quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Adélia.

Lua minguante no céu.

Alice e Ignez brincando.

Assucena dorme.

Tão difícil fazer versos, mas eu sonho.

Além dos nossos gatos os dos vizinhos.

Que vão ganhando nomes também.

Salem, Romeu...

Quando digo minha asa está ferida a tenossinovite quase faz sentido.

Palavra assentada na pedra - e vou caminhando no labirinto de Larissa.

Lua minguante no céu.

Larissa dorme.

Amanhã Assucena toma vacina de meningite.

O pé de seu Antonio vai melhorando devagarzinho.

Doutor Epitácio quer ver mais um exame antes de dizer sua palavra.

Domingo tem festa.

Barcos e flores na pedra da Baleia.

Palavra assentada em pedra submersa.

Tão difícil fazer versos, mas eu sonho.

Rio de maré, deuses que dançam, memória das serpentes.

Do Rosarinho ao Toróró as coisas sedimentando por dentro.

Abismo em forma de cidade.

Outro dia sonhei que aqui era o Crato e que Cachoeira ficava na Chapada do Araripe.

Tudo era bonito e perigoso.

E caíamos e caíamos e caíamos.

Até no sonho minha asa esquerda dói.

Acordo, escrevo e já estamos em fevereiro.

Mês em que Alice volta a viajar.

Terá carnaval para quem é de carnaval.

Meu vizinho me fala de Paracuru.

À oeste do meu coração sopra um vento frio.

Lua minguante no céu.

Adélia, me ensina a escrever como tu!

Hermenegildo, reza minha dor!

Hilda, mãe, abençoa minhas crias.

Luto é palavra que guarda ternura.

Casamento soa perfumado, bonito e perigoso.

Quase como amor, passarinho e praia de rio.

Em março as aulas voltam.

Em março Alice viaja de volta.

Hoje jantamos acarajé.

Olhei as estrelas - Bilac nunca esteve entre os que me atravessam.

Cozinhamos ossos de boi e pés de galinha para os cães.

E o feiticeiro nos acenou de longe.


nuno g.

Toróró, 01 de fevereiro de 2024.

domingo, 28 de janeiro de 2024

Ode a Hermenegildo

 à memória de Augusto dos Anjos,


Pina, a gata, arranha a casca da jurema preta.

Um barco sobe o Paraguassú com filhos-de-santo saudando com palmas as águas.

A tempestade se foi, não se ouvem mais os trovões.

Embora as nuvens sigam reinando nos céus.

Seu Antonio feriu o pé com espinho de roseira.

Uma voz distante nos abraça e promete alguma ternura antes dos dias de folia.

Um vento suave vem do Himalaia e leva algumas pesadas formas-pensamentos.

Mistérios Sussuarânicos, pássaros de Hermenegildo com metais no bico.

Pássaros de Hermenegildo com minerais no bico.

Uma canção na voz Gaeth soprando paz e paz e ternura e paz e fécula de alimentos e paz.

As Marias se conversam.

Alice traça uma genealogia sem-fim com Clarice.

Como se cem anos de solidão não fosse mesmo suficiente.

Assucena sorri e seu sorriso me fala do trabalho de todos os seres que a trouxeram até aqui.

Larissa sonha com a força pura e potente do parto.

Larissa sonha com o mais intenso e cintilante do parto.

Larissa sonha e em seu sonho o próprio parto está se parindo.

O gavião do Montecristo nos visita.

Um vento suave do Himalaia o traz até aqui.

Que nunca falte mel em meus olhos.

E que quando a tempestade voltar eu ainda esteja aqui.

Eu, Hermenegildo e seu estranho cavalo com asas de rinoceronte norte-coreano.


nuno g.

Toróró, 28 de janeiro de 2024.


 

sábado, 27 de janeiro de 2024

hino à poesia II

 à memória de José Alcides Pinto,


Anônimo, o gato, descansa protegido da chuva à sombra do limoeiro.

Flutuo sobre a loucura e o delírio de gerações e gerações de psicanalistas.

Flutuo sobre o cinismo, a ironia e a descrença contemporânea.

Invoco espadas antigas, amuletos perdidos, orações em línguas desconhecidas.

Flutuo sobre as visões desnorteadas dos medos imaginários.

Sobre o mar de ruínas e destroços.

Sobre o sangue das civilizações antigas e suas bibliotecas desaparecidas.

Flutou sobre a dor, a solidão e as cicatrizes do abandono.

Invoco Fúrias, Musas e outros seres de outros mundos.

Invoco a Estrada e seus tentáculos de Sabedoria.

Garfield, o gato, descansa protegido da chuva no tapete rosa da sala.

Invoco minhas próprias forças desconhecidas.

Para que semeiem uma nova paz e uma nova lucidez e uma nova utopia.

Flutuo sobre o fim do mundo.

