terça-feira, 26 de setembro de 2023

Oração à Lua Grande, ao Gavião e ao Anjo Azul

para Larissa Gonçalves,


A espada, a balança e os lírios brancos.

Os beija-flores e essa pedra que sustenta o Mundo.

Tudo gira e a gira tudo cura.

Tudo gira e o girar nos serve de alimento.

Aquieta nossa fome - faz serenar a Sede.

O mel, o arco, a espada.

E esse silêncio que clama por mais silêncio.

O tempo do ventre e as feridas que trazem mapas dentro.

O poder de cartografar cicatrizes.

A luz que só sobrevive no escuro.

E esse saber das dietas e dos jejuns.

Rei, chefe e Senhor das matas sombrias e dos céus nublados.

Em vós meus temores imaginários.

Por vós meu caminho e todas as severas encruzilhadas.

Ave real, rainha da Floresta e sombra que por ser sombra é ensinamento.

Aqui é escola onde todo dia se aprende que não se sabe nada.

Aqui é lugar de cura onde se entende que a cura é sempre caminho e nunca chegada.

Teu nome seja chão, abrigo e morada.

Tua terra seja terra onde nossos pés encontrem sempre jornada.

Água límpida e corrente.

Poço das Onças: Poço da mãe D'água: Valle de Bravo.

Em Amargosa um dia Eles vieram.

Eram dois e muito velhos.

Abriram uma fenda entre o Nada e o Nada.

E me guiaram até esse aqui, esse agora.

Não encontro a palavra para saudá-los.

Então lhes ofereço essas pipocas.

Esse milho estourado ao fogo de candeeiro.

Ave real - sempre vós entre o mar e meus olhos.

Ave real - em que outras asas teríamos cruzado tantas vezes o Raso da Catarina?

Bendegó e a pedra.

Canudos e a memória do que poderíamos ter sido.

Caldas do Jorro e as águas quentes e curativas do ventre da terra.

Ibó, o Velho e o rio - o Rio e o Velho.

Icó, a cabeça de Touro enterrada sob a Igreja da Virgem da Conceição.

A Floresta do Araripe - signo de seguimento.

Basquiat - em sonho, fé, fundamento e amizade.

Senhora dos doces lábios.

Teus véus aqui em proteção e espera.

Archanjo Azul - destino a teus pés em devoção entregue.


nuno g.

Toróró, 26 de setembro de 2023.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

O tempo, a serpente, o labirinto e o palácio do beija-flor

Alzira beijou os pés da terra e os pássaros alaranjados sobrevoaram o rio.

Estive outra vez entre as ruas da infância.

E ouvi os cânticos dos escravos e seus atabaques.

Alzira ergueu seu santuário - sua escada para o Nada.

Além do silêncio se gesta outra forma de vida.

Alzira sorriu quando lhe falaram de um mundo em desintegração.

Nós que aqui estamos viemos de longe.

Nós que aqui estamos sobrevivemos muitas vezes à dissolução.

A mulher que traz no corpo a razão despertou mais cedo.

Costurou novos cílios, sobrancelhas e fabricou unhas coloridas.

Centauros cruzaram as águas.

Elipses, curvas acentuadas e areias movediças.

A Sussuarana e a lua - Rebeca acaricia os cabelos como se já fosse noite e plenitude.

Corre pelas várzeas um jaguar alucinado.

A menina dos olhos de cristal em seu lombo.

A Sussuarana e a estrela - todos os sonhos esquecidos estremecendo ao amanhecer.

Nossos mais velhos despertando ainda mais velhos.

E os que vêm chegando acendendo centelhas e faíscas.

Água limpa às quartinhas e sol.

Unicórnios - certa insistência sem angústia.

A dor que chega. A dor que vai. A dor que sempre esteve aqui.

A mulher que traz no corpo a razão caminha entre o Nada e o Nada.

Ano passado todos morremos - Alzira sonha sonhos dos quais não guardará qualquer recordação.

A estrela e seus afetos - o rio, a pedra, o musgo e a solidão do Velho.

Chegam as maritacas, as garças e as lembranças das feiticeiras da ilha.

Alzira me beijou a testa - sua benção!

Hermenegildo acenou de longe - os gatos seguiram a algazarra.

Ainda é quase noite e já se avista a gruta onde a serpente encarnou.

Vestes brancas, água de alfazema, velas e milho branco.

Água limpa às quartinhas - Alzira beijou os calcanhares da porteira.

A mulher que traz a razão no corpo canta.

