sábado, 14 de agosto de 2021

constelação das águas turvas, por Demetrios Galvão

na lascividade do território-carne
nos absorvemos no desejo inebriado

– trânsito nas costas-alamedas dentro da flecha de Eros –

nos perdemos no cinema, na angústia dos outros
acordamos enjoados, tontos
ou não dormimos
pensamos em quem descansa dentro da ventania
olhando o sol dissipar as águas turvas da madrugada

do outro lado da cidade antiga
nossos delírios se acomodam
entre o ronronado dos gatos e canto dos galos

por vezes nos encontramos em tempos furtivos
na varanda fugaz dos nossos peitos

– meteoros volúveis se cruzam no
parque de diversões de nossas bocas.

Demetrios Galvão (Teresina/PI), poeta, coeditor na revista Acrobata e professor.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Certidão


para meu pai.

para o professor Paulo Emílio.

 

No fundo falso da mala a certidão de nascimento.

Foi assim que conheceu Fleury.

Foi assim que conheceu Ustra.

Foi assim que aprendeu que sob tortura toda carne se trai.

Sobreviveu.

E dedicou o resto dos anos de sua vida à arte de ensinar história da arte:

caligrafia islâmica, tatuagens maoris, bauhaus.

A certidão de nascimento era o único portigo por onde espiava o mundo.

O resto era clandestinidade e sonhos.

Envelheceu.

E dedicou sua velhice à construção de um museu na serra da Meruoca.

O fascismo voltou.

Fleury e Ustra foram promovidos a marechais de guerra.

A carne se arrepiou ao pressentimento da violência.

Todos aqui estão mortos, sem exceção.

Vasculho o armário.

Busco papéis e carimbos.

Ouço minha primeira vó, morta, chorando.

Ouço minha segunda vó, morta, me interrogando.

Ouço os estampidos da arma de fogo.

E olho nos olhos dos homens que mataram meu pai:

eles sabiam que ele era meu pai.

Encontro a segunda certidão de nascimento.

Sinto o amor sem mácula de meu avô.

A original se perdeu para sempre.

Caligrafia islâmica, tatuagens maoris, bauhaus.

Os sobrenomes são os mesmos:

ainda quando reduzidos às cinzas.

No fundo do armário nenhuma certidão de nascimento

                                       nenhum portigo para espiar o mundo

Só a clandestinidade, os sonhos e a traição da carne ante a intuição da violência.

Nada de papéis. Nada de carimbos.

Só o sorriso de uma criança asseando o corpo do pai com folhas de urtiga.

Nada de choro. Nada de interrogatórios.

Só a alegria de uma criança velando o corpo do pai.

O fascismo sobreviveu.

Dediquei minha vida à arte:

caligrafia islâmica, tatuagens maoris, bauhaus.

Envelheci.

Quem sabe um dia suba a serra da Meruoca e enterre

no fundo falso do museu este poema.

 

Nuno g.

Toróró, 8 de agosto de 2021.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

demolição

soube que o prédio desabou

como tudo mais em nosso tempo

como os olhos do mar

como as máscaras das instituições burguesas

como os céus que os pajés sustentaram por séculos

soube que o prédio desabou

e passei toda a semana ouvindo os passos do velho

e passei sete noites sonhando com os gestos do velho

e passei a terceira tarde inteira buscando a chave entre os escombros

soube que o prédio desabou

acendi uma grande fogueira no terreiro

e devagarzinho fui queimando memórias sem serventia

 

nuno g.