quarta-feira, 23 de novembro de 2022

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

crônica cachoeirana II

Dona Antônia regressou de Feira.

Feijão preto na panela de barro.

Batata-doce arrancada da terra.

O moço da coelba veio ler o registro: 144 reais.

O muro do vizinho segue crescendo.

O mundo vai se estreitando e a visão das pessoas também.

Hora de fazer as voltas-de-rua.

Exames clínicos, pagamentos bancários, escutar o rio.

É novembro: mês do aniversário de Maria, Raquel e Benício.

Lembrei do olho de peixe e da casinha verde.

Ignez foi encontrar o bisavô que saiu do hospital.

Benção mãe Hilda.

Entre os cavalos e os autistas existe algo.

Ana Júlia, tenho pensado bastante em você.

Em você e em Cora Coralina.

Na areia da Faceira tem é coisa escrita.

Os mais antigos à frente.

Existe um abismo imenso entre o olhar e o ver.

Nova nota do exército nos noticiários.

Os militares tupiniquins seguem aferrados às suas raízes podres.

Como um junkie à seringa.

Ou um pinto ao mar de lama e merda.

Os guaranis paraguaios não esquecem.

Todos os exames negativos.

Poesia é caminho.

Macaxeira cozida sem sal.

Imensidão.


nuno g.

Toróró, 11/11/22

crônica cachoeirana.

Ignez e Santi não foram à escola.

Bernardinho todo um cavalheiro, como sempre.

Duas carteiras de camel, por favor.

E seu Ivo suspirando por uma espanhola de vinte anos atrás.

O fósforo, por gentileza.

E o taxista resmungando:

Deus é uma pessoa tão nobre que não se mete na vida de seu ninguém.

Léo sorrindo na ladeira.

Valentina sorrindo na casa de farinha.

Procurando o Come-e-Dorme com o olhar.

O cabelo todo arrumado.

O caminhão do lixo chega: 07:10.

A água da embasa nada.

As contas e ameaças de corte não atrasam.

É novembro: mês dos mortos e de Nossa Senhora D'Ajuda.

A charanga está afinada.

Os filhotes da Pina brincam na casa.

Larissa dorme.

Maria está a caminho da escola.

O cuscuz no vapor do fogo.

Escrever é destino.

Imensidão.


nuno g.

Toróró, 11/11/22

domingo, 6 de novembro de 2022

Ora-pro-nóbis

I.

quando eu crescer vou ser governadora da Bahia

quando eu crescer vou ser arquiteta, youtuber e organizadora de festa,

voltou a repetir Olívia antes da febre.


Sonhei com um morcego me mordendo a coxa numa lagoa de Salvador.

Dico punk me deu uma muda de ora-pro-nóbis.

Tia Nalva leu seus contos mais uma vez.

Maria comeu lasanha.

Conversei com o rio.

Ele me narrou histórias ciganas.

Ele me narrou a história de um anjo muito poderoso e de suas guerras.

O telefone tocou.

O telefone voltou a tocar.

Quando o suco de limão chegou eu estava quase chorando.

Meus olhos liam a dedicatória de Gleyza.

Meus olhos liam os agradecimentos de Gleyza.

Duas chamadas perdidas: 85.

Maria me lê enquanto escrevo.

Boceja, ainda em despertar.

pai, eu quero meu pai.

Um pássaro canta.

Pai, vem ver isso.

Ele ficou louco.

O muro.

Pai, vem ver isso que desilusão.

O vizinho ficou louco.

Ele está mesmo fazendo um muro.

Nós não temos muro.

Temos cerca-viva.

Plantei a muda de ora-pro-nóbis.

E desejei melhoras a Olívia.


II.


A muda, em verdade, era três.

Plantamos as três.

Não esquecer de lembrar.

Às vezes a gramática retorce destinos.

Ele me respondeu

E aí?

Só me passou o número da secretária para resolver tudo com ela

Não sei

A terceira camada era sobre aspiração humana ao inquebrantável.

E todas as lições dos metais e do underground.

É mesmo nos subterrâneos que floresce o entendimento das coisas da ordem do Sutil.

