitor reconhece no espelho do texto a guerra que o origina.

Um bom leitor sabe que tudo é ficção.

A verdade dessa primavera é a estiagem.

E essa espera de trovoada na qual se encontra mergulhada toda a cidade.

O rio segue sereno.

E as bombas seguem caindo do outro lado do mundo.

Deixando órfãos e semeando ódio no horizonte.

A verdade dessa estiagem é o resguardo.

E esse temor ao verão que se anuncia.

O calor nos evapora.

O calor nos resseca por dentro.

O calor derrete coisas que não nos servem mais.

A verdade desse resguardo é a trovoada.

Ontem levamos Assucena para fazer o exame de audição.

Bestagem - ela escuta mais que nós.

Ouve com perfeição eguns e encantados.

E sonha muito além do que nos é dado sonhar.

Um bom leitor sabe que não existe verdade além da ficção.


nuno g.

Toróró, 27/10/23.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

O vestido branco de dona Eliana Gonçalves.

Alice, esse vestido foi da sua vó, agora é seu.

Gêgê, um dia esse vestido vai ser seu também.

Seu pai gosta de rio, eu gosto de mar.

Sentamos na pedra no meio do terreiro.

A vela acesa, o perfume do incenso.

Correu um vento.

Alice guardou o vestido na mala.

Gêgê tornou a mamar.

E Gabi se perdeu tentando ler as tortas linhas das nossas mãos...


nuno g.

Toróró, 25 de outubro de 2023. 

terça-feira, 24 de outubro de 2023

ao som de David Bowie na feira de Cachoeira

 para Campos de Carvalho,


olhei as estrelas e a igreja dos remédios

pisei onde antes o trailer de dona Irá

e lhe estendi a mão em sinal de benção

um sapo cruzou meu sonho

com uma enorme língua de fogo acesa

e uma voz vinda de muito longe sussurrou

tenho medo, tenho medo, tenho medo

olhei outra vez a igreja dos remédios e as estrelas sobre a feira vazia

pisei na vazante do Jaguaribe

onde antes pisara o Touro que tem a cabeça enterrada no Icó

e as onças que nunca pararam de cantar

um louva-deus pousou no ombro esquerdo do meu sonho

e a voz longínqua tornou a sussurrar

tenho medo, tenho medo, tenho medo

às vezes os moribundos aguardam anos a permissão dos seus para descansar

às vezes o medo nos proteje como um Anjo que conhece o futuro

mas muitas vezes o medo nos cega e nos ata ao que devíamos abandonar

a voz de David Bowie se fez ouvir entre as estrelas

as portas da igreja dos remédios se abriram

dona Irá me concedeu sua benção

acariciou as coroas das cabeças de minhas duas Marias

e a luz do sol foi se esparramando sobre a feira

enquanto os primeiros transeuntes chegavam com suas frutas, verduras, legumes

e o cheiro de café e de cigarro inundava a primavera do sonho...


nuno g.

toróró, 24/10/23.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

o último poema de Heba Abu Nada

A noite na cidade é sombria, 

exceto pelo brilho dos mísseis; 

silenciosa, exceto pelo som do bombardeio; 

aterrorizante, exceto pela promessa tranquilizadora da oração; 

escura, exceto pela luz dos mártires.

Boa noite.


La noche en la ciudad es oscura, 

excepto por el brillo de los misiles; 

silenciosa, excepto por el sonido del bombardeo; 

aterradora, excepto por la promesa tranquilizadora de la oración; 

negra, excepto por la luz de los mártires. 

Buenas noches.


Heba Abu Nada.

24/06/1991 - 20/10/2023.

sábado, 21 de outubro de 2023

Eliana e as onças III


para Gaeth Castanheiro,


o acerto pode ser incerto

mas o erro tem que ser exato

Gaeth Castanheiro


o tempo mergulhou em sépia a lua

lágrimas de tornassol se esparramando

pelos Caminhos da Aranha do Destino


o tempo mergulhou em sépia o sol

e a casa onde a morte se gestou em vida

areando os olhos cegos aferrados à escuridão da matéria


o tempo mergulhou em sépia a luz das estrelas

as sertanejas sussuaranas, Marias

reencontradas na ancestral suicidada 


nuno g.

