quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Sangue.

quando me banhei no rio vermelho ainda não havia nascido

foi antes de minha mãe escutar o meu choro

foi antes do meu pai escutar o meu coração

quando me banhei no rio vermelho senti o frio tocar minha pele

e a força da luz arrebentar os véus de meus olhos

e a ardência do ar rasgar minhas vias respiratórias

ainda não havia nascido

quando me banhei no rio vermelho

meus pais ainda não haviam regressado ao reino dos mortos

e a lua, o sol e as estrelas já estavam ancoradas no firmamento

quando abandonei o mundo do Nada

e senti o sangue do rio lavando os cristais dos meus sonhos

ainda não havia nascido

e não habitava em mim nenhuma consciência sobre meu rosto

quando me banhei no rio vermelho

Uakti cruzou a mata com seu corpo-flauta

com seu corpo-flecha e com os pássaros

que me trouxeram as sementes antigas

quando me banhei no rio vermelho

ainda não existiam lágrimas em meu corpo

e meu espírito já não mais recordava os dias e as noites

em que vagabundeara pela face da terra

quando me banhei no rio vermelho

serpentes dançaram à minha volta

e o Azul e o Amarelo se entrelaçaram no escuro

foi antes do florescer das luzes

quando a terra ainda se chamava Pangeia

e o meu rosto se fez vermelho e vivo

e dele foram apagados quaisquer traços do Esquecimento

quando me banhei no rio vermelho

as mãos firmes e delicadas da Senhora de Roxo

moldaram com lama e água salobra

meu rosto, minha lucidez e a fugaz consciência

do despertencimento que rege meus aéreos movimentos.



nuno g.

Toróró, 17 de fevereiro de 22.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

estudo fino sobre as cores: o sentido do Verde

quem te cedeu as armas de caça?

quem te guiou quando estavas perdido?

acendestes o fogo com azeite de palma

acalmastes o vento com o canto do vento

e olhando as estrelas

viste passar o cortejo dos que aqui não estão

dentro de ti o Azul, o Vermelho e o Negro

dentro de ti os unguentos que serenam a dor

em tua flecha meus pensamentos

em teu caminho minha fé em brasas

acesa com o azeite e com o suor das tuas mãos

apascentada pelo canto dos ventos

não há sobra, não há sombra

o caleidoscópio gira e gira e gira

entretecendo com verdes fios 

o Invisível e o Reino da Matéria.


nuno g.

Toróró, 15 de fevereiro de 2022.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Amarelo.

Para Maria Alice,


quem vem comigo vem de longe

desde o tempo em que o mundo era mata

desde o tempo em que o dentro era idêntico ao fora

desde o tempo em que o acima correspondia ao abaixo

quem vem comigo vem de longe

desde o tempo em que o tempo era árvore de frutos roxos 

e em seus galhos pousavam pássaros amarelos

quem vem comigo vem de longe 

e nada sabe sobre o além da montanha

e nada sabe sobre o além das nuvens

quem vem comigo vem de longe

de mata antiga onde quando no céu reluzia o arco-íris

quem vem comigo te conhece desde antes do antes

quem vem contigo vem de longe

vem de antes do mundo ser mata

de um quando onde não havia ainda um fora e um dentro

de um quando não havia ainda um abaixo e um acima

quem vem contigo vem de longe

desde antes do tempo ser árvore

desde antes de existirem frutos ou pássaros

quem vem contigo anunciou o roxo e o amarelo

e sabe tudo sobre o além das montanhas

e conhece tudo sobre o além das nuvens

quem vem contigo é Tempo

fundador da mata, senhor do arco-íris

Árvore.


nuno g.

Toróró, 13 de fevereiro de 2022.


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

As mortes e as mortes de meu pai

para Nuno Guedes Pereira


muitas e muitas vezes só desejei teu colo

ou uma morte suave e delicada como o beijo do inimigo

o que é o mesmo dito com outras palavras

muitas e muitas vezes cruzei as ruas da cidadela

entre ventos, poeira e raios de sol

a alça do caixão à mão direita

ou esse nome pesado sobre a coroa de meu destino

o que é o mesmo vivido com outros gestos

muitas e muitas vezes enterrei meu pai

entre as teias de aranha suspensas no quadro da sala

ou entre as dobras do redemoinho do esquecimento

o que é o mesmo pintado com outras cores

muitas e muitas vezes beijei a boca da insônia

e cavalguei no alazão acinzentado

como se soubesse que ao fim da estrada

me aguardava uma borboleta dourada

um menino com nome de archanjo

e a terra fria onde repousariam minhas densas carnes

tantas vezes escutei o cantar dos galos e o soar dos sinos prateados

e olhei com olhos de açoite o azul do céu

ouvindo o crepitar da lenha à ação do fogo

aqui meus guias em força e luz

e minha sina de ser sempre firme sobre todas as coisas

caminhar às águas ou ascender aos céus

o que é o mesmo pronunciado em outra língua

muitas e tantas vezes só desejei o sono

e não ter que nunca mais enterrar meu pai

sob o fundamento onde o mistério deitou raízes

ásperas, severas, inesgotáveis.


nuno g.

Toróró, 10 de fevereiro de 2022.