Muitas outras coisas me atravessaram.

Mas não convém falar delas aqui.

Isso não é um diário -- é um dicionário.

Um dicionário de medos imaginários enfrentando-se a uma fé inteiramente selvagem.


III.


Ofertamos flores do Curiaxito à Senhora do Rio.

Cobra-coral.


nuno g.

05/11/22

sábado, 5 de novembro de 2022

motörhead.

 I.


Sonhei que Gleizer me visitava de surpresa.

Sonhar com alegrias não é coisa nada boa, me disse dona Antônia.

A cidade engarrafada como os pensamentos na minha cabeça.

Francisca foi mordida por um mico.

Se não escrevo, enlouqueço.

Lari dorme de ressaca.

O caminhão de materiais de construção atropela a paz da manhã.

Maria come cream cracker com manteiga.

E tenta aprender a atirar de arco-e-flecha.

O dia está nublado como os pensamentos na minha cabeça.

Se não escrevo, enlouqueço.

A cidade está cheia de pessoas.

E muitas delas tem cabeças de formiga.

Sonhar com alegrias não é coisa boa, repetiu dona Antônia.

A gira não para.


II.


Ontem teve atabaques na praça.

Palavras de esperança & sorrisos.

Crianças brincando e a charanga d'Ajuda.

O brinquedo ficou na casa de Olívia.

A névoa aqui - em nossos desbotados corações.

A gira segue.


III.


A placenta de Maria tinha forma de coração e cor esbranquiçada.

Excesso de cálcio.

Excesso de tempo no útero.

O trem, os ônibus e as pessoas com cabeças de formiga engarrafaram a ponte.

Sete pães de sal e duas broas, por favor.

A fascista espanhola fugiu pra gringa.

O vizinho da frente decidiu construir um muro.

Lari desce a escada.

Maria tosse e joga no celular.

Dick, o cão, devora a ração dos gatos.

a gira, Gira.


IV.



(...)


Quer um café?

Não.

Toma um própolis.

Se eu tomar eu vomito.


(...)


Não esqueço a cigana que anteviu e nos anunciou a morte de Ian.

Quase dezembro.

As macaxeiras crescem.

As bananeiras crescem.

Os jerimuns crescem.

As laranjeiras, os limoeiros, os abacateiros crescem.

Só o baobá não resistiu.

À umidade.

Ou à ausência de uma serpente a lhe ceder chão.


(...)


Maria brinca de correr puxando uma linha para que Garfield a persiga.

É tempo de lagartas de fogo, muitas.

Como as flores de maturis dos tabuleiros cearenses.


(...)


Encontrei a agente de saúde que João mordeu semana passada.

Passa bem.

Sanhaçu.


V.


Chove.

Sobre o agora e sobre o ontem.

Sobre as coisas estranhas do agora.

Sobre as coisas estranhas de ontem.

Cada um de nós tem uma digital distinta.

literalmente, papai,

eu vejo minha digital

quando eu era pequena eu pensava que eu estava doente

por causa da digital

eu achava a digital estranha

eu via esse círculo no meu dedo e eu:

oxe!

Chove.

Sobre o agora e sobre o amanhã.

O brinquedo ficou na casa de Olívia.

Iremos lá daqui a pouco.

O que aconteceu ontem feriu.

Não lembrar de esquecer.

Às vezes a gramática traça destinos. 


VI.



Estou considerado não ir.

Quando tocou pra Senhora de Roxo você começou a chorar.

Quando tocou pra Senhora dos Raios você parou de chorar.

Maria chama no skype.

Nada atende.

A força da vida é maior que a nossa imaginação.

A razão atende a uma diminuta parcela da existência.

Belchior na vitrola.

A felicidade é uma arma quente.

É óbvio que ele não falava da felicidade.

Ele falava da poesia.

Como Camões naquele famigerado soneto.

Ele não falava do amor.

E sim da poesia.

Qualquer poema se distingue do tema sobre o qual versa.

Todo poema é sobre a poesia.

Pai, posso tirar a música pra assistir?

Pode.

O som do acendedor automático do fogão entre os pingos d'água da chuva.

Gleizer me disse: hay que desfrutar.