Toróró, 21/10/13


sexta-feira, 20 de outubro de 2023

o mundo feito com as mãos, por Demetrios Galvão.

no universo antropomágico
do mundo feito com as mãos
existem seres bonitos em sua simplicidade
uns visíveis e outros invisíveis
essa comunhão que frutifica
uma espiritualidade suave

de mãos dadas com a mística do mundo
o ciclo cósmico renova ruínas
e a força transformadora
produz alimentos
molda idades abstratas
reluz palavras na escuridão

a humanidade come na mão da natureza

 

 

Demetrios Galvão (Teresina/PI, 1979) é professor, poeta e editor. Autor dos livros de poemas Fractais Semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), O Avesso da Lâmpada (2017) e Reabitar (2019). Também publicou  o objeto poético Capsular (2015) e a plaquete A Inconstância dos Fluxos (2023). Tem poemas publicados em diversas antologias e revistas literárias. É coeditor da revista Acrobata em atividade desde 2013 – https://revistaacrobata.com.br/

 

el mundo hecho con las manos, # Tradução por Gladys Mendía.

 

en el universo antropomágico

del mundo hecho con las manos

existen seres hermosos en su simplicidad

algunos visibles y otros invisibles

esta comunión que fructifica

una espiritualidad suave

 

de la mano de la mística del mundo

el ciclo cósmico renueva ruinas

y la fuerza transformadora

produce alimentos

moldea edades abstractas

brilla palabras en la oscuridad

 

la humanidad se alimenta de la mano de la naturaleza

 

 

Gladys Mendía, escritora, tradutora e editora na LP5.

 

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Prece às crianças de Gaza

Crianças de Gaza,

De tão longe lhes escrevo

Que quase duvido que me ouçam

Desertos e oceanos me atravessam

Quando nos olhos de minhas filhas, Marias

Avisto as bombas que caem sobre vossas casas

Como pássaros desnorteados posuídos pelo espírito da morte

Quando no choro de minhas filhas, Marias

Ouço o choro assustado que escapa de suas gargantas

Como súplicas de prisioneiros sob as perversões de um carrasco

Que desconhece qualquer limite às suas fantasias de torturador

Crianças de Gaza,

Lhes negam água

Lhes negam abrigo

Lhes negam comida

Mas não podem lhes negar minhas lágrimas

Não podem lhes negar minhas preces

Não podem lhes negar minha poesia

Oceanos e desertos lhes atravessam

E unem os olhos de minhas filhas, Marias, aos seus olhos

Crianças de Gaza,

Algum dia vocês olharão para trás

E verão o horror a ira e a covardia

Destruindo vossas infâncias

Ouvirão o som das bombas e a pulsação das cicatrizes latejando em seus corpos

Vocês nunca deixarão de ser o que são

Nunca poderão esquecer o que estão vivendo agora

Nem o que viveram vossos pais e vossos avós

Crianças de Gaza - Alláh não as abandonará

Nele encontrarão seus indecifráveis oráculos

E os misteriosos labirintos da existência

Nele encontrarão a pedra firme onde ancorar seus íntimos desesperos

Crianças de Gaza,

Sórdidos homens de corações impuros

Mergulham suas infâncias na dor e na amargura

Mas suas almas permanecerão ilesas e intocadas

Na abundância em que crescem minhas filhas, Marias

Saltam como rãs no pântano

As misérias de suas existências

Crianças de Gaza,

Seus pais com armas, fé e angústia descomunal

Tentam lhes devolver a Terra Prometida

Crianças de Gaza,

Suas mães se fazem água para que não morram de sede

Suas mães se fazem pão para que não morram de fome

Suas mães se fazem esperança para que não morram de desgosto

Suas mães se fazem azeite de oliva para que não desconheçam a doçura

Suas mães se fazem tecidos para vestir vosso supremo sofrimento

Crianças de Gaza,

O mundo assiste a tudo e não faz nada

Como um estúpido espectador ante um espetáculo de entretenimento

Somente os seus se fazem escudos para que as bombas não caiam sobre vossas pequeninas cabeças

Crianças de Gaza,

No sono sereno de minhas filhas, Marias

Avisto os destroços de vossas infâncias

Ouço a indiferença absurda do mundo ante o vosso supremo sofrimento 

Crianças de Gaza,

A poesia nada pode ante a realidade e a crueldade e o absurdo do mundo

Crianças de Gaza,

Vosso clamor é o clamor de todos os oprimidos da terra

Alláh nunca as abandonou

Alláh nunca as abandonará

Nas ruínas dos hospitais destruídos pelas bombas

Nas ruínas das escolas destruídas pelas bombas

Nas ruínas dos versos dos grandes poetas palestinos

Nas ruínas das místicas árabes e do sufismo

Nas águas dos desertos e na áridez dos oceanos

Vocês encontrarão a matéria-prima e as reminiscências da Terra Prometida

Vocês encontraram o alimento e o abrigo que lhes negam agora

Crianças palestinas

Lhes negam os peixes do mar

Lhes negam o pão da terra

Lhes negam uma casa onde dormir, sonhar e orar

Lhes negam o sal que dá sabor à existência

Crianças de Gaza,

Mas não podem lhes negar uma língua, uma história e uma tradição poética

Não podem lhes negar a fé nem a dor que sustenta toda fé

E vossa dor ecoa nos olhos serenos de minhas filhas, Marias

Palestinas como todas as Marias do mundo

Palestinas como a Maria que amamentou aquele em quem o Ocidente enxergou o próprio Deus

