quinta-feira, 31 de agosto de 2017

um corpo despenca na madrugada

não há distância que eu não possa percorrer com o olhar
não há milagre que não possa se realizar
não há escuro que não se desdobre em luz além do mármore
não há febre que não recorde algum futuro desbotado às margens
não há parquinho onde maria não esteja
não tem bosque que não conheça o coelho saltitante e mágico 
não tem mar que não se saiba à alegria dos peixes
não tem crustáceo que resista ao fio amolado da faca
não tem sangue que não se reconheça no vermelho
não tem saudade que não escape pela fresta
não tem lembrança que o ácido do tempo não dissolva
mas,
só as pedras ensinam a amanhecer em paz
com todos os mortos e com todos os sonhos que sonharam os mortos

na garagem, uma mala completamente abandonada,
é tudo o que resta dos passos em frangalhos com que um dia me retirei
do casarão da ilha.


Cachoeira, 01 de setembro de 2017.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

manicômio a céu aberto

Para Stella Díaz Varín y Leopoldo María Panero

carrego em mim dez mil livros
e tenho uma só vida para escrevê-los

a morte me morde os calcanhares
– isso não é nenhuma novidade –
tem sido assim desde que completei dezenove meses de existência

escrevo como minha vó se despedia
como quem se vê por última vez
como quem sente as mordidas da morte nos calcanhares
como quem escuta o ranger de dentes da senhora Caetana
como quem já amou e já aprendeu que o melhor sinônimo do amor é a crueldade

escrevo como quem escreve um testamento
tenho uma filha linda
e sonho que tudo que escrevo fará parte de sua deseducação sentimental
cada dia escrevo mais
cada dia escrevo melhor
e sonho que tudo que escrevo chegue aos olhos dela um dia

como stella, a víbora eterna
não poderia deixar meus mortos em paz
muito menos os vivos
nem pretendo que me deixem descansar em vida
muito menos depois de morto

como leopoldo, o sempre louco
escrevo como quem se droga
não suporto as intensas crises de abstinência quando tento parar
e há muito tempo descobri que o melhor da vida
são os vícios

tenho uma filha linda
uma ex escrota que me enche o saco
e uma linda esperança verde que mora na minha cozinha
mas nada disso é suficiente

nada é suficiente
quando se tem em si todos os sonhos do mundo
quando se tem dez mil livros dentro de si
e só uma vida para escrevê-los...


nuno g.
cachoeira, 30 de agosto de 2017 do ano da graça de nosso senhor jesus cristo.

    

terça-feira, 22 de agosto de 2017

desacordo ortográfico

tem quem estude à noite
tem quem estude a noite
e não existe acordo ortográfico
capaz de aproximar a ambos

nuno g.

os demônios.

levei meus demônios para ver o eclipse
um pediu cerveja, o outro pediu café
ambos fumavam um cigarro atrás do outro
decidimos aguardar ali mesmo o pôr-do-sol
isso demandou uma larga espera
meu corpo ficou anestesiado por todo aquele tempo
e a boca que me chupava parecia mais interessada em saber o que me levou até ali
meus demônios sorriam e olhavam a cena de soslaio
um segredou à moça: ele precisa
ela continuou a me chupar como se chupasse a pica da morte
não havia nuvens no céu
e a cidade era consumida por um lento e torturante incêndio

levei meus demônios pra passear
eles precisavam abraçar uma última vez o mar...

nuno g.

...

compreender o desespero das formas:
sentir sede e não saber o nome da água.

lucas rolim

domingo, 6 de agosto de 2017

no chance - regret, Lou Reed.

It must be nice to be steady, it must be nice to be firm

It must be nice never to move off the mark

It must be nice to be dependable and never let anyone down

It must be great to be all the things you're not

It must be great to be all the things that I'm not


I see you in the hospital your humor is intact

I'm embarrassed by the strength I seem to lack

If I was in your shoes

so strange that I'm not

I'd fold up in a minute and a half

and I didn't get a chance to say goodbye


It must be nice to be normal it must be nice to be cold

It must be nice not to have to go oh up or down

But me I'm all emotional no matter how I try

you're gone and I'm still here alive

and I didn't get a chance to say goodbye

No - I didn't get a chance to say goodbye


There are things we say we wish we knew and in fact we never do

But I'd wish I'd known that you were going to die

Then I wouldn't feel so stupid, such a fool that I didn't call

And I didn't get a chance to say goodbye

I didn't get a chance to say goodbye


No there's no logic to this - who's picked to stay or go

If you think too hard it only makes you mad

But your optimism made me think you really had it beat

So I didn't get a chance to say goodbye

I didn't get a chance to say goodbye



Lou Reed.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

REVISITANDO O VALE DOS ABUTRES: DEOLINDO TAVARES NA ILHA DOS PATRUPACHAS.

Extenuados, os patrupachas caem e morrem. No dia seguinte, sem saber de onde, surgem novos patrupachas à espera do cachorro d’água, que está sempre a fazer exercícios.
Ilha dos patrupachas, josé alcides pinto.

Uma vez, quando Judith saía do banho, willy tentou abraçá-la com seu sexo de ouro, mas no momento exato em que ia violentá-la, apareceram dois esqueletos que conseguiram afastar a fúria do poeta, usando espelhos importunos que cintilavam ante seus olhos brancos. Quando os desapareceram, willy adormeceu profundamente, pois sentia os olhos feridos. Ao despertar, notou que a irmã estava morta.
O vale dos abutres, josé alcides pinto.