Sem perder o sentido do vigiai, pensei com meus botões.

A água desse rio pertence a quem me desdiz com mais carinho.

João e Night Day conversaram sobre o Viva Deus e a terra vermelha.

A cartografia e a geologia são mais úteis à poesia que a história e a antropologia.

Os celulares que batem foto são o estado terminal da arte da fotografia.

É óbvio agora que o meu encantamento pelo velho feiticeiro tem muitas camadas.

Tem broa que eu comprei pra você.

Muchas gracias!

Se quiser te passo um café.

Você fez duas xícaras com tudo isso aqui de pó?

A primeira delas tem a ver com meu avô.

Com seu semblante, sua morte e a espuma que saía de sua boca quando dentro do caixão.

A segunda tem a ver com seu destino mesmo.

De caminhar sempre sozinho e permanecer fora mesmo quando inteiramente imerso.

As outras Tempo disse ainda não ser hora de saber.

Nesse mundo tem tempo pra tudo.

E sua voz soava como a voz de Milton.

As onças são as divindades que sustentam a esperança quando não há mais esperança.

Você sabe que já vai dar duas e meia né?

Sei, termino de escrever isso aqui e vou.

Namastê.


VII.


Ao que habita a estrela cravada na pedra.

Só quem não deve, não teme.

E todos devemos.

Laroyê.


nuno g.

Toróró, 04/11/22

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

milho branco, vela acesa.

Sonhei que tomava uma cerveja.

Faz anos que não tomo cerveja.

Estava suficientemente gelada, 

mas o que me agradava é que não havia homens com cabeças de formiga.

Nem mulheres com cabeças de formiga.

Havia somente um bar vazio e tranquilo.

Com as paredes antigas de bares antigos.

Silêncio, cumplicidade, calmaria.

A paz é sempre relativa.

Envelhecer exige sabedoria.

Minhas mãos saíram do magma em ebulição.

Areia nos meus olhos.

Ventos e sonhos antigos.

Uma simples cerveja gelada.

Sem nenhum olhar pousado sobre meu corpo.

Sem nada com cabeça de formiga transitando no espaço.

Isso era realmente o que mais me agradava.

Somente um antigo bar.

Vazio, tranquilo e distante.


nuno g.

Toróró, 03 de novembro de 22,


segunda-feira, 31 de outubro de 2022

30/10/22

Manhã.


Tenho areia nos olhos.

Ossos frágeis, quebradiços.

Creio em deus e em seus intermediários.

Santos, caboclos, orixás.

Caminho no deserto desde antes da formação dos oásis.

A delicadeza é uma semente espinhosa.

Tenho areia nos olhos.

Água no interior dos dentes.

E me perco com insistência.

Creio no fogo sobre todas as coisas.

Creio no fogo dentro de todas as coisas.

Creio no fogo.

Onde habito tudo é noite.

Me alimento de restos e sou atravessado por futuros.

Tenho areia nos olhos.

Tenho areia nos ossos.

Não creio em nada além do caminho.

Não creio em nada além do deserto.

Não creio em nada que não tenha cheiro de mata.

Tenho areia nos olhos.

Ouço canções que já não mais são entoadas.

Converso com o rio.

Só Maria me faz ainda querer estar aqui.

Estar aqui e seguir.

Maria acorda e olha os três gatinhos amamentando no centro da sala.

Os acarinha, sorri e volta a dormir.

Trago mais mortos no corpo do que sementes.

Hoje é véspera de trovoada.

Maria me disse: papai, amanhã vai ser o caos.

Não existe verdade fora do ato de mastigar a terra.

Ontem a lua se pôs bonita.

Creio na lua.

Em seus ciclos e em suas sombras.

Olho o semblante dos mortos no espelho.

Eles choram.

Se curvam ante o declínio da esperança de Tempo.

Sou somente uma criança com areia nos olhos.

E esses vulcões que me nascem à pele.

Anunciam aparições e promessas.

Maria sonha e em seu sonho sou só uma criança com areia nos olhos.


Tarde.