Crianças de Gaza,

Sem saber se essas palavras cruzarão os desertos e oceanos que nos separam

Impotente ante a vossa dor e o vosso sofrimento

Só me resta orar e crer

Que o amor e a misericórdia de Alláh

Hão de vencer a ira, a covardia e a maldade que lhes destroça a infância

Só me resta acreditar

Que algum dia essas pedras que hoje lhes servem de armas

Serão a matéria-prima de sua futura Terra Prometida

E os brinquedos da infância de seus filhos, de seus netos e bisnetos

Só me resta rezar para que algum dia possam brincar de roda

No oásis que lhes concederá o destino

Crianças de Gaza,

Vocês serão maiores e melhores algum dia

Pois lhes tocou não ter outra infância senão a da guerra e dos destroços

E saber da mutilação e da perda antes de conhecer o acolhimento e a alegria

Crianças de Gaza,

A paz sem justiça é qualquer coisa menos paz

Que a poesia seja vossa prece

E que a memória da indiferença do mundo os fortaleça

Crianças de Gaza,

Do outro lado do oceano

Do outro lado do deserto

Alláh lhes olha

Alláh lhes alimenta

Alláh sacia vossas sedes

Algum dia vocês serão maiores e melhores 

Pois nunca esquecerão o poder destrutivo do ódio e das bombas

Pois nunca esquecerão o silêncio ensurdecedor da indiferença do mundo

Pois nunca esquecerão o choro e ranger de dentes que soa no campo de batalha

Crianças de Gaza,

Recebam minhas lágrimas e estes humildes versos

Que essa injustiça absurda e esse sofrimento supremo

Que esmaga vossas infâncias com a voracidade de um abutre maligno ante uma presa indefesa

As convertam em guerreiras da Luz e da Sabedoria

E as tornem capazes de vencer as sombras da ignorância

Que não poupam infâncias, oceanos e desertos...


nuno g.

toróró, 18/10/23

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Oração à Lua Grande, ao Gavião e ao Anjo Azul

para Larissa Gonçalves,


A espada, a balança e os lírios brancos.

Os beija-flores e essa pedra que sustenta o Mundo.

Tudo gira e a gira tudo cura.

Tudo gira e o girar nos serve de alimento.

Aquieta nossa fome - faz serenar a Sede.

O mel, o arco, a espada.

E esse silêncio que clama por mais silêncio.

O tempo do ventre e as feridas que trazem mapas dentro.

O poder de cartografar cicatrizes.

A luz que só sobrevive no escuro.

E esse saber das dietas e dos jejuns.

Rei, chefe e Senhor das matas sombrias e dos céus nublados.

Em vós meus temores imaginários.

Por vós meu caminho e todas as severas encruzilhadas.

Ave real, rainha da Floresta e sombra que por ser sombra é ensinamento.

Aqui é escola onde todo dia se aprende que não se sabe nada.

Aqui é lugar de cura onde se entende que a cura é sempre caminho e nunca chegada.

Teu nome seja chão, abrigo e morada.

Tua terra seja terra onde nossos pés encontrem sempre jornada.

Água límpida e corrente.

Poço das Onças: Poço da mãe D'água: Valle de Bravo.

Em Amargosa um dia Eles vieram.

Eram dois e muito velhos.

Abriram uma fenda entre o Nada e o Nada.

E me guiaram até esse aqui, esse agora.

Não encontro a palavra para saudá-los.

Então lhes ofereço essas pipocas.

Esse milho estourado ao fogo de candeeiro.

Ave real - sempre vós entre o mar e meus olhos.

Ave real - em que outras asas teríamos cruzado tantas vezes o Raso da Catarina?

Bendegó e a pedra.

Canudos e a memória do que poderíamos ter sido.

Caldas do Jorro e as águas quentes e curativas do ventre da terra.

Ibó, o Velho e o rio - o Rio e o Velho.

Icó, a cabeça de Touro enterrada sob a Igreja da Virgem da Conceição.

A Floresta do Araripe - signo de seguimento.

Basquiat - em sonho, fé, fundamento e amizade.

Senhora dos doces lábios.

Teus véus aqui em proteção e espera.

Archanjo Azul - destino a teus pés em devoção entregue.


nuno g.

Toróró, 26 de setembro de 2023.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

O tempo, a serpente, o labirinto e o palácio do beija-flor

Alzira beijou os pés da terra e os pássaros alaranjados sobrevoaram o rio.