Ainda ontem estive na ilha dos patrupachas, o poeta josé alcides pinto estava sentado no seu trono de especiarias – espichado como um lagarto cintilante. Em suas mãos magras e ósseas, se remexia inquieta e buliçosa, a poesia de deolindo tavares – o poeta devorava os lírios e a loucuras das aventuras de seu esquecido amigo, aprendendo com willy mompou brincadeiras e danças, seguindo os fios eróticos da teia das palavras e dos desejos em seus cânticos. O poeta parou por um instante e olhou para a imagem do cristo presa à parede, tirou do bolso uma caneta e precipitou-se a rabiscar seu acalanto para deolindo tavares, ou melhor, os versos finais do poema:

                   Tu foste, Deolindo, o poeta que mais tarde eu haveria de ser
de mãos nervosas e gestos de pássaro perseguido
em sua rota do azul – ou nas diversas cores dos teus poemas.

Imediatamente recordei do Vale dos Abutres, poema em prosa, onde a atmosfera da realidade poética, nos arranca do território da realidade ordinária e nos faz vislumbrar a surrealidade, o real maravilhoso, o fantástico. Esses três conceitos, cada um com uma história e com definições próprias acerca da estética e da política, formam justamente a pedra-de-toque das principais abordagens sobre a obra do poeta. Seu nome aparece sempre vinculado aos movimentos a qual correspondem estes conceitos: o surrealismo francês, o realismo mágico latino-americano, o existencialismo. Completando as interpretações críticas, encontramos a santíssima trindade dos temas: o sexo, a loucura e a morte. Sobre tudo isso, muita coisa já foi dita e explorada, embora, creio, muitas outras ainda serão. Um dos aspectos que mais me chamou a atenção quando eu estudava sua obra, foi justamente esta leitura de deolindo que o poeta realizou em sua vivência na capital pernambucana. Foi lá que alcides entrou em contato mais direto com a experiência dos conflitos de classe, o mundo das greves e dos sindicatos, foi lá que o poeta escreveu os catadores de siris e incorporou a seu universo literário as condições miseráveis impostas pelas contradições econômicas de uma sociedade norteada pelos valores do capitalismo. Mas foi também na cidade do Recife que o poeta descobriu o lirismo onírico e o repertório de imagens que atravessam a saga de willy mompou. Os versos de deolindo impactaram profundamente sua escrita, era esse impacto que me interessava à época. Sobre ele, desejei escrever um poema em prosa, tendo como personagens os dois poetas, willy mompou, judith e os patrupachas.
Alguns anos se passaram e nunca consegui concluir este texto. Meu HD queimou e perdi os rascunhos dele. Vim morar no recôncavo e num dia comum, recebi por i1/2 a notícia de sua morte, ou melhor, de sua transfiguração. Não estava mais entre nós o mais versátil e criativo dos escritores cearenses do século XX. Não estava mais entre nós o mais aberto ao diálogo e à conversa dos poetas da província de Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção. Foi um dia triste. Nas margens do rio paraguassú, em frente ao point das morenas, fiquei sentindo a tristeza e a fúria daquele instante. Entregue às incertezas certeiras das perdas. Pensei na primeira vez que nos encontramos, meu nervosismo e seu jeito sério de brincar com as palavras e os palavrões. Pensei nas inúmeras conversas que tivemos e nas tantas outras que nunca chegamos a ter. Em seguida, fui à ilha dos patrupachas, onde presenciei a cena com que início este texto, e após o assalto das idéias relatadas, não resisti a revisitar o vale dos abutres, parei precisamente naquele ponto em que mary duncan veio até à janela para avisar mompou que os nazistas ameaçavam destruir o mundo. Acontece, porém, que os olhos do poeta descortinaram as paisagens mais negras que se possa imaginar. Então, pulando no topo de um girassol, o poeta abriu o vôo vermelho para um mundo tão distante do nosso, onde nenhum avião poderá alcançá-lo, e onde, por certo, jamais chegará um átomo destruidor. Fiquei em silêncio perante a beleza desta imagem, uma das tantas portas de entrada para este mundo de histórias não-ditas, tecidas com sonhos e delírios de homens que se recusaram a viver nos territórios estreitos da realidade e da morte – homens que se fizeram poetas e nos ajudam todo dia a superar o tédio das aparências e os sorrisos frios estampados nos outdoors de nossas desumanas cidades  neste esdrúxulo meio-dia industrial, onde qualquer um de nós, pode ser fatalmente engolido por uma motocicleta extraviada numa manhã de um sábado de sol.

nuno g.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

conheço meu lugar, belchior.

O que é que pode fazer o homem comum
Neste presente instante senão sangrar?
Tentar inaugurar
A vida comovida
Inteiramente livre e triunfante?

O que é que eu posso fazer
Com a minha juventude
Quando a máxima saúde hoje
É pretender usar a voz?

O que é que eu posso fazer
Um simples cantador das coisas do porão?
Deus fez os cães da rua pra morder vocês
Que sob a luz da lua
Os tratam como gente - é claro! - aos pontapés

Era uma vez um homem e o seu tempo
Botas de sangue nas roupas de lorca
Olho de frente a cara do presente e sei
Que vou ouvir a mesma história porca
Não há motivo para festa: Ora esta!
Eu não sei rir à toa!

Fique você com a mente positiva
Que eu quero é a voz ativa (ela é que é uma boa!)
Pois sou uma pessoa.
Esta é minha canoa: Eu nela embarco.
Eu sou pessoa!
A palavra "pessoa" hoje não soa bem
Pouco me importa!

Não! Você não me impediu de ser feliz!
Nunca jamais bateu a porta em meu nariz!
Ninguém é gente!
Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!

Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!
Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem: Conheço o meu lugar!

Belchior