(...)

quando a face do polegar assentou à lâmina do leitor ótico

revi as pessoas da zona rural com suas melhores roupas de domingo

                                                com seus melhores perfumes de domingo

perguntando umas às outras:

já perdeu a honra?

quando as mãos da mesária arrumaram meu dedo sobre a lâmina do leitor ótico

minhas unhas roídas ficaram demasiadamente expostas

e certa vergonha / certa aflição

veio à tona

como um golfinho que salta em direção às nuvens ou às estrelas


onde habito, habita a noite

onde habito, habita o frio

são rápidos e ligeiros como raios os passos da história se dissolvendo em pura política

e quando a história se dissolve em pura política

o reinado do terror se instaura no trono de Tempo

Maria pressentiu o caos,

a razão no corpo de L. se assustou com o cadáver que em sonho enterrara no jardim

creio no sol sobre todas as coisas

creio no sol dentro de todas as coisas

creio no sol


quando a face do polegar assentou à lâmina do leitor ótico

revi meu avô na sessão eleitoral da prefeitura

votando em cédula de papel

no coronel Adauto Bezerra

certa vergonha / certa angústia / certa aflição

e as pessoas da zona rural com a poeira avermelhada da piçarra das várzeas

                                            com suas melhores roupas de domingo

                                            com seus melhores perfumes de domingo

perguntando umas às outras:

já perdeu a honra?


(...)


Noite.


a estrela cintilou no céu.

fogos na terra.

que haja mais justiça.

que haja mais sonho e comida.

diversão & arte.


e que os fascistas todos marchem ao inferno.


nuno g.

Toróró.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Nenúfares II

para Jack Kerouac & Gary Snider,


Sonhei com Bruno lendo paradiso de Lezama Lima no quarto 217 do Overlook hotel.

Chovia muito e havia estilhaços de granadas ricocheteando por todos os lados.

Gerardo Machado, Fulgencio Batista e Golbery do Couto e Silva tomavam drinks na janela.

Sonhei com bernardinho saltando a porteira do sítio.

Sonhei com André Dias desenhando a palavra nenúfares na soleira do dicionário.

Chovia muito.

Sobre as plantações de papoula.

Sobre os cílios e as pálpebras de Neruda.

Sobre as cartas do tarot de Jodorowsky.

Sonhei com todos os meus sonhos encharcados por uma chuva de séculos.

Sonhei com o escárnio, a mentira e as infinitas perversões do ego.

Sonhei com cinzas e com armadilhas.

Sonhei com meus dois abikus em sua floresta.

Sonhei com Claudio Reis entre lírios brancos.

Sonhei com os sonhos da mulher que traz no corpo a razão.

Sonhei com a morte e com suas sedutoras artimanhas.

Sonhei com a chuva, com as granadas e com os agrimensores do Palácio dos Einhejar.

Sonhei com arquivos labirínticos e com a fé selvagem.

Sonhei com o assassinato de meu pai.

Sonhei com o suicídio de minha mãe.

Sonhei com os tapuias do Jaguaribe.

Sonhei com a chuva de mil séculos e com os erês de Tempo.

Sonhei, sonhei, sonhei...


nuno g.

Toróró, 25/10/22.


Nenúfares

Sonhei que estávamos próximos ao Bosque de Chapultepec.

Tato, Lupe e eu.

Havia formigas e latas de uma aguardente chamada el tiburón.

Não haviam deuses nem nada além de formigas.

E de pessoas com caras de formiga.

Eu ia até o banheiro mas não conseguia urinar.

Pois pessoas com cara de formiga se amontoavam no banheiro.

Num banco de praça metálico uma velha senhora de óculos lia os detetives selvagens.

Não havia mistérios nem nada.

Apenas cães metálicos e sombra de gatos cruzando a noite mexicana.

Quando acordei chovia.

Era véspera de trovoada e o sorriso de Valentina estava no meio do céu.

Como uma lua iluminando as águas que caíam como lágrimas.

E formavam o rosto de Hilda Hilst no ar.

Estávamos saudáveis, felizes e cheios de saudade.

Mas algo de nosso sangue e nossa juventude havia se esvaído.

Sonhei com Claudio Reis e Mardônio França.