Estive outra vez entre as ruas da infância.

E ouvi os cânticos dos escravos e seus atabaques.

Alzira ergueu seu santuário - sua escada para o Nada.

Além do silêncio se gesta outra forma de vida.

Alzira sorriu quando lhe falaram de um mundo em desintegração.

Nós que aqui estamos viemos de longe.

Nós que aqui estamos sobrevivemos muitas vezes à dissolução.

A mulher que traz no corpo a razão despertou mais cedo.

Costurou novos cílios, sobrancelhas e fabricou unhas coloridas.

Centauros cruzaram as águas.

Elipses, curvas acentuadas e areias movediças.

A Sussuarana e a lua - Rebeca acaricia os cabelos como se já fosse noite e plenitude.

Corre pelas várzeas um jaguar alucinado.

A menina dos olhos de cristal em seu lombo.

A Sussuarana e a estrela - todos os sonhos esquecidos estremecendo ao amanhecer.

Nossos mais velhos despertando ainda mais velhos.

E os que vêm chegando acendendo centelhas e faíscas.

Água limpa às quartinhas e sol.

Unicórnios - certa insistência sem angústia.

A dor que chega. A dor que vai. A dor que sempre esteve aqui.

A mulher que traz no corpo a razão caminha entre o Nada e o Nada.

Ano passado todos morremos - Alzira sonha sonhos dos quais não guardará qualquer recordação.

A estrela e seus afetos - o rio, a pedra, o musgo e a solidão do Velho.

Chegam as maritacas, as garças e as lembranças das feiticeiras da ilha.

Alzira me beijou a testa - sua benção!

Hermenegildo acenou de longe - os gatos seguiram a algazarra.

Ainda é quase noite e já se avista a gruta onde a serpente encarnou.

Vestes brancas, água de alfazema, velas e milho branco.

Água limpa às quartinhas - Alzira beijou os calcanhares da porteira.

A mulher que traz a razão no corpo canta.

O passado é uma roupa que não nos serve mais.

Senhora das águas doces - sua benção!

Senhora da lama do mangue - sua benção!

Senhora das tempestades - sua benção!

Senhor das cores celestiais - sua benção!

Cavaleiro da lança esmeralda - sua benção!

Toda ferida tem um mapa dentro.

Nazaré com seu lenço apara as lágrimas.

Senhora do mar - sua benção!

Senhor das matas sombrias - sua benção!

Ouço outra vez os cânticos iluminados dos escravos.

Seus atabaques, suas promessas, suas sutis maneiras de vencer a morte.

Caleidoscópio de ressentidas estrelas - a manhã já mergulha em seu abismo.

E nós desayunamos as flores do aniversário.


nuno g.

Toróró, 25 de setembro de 2023.

sábado, 23 de setembro de 2023

hino ao Fogo.

Nazaré chegou de longe.

Bebeu água doce.

Lavou com mel os olhos e a carne.

Hermenegildo cruzou o pasto.

Ensinou sobre sangue, sacríficios, recolhimento e oferendas.

Desapareceu atrás da serra onde o sol descansa.

Cleonice nos trouxe a lua.

Crescente e amarela.

E dentro dela uma serpente, uma coroa e uma estrela.

Judite sentou à pedra.

Alimentou com gravetos do Além o Fogo.

E repartiu destinos.

nuno g.
Toróró, 23 de setembro de 2023.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

A poesia, o rio, as onças e o caminho

todas as águas fora do leito

e esse insistente rogar de passagem

como salamandras ardendo no fogo

ou esse contínuo sonhar que nos conduz

como cegos ao palácio dos beija-flores

e esses cães guardando o tempo

todas as areia se movendo em círculos

como se não houvesse mais centro

ou essa noite estendida sobre a umidade das ervas

e esse insistente perfume do ventre

todas as águas nessa água que brota

e esse insistente rogar por um chão

como se houvesse qualquer fronteira possível

entre a loucura e a nitidez

entre o real e o mais-real

entre o que se diz e o que se escuta

entre o que se assenta e o que se faz aéreo de todo

e esses cães guardando o tempo

e esses cães guardando o Nada

e esses cães nos guardando de nós mesmos

do que somos / do que nos aguarda / de tudo ao qual dissemos não

e esse insistente rogar rompendo o silêncio

servindo à mesa nossos medos imaginários

extraídos à fórceps de um antigo dicionário

labirinto de rupestres inscrições gravadas no seio fértil da memória...


nuno g.

Toróró, 22 de setembro de 2023.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

história de um vento, nome de um rio.

para Maria Alice y Maria Assucena,

O hoje é apenas um furo no futuro

Por onde o passado começa a jorrar

E eu aqui isolado onde nada é perdoado

Vi o fim chamando o princípio pra poderem se encontrar

Raul Seixas / Marcelo Nova



No porto de Aracati não se embarcam mais escravos - e foi subindo o vale.

