segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Eliana e as onças II

para Maria Alice y Maria Assucena,


Um peixe riscou as águas do amanhecer.

Entre a história e a psicologia corre um rio.

O mais difícil é saber quando exorcizar ou invocar.

A mulher que tem a razão no corpo dorme e semeia.

A flor de Assucena vai brotando nessa zona de indiferenciação.

Entre as margens dos fatos e as várzeas das fantasias.

A estrada de piçarra vermelha aberta.

Na encruzilhada aquele menino que fui um dia.

Que como os prisioneiros escrevia nas paredes com sangue e fezes.

No meu sonho faltava um real para inteirar uma cerveja.

No meu sonho faltava um real para inteirar uma água mineral.

Quem sonhava era aquele menino que já não existe mais.

O menino que sonhava todos os dias em viajar pelo mundo.

O menino que acreditava que só navegar era preciso.

O menino que me ensinou a verdade dos fingimentos.

E as tinturas que as aranhas usam para colorir os destinos.

Assucena vai brotando na encruzilhada dos rios.

Sob as bênçãos de Tempo e da Senhora de Roxo.

Nessa lama sobre a pele todo um palimpsesto perdido.

Alice tem a força de um assentamento cravado nas águas.

Resiste, ilumina e serve de chão ao limbo fosforescente.

Assucena tem a paciência do fogo.

Persiste, ilumina e serve de morada ao que fica depois que arde.

Aos suicidas tudo é negado.

O corpo, a voz e uma última mirada.

Aos suicidas é negado um bom lugar no Além.

Umas exéquias respeituosas.

Um lugar de descanso no campo santo.

A mulher que traz uma flor no ventre dorme.

Uma chuva fina e serena cobre o horizonte.

O mais difícil segue sendo saber a hora de exorcizar ou de invocar.

O futuro é a máscara mais sublime da memória.

Os peixes sabem que Tempo é uma árvore que dá frutos toda vida.

No silêncio a insistência da violência se desdobra em sombras infinitas.

Os peixes sabem que as guerras de Tempo se travam no corpo.

O menino que eu era já não existe mais, embora seus sonhos sigam aqui.

Como os dois cães pousados aos pés do espelho de Tempo.

Perdidos entre as imagens do passado e seus próprios reflexos.

O mais difícil é a certeza que será preciso regressar uma última vez.


nuno g.

Toróró, 11 de setembro de 2023.









Um comentário:

  1. Como as Torres de Manhattan, em 11 de setembro de 2001, e as Colunas J. e B. do Templo de Jerusalém, que seria construído por Davi, mas foi de Salomão a responsabilidade edificada com o reino de Tiro, "o menino que eu era já não existe mais, embora seus sonhos sigam aqui." Muito bom compadre!

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