E perambulávamos pela noite cachoeirana.

Como três palhaços endiabrados que recém haviam entendido.

Que em toda esquina existe a probabilidade de se encontrar uma lâmpada com um gênio engarrafado.

O despertador tocou.

Hora de acordar Maria para ir à escola.

O dia nublado. 

A recordação de Valentina sorrindo em seu dia.

Cartas de tarot espalhadas sobre o chão da casa.

E notícias do fim do mundo gotejando sobre o telhado.

Gotejando sobre os cães no terreiro e sobre o sangue e a juventude que havíamos perdido.

Maria se negava a levantar.

Papai, por que hoje você me acordou mais cedo?

Não filha, já são 05:39.

Enquanto escovava os dentes recordei do sonho com a mãe de santo tomando ayahuasca.

E as notícias do fim do mundo seguiram gotejando sobre o telhado.

Maria, finalmente, desceu as escadas.

O som de seus passos nos degraus de madeira entrava no meu corpo.

E se unia ao som de meu coração enferrujado.

A palavra que esqueci me perturbava.

Como se o dicionário ainda estivesse incompleto.

E tudo o que me trouxe até aqui se revelasse frágil e precário.

Maria escovou os dentes, penteou os cabelos, passou mel nas unhas e sorriu.

Recordei de um sonho muito antigo.

De um sonho terrível com o espírito lunar de minha mãe.

Gabriel me ligou: as crianças acordaram doente aqui.

Maria deitou no sofá.

Seguia chovendo.

E as notícias do fim do mundo estavam infiltradas em cada gota de água que caía...


nuno g.

Toróró, 25/10/22

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Seguimento.

 para Allen Ginsberg,


Sonhei com a família Pascoal e com os monges beneditinos.

Uma atmosfera de canto gregoriano.

Compramos um obi, branco.

No fogo, as águas.

Na pedra, as águas.

E nas vestes brancas todas as cores.

Sonhei com um mangue e com comida feita à base de fetos humanos.

Sonhei com um velório e um prato de ervas sobre a mesa.

Sonhei com parentes desconhecidos.

Pequenas dívidas de rua.

Treze reais na miscelânea da Faceira.

Trinta e seis reais no Mário da feira.

Haverá outra vez um tempo em que as diferenças não sejam um fardo?

Os fascistas atiraram granadas contra os federais.

Saudades de Durruti e dos carbonários.

Haverá outra vez um tempo em que o amor não traga o peso do mundo?

A poesia é a ciência das passagens.

A arte de decifrar rastros antigos de vozes quase esquecidas.

No rio, as águas.

E em seu espelho a esperança de regressar ao corpo em que nasci.


nuno g.

Toróró, 24/10/22.


sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Balada dos sonhos da infância.

Hoje, no mercado São Paulo.

Ou seria na farmácia Pague Menos?

A mulher me atendia ao caixa.

Usava um broche escrito:

Suicídio não é tabu.

Eu comentei, legal!

Foi do setembro amarelo?

Ela respondeu: não.

Sem pensar tornei a perguntar:

Você também tem suicidas na família?

Ela, com a naturalidade de quem nega algo evidente, não.

Quando criança tive vários sonhos que se repetiam.

Em um deles eu ia visitar um presídio.

Ao final da visita o carcereiro sempre me barrava a saída.

Eu era agora então um presidiário.

E acordava.

Nunca cheguei a saber como era a vida daquele presidiário.

Assim como não sei qual relação existe entre esse sonho e aquele broche.


nuno g.

Toróró, 13/10/22.


quarta-feira, 12 de outubro de 2022

O tuaregue IV

Todas as manhãs agora chove.

São as lágrimas do Senhor lavando a terra para a semeadura dos Lírios Brancos.

Lavando o deserto.

Se não fosse árduo e difícil não haveria dor no nascer.

Ontem Ele veio.

Trazia boas notícias de longe e muita pressa no corpo.

Tem coisas que só nascem depois de acesos todos os fogos.

Seus pés deixaram uma trilha de mel.

Seguimos.


nuno g.

Toróró, 12/10/22.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

O tuaregue III

Acaraú.