Das cabeceiras em Fortim à antiga capital dos sertões.

Gravada em couro a mensagem cravejada com a estrela de sal do Pontal de Maceió.

E no caminho maçons, tapuias, onças, feiticeiros, clérigos, cabras, pedras 

                        e a aprazível memória dos futuros que não se fizeram história.

Tambores para a Virgem da Conceição, comerciantes, pirotécnicos, pistoleiros e agricultores.

Esta estrada conhecemos na palma da mão - a percorremos desde sempre.

E sempre retornamos a ela como se fosse uma última vez.

E sempre olhamos abismados nosso reflexo nas águas desse rio.

E sempre tornamos a ouvir o canto dessas onças que nos guiam.

Desse jaguar que nos protege.

Desse gavião que vai iluminando nossas encruzilhadas.

Como um candeeiro arcaico - salve as almas!

Salve os preto-velhos e as preta-velhas que caminharam neste tabuleiro de maturis!

No caminho kardecistas, exploradores da cera das carnaúbas e esse rio.

E esse vento que arrepia e desperta.

E essas estrelas mortas no horizonte.

E as centenas de promessas nunca cumpridas.

E a memória de um touro indomável percorrendo as vazantes.

Onde nascem os jerimuns, o milho, o feijão e a batata doce.

Onde Antonio sentava para elaborar seu moto perpétuo impossível.

Onde Raimundo sonhava com um mundo de justiça e humildade.

Onde Edberto evocava a verdade impossível dos que já fizeram a passagem.

Terra onde caíram minhas sementes.

Chão onde a Serpente se fez vista aos olhos da carne.

Nuvem à espera de raios e trovões.

Até aqui cheguei - amanhã é só a lua radiante no céu.

E esse alaranjado que reúne em si todos os fogos do mundo.

O que nos espreita segue aqui - seu silêncio também.

Aquele vento. Aquele rio. Aquele som da mão de pilão caindo sobre a farinha.

Esmagando - madeira contra madeira - a carne seca à sombra.

Os olhos de minha vó - só ternura e espera.

A benção de tia Neuza atravessando todas as segunda-feiras.

O Inquebrantável. O Inconciliável. O Absurdo Imponderável.

Do outro lado da serra uma chuva fina e o som de uma estrela nascendo.

O presente é só um eco do Inalcançável.

Gravitam agora miríades de futuros Inapeláveis.

As onças seguem cantando.

Os gaviões seguem aqui.

A serpente não nos abandona o destino de sonhadores.

A serra do feiticeiro seguirá sendo o que sempre foi.

Apesar dos agrotóxicos, das empresas exportadoras de frutas, da carnicicultura.

Dos meus dois filhos que nunca quiseram estar aqui.

E desse permanente se saber cheio de Nada por dentro.

Os dias de exaustão vão ficando pra trás.

E cada vez mais entendemos que o Nada tem muitos mundos dentro.

Do outro lado da serra fica a província do Siará Pequeno.

Poucas notícias chegam de lá.

Às vezes chove sangue dos tapuias mortos na guerra dos bárbaros.

Às vezes ouvimos tambores de uma festa eterna.

Mas nunca sabemos exatamente como é a vida ali.

No porto de Aracati não se embarcam mais escravos - estranhas xilogravuras de Tempo.

Grãos de mais-realidade no deserto onírico.

E a vaga lembrança de uma cabeça de touro enterrada 

       sob a Igreja da Virgem da Conceição 

             na vila do Icó.

Águas do Araibu, cavalo castanho chamado Tempestade.

Hermenegildo, Cleonice, Judite e outros fantasmas em procissão à Eternidade.

E a vaga lembrança de uma...


nuno g.

Toróró, 18/09/23.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Eliana e as onças II

para Maria Alice y Maria Assucena,


Um peixe riscou as águas do amanhecer.

Entre a história e a psicologia corre um rio.

O mais difícil é saber quando exorcizar ou invocar.

A mulher que tem a razão no corpo dorme e semeia.

A flor de Assucena vai brotando nessa zona de indiferenciação.

Entre as margens dos fatos e as várzeas das fantasias.

A estrada de piçarra vermelha aberta.

Na encruzilhada aquele menino que fui um dia.

Que como os prisioneiros escrevia nas paredes com sangue e fezes.

No meu sonho faltava um real para inteirar uma cerveja.

No meu sonho faltava um real para inteirar uma água mineral.

Quem sonhava era aquele menino que já não existe mais.

O menino que sonhava todos os dias em viajar pelo mundo.

O menino que acreditava que só navegar era preciso.