Sobre os vestígios do fim do mundo.

Sobre as galáxias em gestação enquanto esse mundo desaparece.

Invoco alfarrábios, fragmentos de estrelas e luzes subterrâneas.

Estudo novamente as cores e os signos.

O uivo de Allen Ginsberg e a inteligência descomunal borrifada por Kerouac.

Retomo minhas anotações sobre minha própria estadia no inferno.

E vou movendo meu corpo apodrecido entre as águas vaporosas do Jorro.

Reaprendo com os pássaros a me alimentar de sementes.

Invoco o Sol. Invoco a Claridade que desfaz os gestos das sombras fantasmagóricas.

Invoco o Anjo que me acompanha desde o berço.

Escuto a Voz de minhas filhas escorrendo entre as frestas de minha desértica imaginação.

Escuto a Voz das cem mães que tive nesta encarnação.

Escuto o berro bravo de meu pai.

Acaricio cada ferida sua.

Extraio de seu corpo as balas que o levaram para longe.

Ouço o vento do Infinito. Ouço Aracati. Ouço as Onças.

Invoco Tempo. Rogo paciência.

E adormeço como se nunca nada houvesse ocorrido.

Como se a máscara de gelo e fogo fosse apenas uma forma do pensamento.

E torno a flutuar sobre os gatos e suas esperanças.

Sobre a chuva e seus segredos.

Sobre os temores e suas iras.

Invoco ao que traz o poder de dissolver o corpo velho e restituir a saúde.

Escuto a Voz de minhas filhas e adormeço quase em paz.

Como um planeta ilusionado pela abrupta sensação de ter reencontrado sua órbita originária...


nuno g.

Toróró, 27 de janeiro de 2024


hino à poesia.

à memória de José Alcides Pinto,


Sou feito de Sonho e Solidão.

Minhas vestes são as águas das chuvas.

E a poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes.

Nada em mim recorda as cinzas do esquecimento.

Tudo é noite e escuridão no manto azul estrelado com que teço minha pele.

Sou o Sol de mim mesmo que se estende desde as várzeas sertanejas às praias coloniais.

Sou feito de Promessas e Horizontes.

Minha nudez é a do deserto do altiplano andino e das mesetas mexicas.

Quando meus olhos encontraram os olhos de Mama-Quilla na fortaleza inexpugnável de Sacsayahuaman.

Quando Wiracocha criou com barro e amor o Sol a Lua e as Estrelas.

Quando os primeiros sacrilégios feriram a crosta da Terra e dos Oceanos.

E os fervores tóxicos do ódio escaparam das entranhas do Mundo.

Minha nudez se revelou em toda sua fragilidade de ossos em precoce envelhecimento.

Sou feito de Fé e Esperança.

Tudo em mim é tremor. Sou o Grande Cenote onde Walt Whitman recebeu seu corpo-revelação.

Sou a Morte, a Doença e a Cura.

Os movimentos do abismo insondável e as ruínas da civilização do Caldeirão e Canudos.

Sou feito de Sonho e Solidão.

Sob as visões da Ayahuasca da Codeína do Ópio e da Morfina.

Vi meus joelhos sangrando de tanto chão.

E os meus mortos peregrinando em louvor ao Padre Cícero e à Virgem de Guadalupe.

Vi meus dedos se esticando como caudas de seres pré-históricos.

Vi a Virgem da Conceição semeando Luz nas águas doces do Jaguaribe e do Amazonas.

Sou feito de Lírios Brancos e Papoulas Brilhantes.

Sou o Sono que antecede a Eternidade.

Sou o Nada e a imensa vastidão que nos separa de nossa própria Consciência.

Minhas vestes são as pedras que caíram dos céus.

E a poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes.

Nada em mim recorda o cinzento esquecimento.

Tudo é Azul, Noite e Escuridão.

Tudo é um só e único manto estrelado que nos cobre a cegueira e o desespero e a insanidade.

Sou feito de Sonho, Silêncio e Solidão.

E da poeira escura que escorre do voo cego dos vaga-lumes...


nuno g.

Toróró, 27 de janeiro de 2024.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Jacinta.

Nomeei minha dor: Jacinta.

No meio de uma trovoada.

Ausências voando entre as gotas d'água.

Beija-flores se refugiando nos cabelos das Marias.

Batizei minha dor: Jacinta.

E dois homens vestidos de branco chegaram.

Fizeram coisas que tinham a fazer.

O mais velho, cabelos e barba grisalhos, guiava a limpeza.

O mais jovem, imberbe, executava e aprendia.

Não levantei da cama.

Observei.

*   *   *

Papai, prefiro lembrar dele vivo.

Papai, a Magui e o Bené devem estar sofrendo.

Chorou, me abraçou e foi brincar com a Ignez.

Papai, ele era muito legal.

Papai, você gostava muito dele.