O passado é uma roupa que não nos serve mais.

Senhora das águas doces - sua benção!

Senhora da lama do mangue - sua benção!

Senhora das tempestades - sua benção!

Senhor das cores celestiais - sua benção!

Cavaleiro da lança esmeralda - sua benção!

Toda ferida tem um mapa dentro.

Nazaré com seu lenço apara as lágrimas.

Senhora do mar - sua benção!

Senhor das matas sombrias - sua benção!

Ouço outra vez os cânticos iluminados dos escravos.

Seus atabaques, suas promessas, suas sutis maneiras de vencer a morte.

Caleidoscópio de ressentidas estrelas - a manhã já mergulha em seu abismo.

E nós desayunamos as flores do aniversário.


nuno g.

Toróró, 25 de setembro de 2023.

sábado, 23 de setembro de 2023

hino ao Fogo.

Nazaré chegou de longe.

Bebeu água doce.

Lavou com mel os olhos e a carne.

Hermenegildo cruzou o pasto.

Ensinou sobre sangue, sacríficios, recolhimento e oferendas.

Desapareceu atrás da serra onde o sol descansa.

Cleonice nos trouxe a lua.

Crescente e amarela.

E dentro dela uma serpente, uma coroa e uma estrela.

Judite sentou à pedra.

Alimentou com gravetos do Além o Fogo.

E repartiu destinos.

nuno g.
Toróró, 23 de setembro de 2023.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

A poesia, o rio, as onças e o caminho

todas as águas fora do leito

e esse insistente rogar de passagem

como salamandras ardendo no fogo

ou esse contínuo sonhar que nos conduz

como cegos ao palácio dos beija-flores

e esses cães guardando o tempo

todas as areia se movendo em círculos

como se não houvesse mais centro

ou essa noite estendida sobre a umidade das ervas

e esse insistente perfume do ventre

todas as águas nessa água que brota

e esse insistente rogar por um chão

como se houvesse qualquer fronteira possível

entre a loucura e a nitidez

entre o real e o mais-real

entre o que se diz e o que se escuta

entre o que se assenta e o que se faz aéreo de todo

e esses cães guardando o tempo

e esses cães guardando o Nada

e esses cães nos guardando de nós mesmos

do que somos / do que nos aguarda / de tudo ao qual dissemos não

e esse insistente rogar rompendo o silêncio

servindo à mesa nossos medos imaginários

extraídos à fórceps de um antigo dicionário

labirinto de rupestres inscrições gravadas no seio fértil da memória...


nuno g.

Toróró, 22 de setembro de 2023.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

história de um vento, nome de um rio.

para Maria Alice y Maria Assucena,

O hoje é apenas um furo no futuro

Por onde o passado começa a jorrar

E eu aqui isolado onde nada é perdoado

Vi o fim chamando o princípio pra poderem se encontrar

Raul Seixas / Marcelo Nova



No porto de Aracati não se embarcam mais escravos - e foi subindo o vale.

Das cabeceiras em Fortim à antiga capital dos sertões.

Gravada em couro a mensagem cravejada com a estrela de sal do Pontal de Maceió.

E no caminho maçons, tapuias, onças, feiticeiros, clérigos, cabras, pedras 

                        e a aprazível memória dos futuros que não se fizeram história.

Tambores para a Virgem da Conceição, comerciantes, pirotécnicos, pistoleiros e agricultores.

Esta estrada conhecemos na palma da mão - a percorremos desde sempre.

E sempre retornamos a ela como se fosse uma última vez.

E sempre olhamos abismados nosso reflexo nas águas desse rio.

E sempre tornamos a ouvir o canto dessas onças que nos guiam.

Desse jaguar que nos protege.

Desse gavião que vai iluminando nossas encruzilhadas.

Como um candeeiro arcaico - salve as almas!

Salve os preto-velhos e as preta-velhas que caminharam neste tabuleiro de maturis!

No caminho kardecistas, exploradores da cera das carnaúbas e esse rio.

E esse vento que arrepia e desperta.

E essas estrelas mortas no horizonte.

E as centenas de promessas nunca cumpridas.

E a memória de um touro indomável percorrendo as vazantes.

Onde nascem os jerimuns, o milho, o feijão e a batata doce.

Onde Antonio sentava para elaborar seu moto perpétuo impossível.

Onde Raimundo sonhava com um mundo de justiça e humildade.

Onde Edberto evocava a verdade impossível dos que já fizeram a passagem.

Terra onde caíram minhas sementes.

Chão onde a Serpente se fez vista aos olhos da carne.