O menino que me ensinou a verdade dos fingimentos.

E as tinturas que as aranhas usam para colorir os destinos.

Assucena vai brotando na encruzilhada dos rios.

Sob as bênçãos de Tempo e da Senhora de Roxo.

Nessa lama sobre a pele todo um palimpsesto perdido.

Alice tem a força de um assentamento cravado nas águas.

Resiste, ilumina e serve de chão ao limbo fosforescente.

Assucena tem a paciência do fogo.

Persiste, ilumina e serve de morada ao que fica depois que arde.

Aos suicidas tudo é negado.

O corpo, a voz e uma última mirada.

Aos suicidas é negado um bom lugar no Além.

Umas exéquias respeituosas.

Um lugar de descanso no campo santo.

A mulher que traz uma flor no ventre dorme.

Uma chuva fina e serena cobre o horizonte.

O mais difícil segue sendo saber a hora de exorcizar ou de invocar.

O futuro é a máscara mais sublime da memória.

Os peixes sabem que Tempo é uma árvore que dá frutos toda vida.

No silêncio a insistência da violência se desdobra em sombras infinitas.

Os peixes sabem que as guerras de Tempo se travam no corpo.

O menino que eu era já não existe mais, embora seus sonhos sigam aqui.

Como os dois cães pousados aos pés do espelho de Tempo.

Perdidos entre as imagens do passado e seus próprios reflexos.

O mais difícil é a certeza que será preciso regressar uma última vez.


nuno g.

Toróró, 11 de setembro de 2023.









sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Sonhatório cachoeirano

 para Paulo de Jesus & João de Moraes,


O passado é uma roupa que não nos serve mais

Belchior.

Nesta cidade os deuses falam pelas bocas dos loucos.

Nunca sabemos se são loucos os deuses.

Nem se são deuses os loucos.

Nesta cidade quando conversamos nunca sabemos quem realmente conversa.

Nem sabemos o que se assenta quando assentamos algo.

A única coisa que se sabe ao certo aqui é que não somos deuses.

E não raras vezes a honestidade nos faz perguntar se não somos loucos.

Nesta cidade atravessamos os reinos de Tempo com certa ingenuidade.

E sem percebermos cruzamos distraidamente as fronteiras do Inframundo.

Nesta cidade as nuvens compõem uma forma de escrita.

E a chuva borra memórias sem desnecessárias delicadezas.

Nesta cidade os cães, os gatos e os loucos vêm e vão, vão e vêm.

Sem saber de onde, sem saber pra onde.

Sem saber por que, sem saber pra quê.

Nesta cidade o rio corre ao contrário, fugindo do mar.

Levando flores brancas e amarelas aos sertões da terra.

Nesta cidade o passado escapa ao olhar desinteressado dos historiadores.

E se faz matéria viva à sombria imaginação dos poetas.

Nesta cidade feijão é comida que se come sem pressa e com as mãos limpas.

Esta cidade é uma floresta de sonhos que estão além da nossa vã compreensão.

Esta cidade é uma clepsidra de vidro.

E tudo nela flui – como as insones areias de um febril deserto habitado por nômades tuaregues...

nuno g.

Toróró, 25 de agosto de 2023.

 

 

 

domingo, 20 de agosto de 2023

domingo, 13 de agosto de 2023

Romance de formação


  para João de Moraes


acumulei tantos não-saberes

que quase me afoguei na pia de batismo

figuras de linguagem são indomáveis

como onças no cio

ou os paralelepípedos dessa cidade

havia uma pedra no coração da praça

e um acarajé de realidade brilhando no sol ao meio-dia

certa feita um galo escapou de seu quintal

figuras de fé são indomáveis

estilo e sorte não são coisas que se entregam facilmente

certa feita à calçada da Igreja você disse coisas que parecem com coisas

retorcidas são as raízes em sua busca às águas

sempre haverá um destino onde houver uma flecha

figuras de promessas são indomáveis

desacumulei tantas não-ciências

que quase me afoguei na imensidão dessa cidade

como quando você abriu o arquivo

afagou a marca da cirurgia

e tornou ao reino das coisas vivas

que parecem com coisas extraídas de pedras retorcidas

calçadas de igrejas e galos em perpétua fuga

depois da morte sempre outra morte

depois do medo o labirinto do imaginário

o que eles chamam de fábula

nessa cidade é vida, sonho e revelação

poderia ser uma feira de mercadores na áfrica

ou um barco de navegantes gregos

mas é essa cidade

inteira, íntegra, indomável

como uma cicatriz desenhando a geografia de uma cabeça

nossos mortos são indomáveis

assentamento é uma força que só os rios conhecem

quando a pele vem à flor dos nervos

a noite chega

com seus ventos e suas vísceras

e vai apascentando seus filhos

como se o anjo nunca tivesse nos abandonado

como se as lâminas e as memórias da guerra nunca tivessem se dissolvido

na sua casa, feita de pedra e terra vermelha,

haverá sempre algo não nos deixando esquecer

que todo abrigo é indomável

como uma sussuarana no cio

ou como uma estrela rebelde que abandonou definitivamente os subterrâneos...


nuno g.