Sorriu e foi brincar com a Ignez.

Sim filha, foi ele que foi me buscar no Recife quando sua vó suicidou.

Sim filha, foi ele que foi buscar o corpo de sua vó no Recife quando ela virou lua.

Sim filha, foi ele que do púlpito da igreja matriz de Russas deu voz à minha dor quando seu bisavô morreu.

Sim filha, foi ele que me mostrou tantos livros quando eu ainda buscava nos livros o que a vida não podia me dar.

Sim filha, foi ele que leu em voz alta para mim o "poema em linha reta" que me fez amar meu destino torto.

Sim filha, foi ele que me disse as palavras mais sinceras quando defendi a tese de doutorado que escrevi com você no colo.

Sim filha, a chegada dele era todos os anos um acontecimento.

*   *   *

Os homens vestidos de branco partiram.

Papai, eu te amo.

A trovoada seguiu.

Jacinta aqui - se não me mata te escrevo.

Assucena me chama. Os analgésicos finalmente fizeram algum efeito.

As águas lavam tudo, menos as mentiras que assassinaram minha infância.


nuno g.

Toróró, 26 de janeiro de 2024.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Alzira

para minhas mães da terra,

para Eliana, minha mãe do Astral,


Acenderam três velas minhas mãos trêmulas.

Na primeira, a intenção do Sol.

Na segunda, a intenção da Lua.

Na terceira, o parto de todas as estrelas.


Acenderam três chaves perdidas.

Na primeira, uma surra de cinto pelas trêmulas mãos de meu avô.

Na segunda, um labirinto antigo onde se perdem todos os futuros.

Na terceira, a cegueira a cegueira e a cegueira.


Acenderam todas minhas fraquezas as mãos súbitas do Mensageiro.

Meus medos mais arcaicos, mais sutis e mais imaginários.

E nesta floresta onde estão plantadas as portas do Monastério das Flores Selvagens.

A memória de Alzira se fez fogo e saber sobre a Tempestade.


nuno g.

Toróró, 11/01/24.

Hermenegildo

 para Adriano Brito,


O dia amanheceu nublado,

O dia amanheceu em paz.

Maria me fez um carinho e me disse:

papai, amanhecer e paz são a mesma coisa.

Hermenegildo me soprou:

Eu venho de longe, você também.

A dor da tendinite e a dor da guerra são linhas do mesmo arco.

Eis a flecha, aqui.

Na hora em que chegaram a pedra e seu Senhor cantavam a Inaê.

A dor e a guerra se mesclavam como a água e a água.

Dona Eliana, com sua face renovada em mel, esteve aqui uma vez mais.

Choveu pipocas e recordei antigos sonhos.

Ian, meu pequeno, descansa em paz.

As águas do Jaguaribe levando o espírito de Dellany.

Saudades de Adélia. Saudades de Judite. Saudades de não sentir dor.

Minha energia vital decantando na quartinha.

A dor e a guerra se estendendo pelo tendão inflamado.

Maria me fazendo carinho e me dizendo.

Papai, daqui a pouco você estará curado.

Recordando aqueles sonhos em que os degraus da escada desmanchavam como sorvete ao sol.

Recordando aqueles sonhos em que a ponte se dissolvia como a luz das estrelas no espaço.

Me afastando de mim, da dor, da guerra e das memórias de minha pele.

O ferreiro. O caçador. A senhora dos ventos.

E brilhando acima de todos nós a Senhora da Lama Roxa.

A faceira de luto. O rosarinho de luto.

E a memória da guerra contra os tapuias no vale das onças.

E a memória da guerra contra os palestinos em Gaza.

E a memória dos fascistas invadindo Brasília e os meus sonhos.

Reconhecer na dor uma mestra, difícil e árdua tarefa.

Hermenegildo entre as nuvens.

Essa ponte que somos entre um sonho e outro.

Entre um corpo e outro.

Entre uma morte e um nascimento.

Maria foi dormir na casa de Ignez.

Me fez um carinho e me disse:

Papai, estou com piolhos outra vez.

Rego Assucena esperando a flor.

Não há ainda arco-íris no céu, não é seu tempo ainda.

Suo. Tremo. Balanço.

Bruno me fala do amor divino.

Adriano me canta o amor divino.

Os gatos traquinam pela casa.

A dor me leva à exaustão, uma vida inteira andando descalço pela fronteira.

Hermenegildo se despede, passarinho que é, avoa.

Hermenegildo se despede, peixinho que é, nada.

Assucena dorme. Maria se faz estrela e brilha.

A dor no meu ombro se espalha pelo meu tendão.

A guerra de Tempo se alastra pelo meu agora.

Sentado à Pedra espero.

As portas do Monastério das Flores Selvagens permanecem fechadas.


nuno g.

Toróró, 11 de janeiro de 2024.