Nuvem à espera de raios e trovões.

Até aqui cheguei - amanhã é só a lua radiante no céu.

E esse alaranjado que reúne em si todos os fogos do mundo.

O que nos espreita segue aqui - seu silêncio também.

Aquele vento. Aquele rio. Aquele som da mão de pilão caindo sobre a farinha.

Esmagando - madeira contra madeira - a carne seca à sombra.

Os olhos de minha vó - só ternura e espera.

A benção de tia Neuza atravessando todas as segunda-feiras.

O Inquebrantável. O Inconciliável. O Absurdo Imponderável.

Do outro lado da serra uma chuva fina e o som de uma estrela nascendo.

O presente é só um eco do Inalcançável.

Gravitam agora miríades de futuros Inapeláveis.

As onças seguem cantando.

Os gaviões seguem aqui.

A serpente não nos abandona o destino de sonhadores.

A serra do feiticeiro seguirá sendo o que sempre foi.

Apesar dos agrotóxicos, das empresas exportadoras de frutas, da carnicicultura.

Dos meus dois filhos que nunca quiseram estar aqui.

E desse permanente se saber cheio de Nada por dentro.

Os dias de exaustão vão ficando pra trás.

E cada vez mais entendemos que o Nada tem muitos mundos dentro.

Do outro lado da serra fica a província do Siará Pequeno.

Poucas notícias chegam de lá.

Às vezes chove sangue dos tapuias mortos na guerra dos bárbaros.

Às vezes ouvimos tambores de uma festa eterna.

Mas nunca sabemos exatamente como é a vida ali.

No porto de Aracati não se embarcam mais escravos - estranhas xilogravuras de Tempo.

Grãos de mais-realidade no deserto onírico.

E a vaga lembrança de uma cabeça de touro enterrada 

       sob a Igreja da Virgem da Conceição 

             na vila do Icó.

Águas do Araibu, cavalo castanho chamado Tempestade.

Hermenegildo, Cleonice, Judite e outros fantasmas em procissão à Eternidade.

E a vaga lembrança de uma...


nuno g.

Toróró, 18/09/23.

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Eliana e as onças II

para Maria Alice y Maria Assucena,


Um peixe riscou as águas do amanhecer.

Entre a história e a psicologia corre um rio.

O mais difícil é saber quando exorcizar ou invocar.

A mulher que tem a razão no corpo dorme e semeia.

A flor de Assucena vai brotando nessa zona de indiferenciação.

Entre as margens dos fatos e as várzeas das fantasias.

A estrada de piçarra vermelha aberta.

Na encruzilhada aquele menino que fui um dia.

Que como os prisioneiros escrevia nas paredes com sangue e fezes.

No meu sonho faltava um real para inteirar uma cerveja.

No meu sonho faltava um real para inteirar uma água mineral.

Quem sonhava era aquele menino que já não existe mais.

O menino que sonhava todos os dias em viajar pelo mundo.

O menino que acreditava que só navegar era preciso.

O menino que me ensinou a verdade dos fingimentos.

E as tinturas que as aranhas usam para colorir os destinos.

Assucena vai brotando na encruzilhada dos rios.

Sob as bênçãos de Tempo e da Senhora de Roxo.

Nessa lama sobre a pele todo um palimpsesto perdido.

Alice tem a força de um assentamento cravado nas águas.

Resiste, ilumina e serve de chão ao limbo fosforescente.

Assucena tem a paciência do fogo.

Persiste, ilumina e serve de morada ao que fica depois que arde.

Aos suicidas tudo é negado.

O corpo, a voz e uma última mirada.

Aos suicidas é negado um bom lugar no Além.

Umas exéquias respeituosas.

Um lugar de descanso no campo santo.

A mulher que traz uma flor no ventre dorme.

Uma chuva fina e serena cobre o horizonte.

O mais difícil segue sendo saber a hora de exorcizar ou de invocar.

O futuro é a máscara mais sublime da memória.

Os peixes sabem que Tempo é uma árvore que dá frutos toda vida.

No silêncio a insistência da violência se desdobra em sombras infinitas.

Os peixes sabem que as guerras de Tempo se travam no corpo.

O menino que eu era já não existe mais, embora seus sonhos sigam aqui.

Como os dois cães pousados aos pés do espelho de Tempo.

Perdidos entre as imagens do passado e seus próprios reflexos.

O mais difícil é a certeza que será preciso regressar uma última vez.


nuno g.

Toróró, 11 de setembro de 2023.