Toróró, quinta-feira, 10 de agosto de 2023.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

os Senhores da Noite, os Guardiões da Sombra e os caminhos do Inframundo.

 para Night Day & Claudio Reis,


Nunca estamos sós.

Nunca andamos sós.

E existe sempre outra coisa acontecendo enquanto caminhamos.

Senhora da Lama: rogai por nós que recorremos a vós.

Seus dois filhos. O roxo de seus olhos. 

Os centros cerimoniais que a fúria de Tempo transformou em corações em ruínas.

Uma foto antiga, uma conversa à beira do rio sobre quando a vida se estilhaça.

E essa cegueira que nos ataca a visão aguardando que a Senhora das Doces Águas nos lave as retinas.

Poderia ser África ou algum rincão da Arábia.

Mas é essa cidade.

É esse quebra-cabeça de memórias que não se enquadram.

São esses desejos em perpétua guerra e esse arco nos céus.

Essas feridas que nos ensinam pela dor.

Essas serpentes que nos curam com veneno.

E a beleza que nos atravessa como um raio.

A voz das onças. A voz do vento. A algazarra tapuia.

Atravessando cada passo seu meu irmão.

Rumando ao Mucuripe onde mágoas encontram seu túmulo de salgadas águas.

Rumando à Pitanga onde tudo é queda e vertigem.

E todas as gentes que andam conosco.

Sonhando os sonhos que não pudemos sonhar.

Empurrando o Sol ao pino.

Ressuscitando a Lua das coxas sob os véus de Isís.

Acendendo as estrelas que nos movem enquanto estamos distraídos.

Em cada passo seu agora irmão.

Se estenda o meu chão sem chão.

E aquela promessa minha que só agora você pode entender plenamente.

Nunca estivemos sós.

A família que escolhemos foi escolhida antes de nascermos.

Ela caminha contigo.

Ela caminha comigo.

Ela nos leva sempre a outro lugar tão distinto do que planejamos ir.

A cidade que te asfixia agora é a mesma que asfixia os que caminham comigo.

Nunca nada esteve perdido.

E o Nada é um baú antigo onde se guardam muitas coisas.

Castanhas paraenses, marinheiros apaixonados e outras maneiras de filosofar e orar.

Teus pensamentos chegam aqui numa velocidade que me assusta.

E rogo à Senhora da Lama que me ensine mãos para te abraçar à distância.

Como me abraçastes enquanto eu enterrava Ian sozinho em Cruz das Almas.

Nunca esqueci o silêncio do coveiro se retirando.

Não havia ninguém mais naquele cemitério.

Eles vieram, dançaram, comeram, beberam e cravaram um espinho em meus testículos.

Era a única maneira de me fazer chorar.

Irmão, agora você tem uma estrela.

Isso não é fábula, não é lenda, não é história pra boi dormir.

Issó é caminho e horizonte.

Não estamos sós.

Nada está perdido.

Seu coração é maior que toda a dor do mundo.

E a estrada do Infinito aguarda o motor de sua moto.

Irmão, meu chão é seu chão.

Você não está só.

Tudo que acontece uma vez seguirá sempre acontecendo.

Caminho e horizonte.

Os sinos das igrejas de Belém dobram por ti agora.

Chovem flores brancas em meus sonhos.

E quando ouço um velho amigo falar de sua tristeza às margens do rio Pitanga.

Te escuto pronunciando o impronunciável.

Que a Senhora que nos fez da lama.

Apascente teu coração.

Lave teus olhos.

E faça nascer entre os cacos do teu ser a Flor da Aurora do Entendimento.


nuno g.

Toróró, 11/08/23 


segunda-feira, 7 de agosto de 2023

dicionário dos medos imaginários - 25 anos de poesia

A poesia é realmente a única coisa que importa. Ela sempre esteve aqui. Quando eu acordava e olhava para todos os lados e encontrava a morte em todos os lados era ela que me abraçava. De todas as formas ela me sussurrava é preciso seguir, você não tem o direito de desistir. A poesia me ensinou mais do que as milhares de horas de escola. Ela sempre me fez recordar que eu não tinha o direito de esquecer. Tudo havia sido destruído antes mesmo do meu nascimento e ela insistia procure ver o seu rosto antes disso. A poesia é realmente inútil. É algo que não serve para nada. É a última sobrevivente de um tempo em que o valor das coisas não era medido por sua serventia. Eu acordava e meus pais estavam mortos. Eu acordava e meu primo estava morto. Eu acordava e meu avô estava morto. Eu acordava e não havia nenhum sinal de ninguém que conhecera meu pai. Eu acordava e todos mentiam sobre a morte da minha mãe. O silêncio gritava no meu ouvido. Era um grito insuportável. Nada é tão ensurdecedor quanto o silêncio. A poesia chegava e dizia você não tem o direito de desistir. Nada fazia sentido. E a poesia dizia eu sou a beleza.  Ainda quando não havia beleza nenhuma ao alcance das mãos. Ela foi a única coisa que me acompanhou esses anos todos. Sempre me empurrando à vida. Sempre me impedindo de partir de vez. Sempre repetindo eu sou o sentido. Não importava se eu não podia mais acreditar em nada. Não importava mais se me era impossível lidar com os sentimentos contraditórios que me habitavam. Eu temia o sono. Dormir significava ter pesadelos e mais pesadelos e mais pesadelos. Só a poesia dizia siga. Tudo era sempre mais confuso do que eu podia suportar. As pessoas eram perigosas. O cansaço que se abatia sobre mim era imenso. As pernas tremiam. O corpo suava. A vida social era uma réplica exata do inferno. A poesia dizia não renuncie. Nada mudou. Tudo permanece idêntico ao que sempre foi. O que aconteceu algum dia segue sempre acontecendo. Vinte e cinco anos depois do Cacos de Cristo a poesia segue sussurrando no meu ouvido todos os dias você não tem o direito de desistir. Eu acordo e tudo segue tão vazio como sempre. Dois filhos mortos e uma montanha de estupidezes acumulada ao longo das décadas. Uma quantidade inumerável de mentiras acumuladas. A poesia me estende sua mão e me leva às margens do fogo. A poesia me estende sua mão e me leva ao fundo do rio. A poesia me estende sua mão e me leva à morada do jaguar encantado. A poesia me estende sua mão e me leva à aldeia dos tapuias mortos pelos invasores ibéricos. A poesia me exige seguir vivo. Ela me mostra minhas filhas brilhando como estrelas na escuridão e me grita siga, seja lá o que apareça adiante siga. A poesia é a própria vida. A doença e a saúde, a alegria e o sofrimento, o êxtase e a depressão, o amor e o ódio, tudo é passageiro e transitório. Só a poesia permanece. É por ela que me levanto da rede todos os dias. Engulo minhas amargas xícaras de café e sigo caminhando nesta terra. Com meus mortos. Com meus sonhos. Com minha solidão. Com minhas centenas de medos imaginários. Com os pesadelos que se arrastam há décadas nos meus porões. Com minhas filhas. Com minhas esperanças, minhas utopias e meus desesperos. É a poesia que vai abrindo meus caminhos, que vai me guiando de encruzilhada em encruzilhada. Foi por ela que eu vim. Foi por ela que eu cheguei até aqui. E é por ela que eu sigo. Sem direito à desistência ou à remota expectativa de chegar a ver algum dia o rosto anterior a meu nascimento. A poesia é o único caminho que eu conheço. Uma forma de vida. Minha condenação e a sólida pedra onde meus fundamentos deitaram raízes. Sem ela eu já estaria morto. Como meus pais. Como meu avô. Como meu primo. Como meus abikus. Como minha avó. Como milhares de pessoas que me cruzam o caminho e não conseguem esconder a letargia e o sonambulismo que as move. A poesia é minha promessa. De que aconteça o que acontecer não desistirei nunca. Meu vício, meu caminho, minha fé na escuridão. Isso é tudo. Estou mais velho, mais cansado, mais solitário. E só me resta seguir escrevendo e me embriagando com a luz dos olhos de minhas filhas faiscando como estrelas na escuridão. A poesia é minha herança, meu destino e a forma com que os astros me permitiram permanecer vivo por todos os dias que compõem essa minha breve encarnação. O resto é o mesmo inferno de sempre. Isso quer dizer que se sobrevive a tudo. E, muitas vezes, sobreviver é mais importante que todas as outras coisas que inventamos para nos distrair. Quando nada mais tem importância, a poesia segue ali ao seu lado. Quando todos foram embora e só restou a sujeira da festa ela ainda vai estar com você. Quando você percebe que tudo é mentira e pesadelo ainda sentirá a presença dela uivando em seu peito como uma onça no cio. Quando o seu corpo fraqueja e a sua mente parece tão perturbada e confusa que o abraço da loucura lhe sufoca, você ainda terá sua companhia e poderá escutar sua voz doce e delicada soprando Além!

nuno g.

Toróró, 09 de julho de 2023.