Rio que corre do outro lado das areias.


A fé a fio.

Amolado.

Que corta o fogo e as águas.


O que não sabe cantar / O que não sabe dançar

O que traz a doença dentro e não quer partir.


A Rainha dos Céus chorando sobre nós.

Amalá.


nuno g.

Toróró, 11/10/22. 

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

O tuaregue II

Após a missa, os tambores.

E outra vez aquele canto noturno de deserto africano.


Maria comeu grão de bico.

Os erês brincaram com Larissa.

Acaçás.


Abriu-se a porta da capela.

Viva Santo Antônio.


Amanheceu chovendo.

E um enorme arco-íris floresceu sobre o rio.


nuno g.

Toróró, 10/10/22.

domingo, 9 de outubro de 2022

O tuaregue.

Sonhei com Milton, uma gente muita simples e uma praça chamada Bom Jardim.

Havia também um ônibus que nos levava a todos.

*  *  *

As moedas de mãos em mãos até chegar à cabaça.

Meu estômago mais revirado que de hábito.

A primeira limpeza. A segunda limpeza.

E o rio levando o que deve ser levado.

*  *  *

Desfazer laços é tarefa árdua.

Sempre à sombra o que nos acaricia ferozmente.


nuno g.

09/10/22.

 

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

angústia.

Hoje mais um Yanomami foi morto a tiros.

As fronteiras da expansão colonialista seguem sob as mesmas regras de antanho.

O vale-tudo do genocídio do século XVI voltou à flor da pele da história.

Os representantes do colonialismo interno decidiram abandonar o pudor.

Assumiram abertamente o fascismo como forma política legítima.

O teatro dos arrependidos não nos comova nem nos ilusione.

Neoliberalismo econômico.

Neopentecostalismo religioso.

Racismo cultural, vulgaridade estética e pseudonacionalismo.

Todos se juntam para salvar a democracia.

Todos agora se veem obrigados a apoiar o partido dos trabalhadores.

Envergonhados e estratégicos.

Esperaram a eleição de um fascista.

Esperaram quatro anos de um governo fascista.

Esperaram o segundo turno.

Esperaram a eleição dos piores para o senado e a câmera.

Esperaram para negociar uma vez mais.

Esperaram para garantir que o governo do partido dos trabalhadores não mudará nada.

Apenas salvará o sistema das garras do fascismo.

Hoje a iminência de um conflito nuclear mundial é maior que em todas as décadas passadas.

E isso soa até esperançoso.

Quase revolucionário.

Como levantar e sair de casa num país em que 43,2% das pessoas se assume fascista?

Todos armados. Todos donos de si.

Narcisistas admirando no espelho do palácio da alvorada a imagem refletida de sua própria ignorância.

Arrotando preconceitos e má-fé.

As aldeias infestadas de pistoleiros.

As universidades acossadas pela falta de verba e por uma desconfiança de tudo que seja saber.

Os piores venceram. Os que permitiram sua vitória agora se chegam marotamente.

Talvez percebam que as forças que despertaram escapam ao seu controle.

Quando João Batista Figueiredo sancionou a lei da anistia começou a semear o hoje.

Alimentaram o Inominável décadas esbravejando atrocidades no parlamento.

Agora fica claro: era preciso ter à mão um projeto autoritário.

Caso algo desse errado sempre teriam a quem recorrer.

Recorreram.

Aqui chegamos.

Uma pequena parte é só ignorância, três por cento talvez.

O resto é isso mesmo: identidade de valores.

Fetiche militarista e ódio a tudo que remeta às memórias que nos fazem ser o que somos.

Os de Canudos tinham razão.

Os do Caldeirão também.

Nem pra guerra esse rincão parece servir, mas um dia chega.

A corda tá esticada.

Aqui e na Ucrânia.

Estamos todos doentes, faz tempo.

Enquanto houver fé, terreiro e poesia haverá esperança.

Mais cada vez temos menos fé, menos terreiro e menos poesia.

Tudo é negócio e no mundo dos negócios outra vez vale-tudo.

Como no século XVI. 

Conquistadores e bandeirantes.

Já esquecemos o estardalhaço que foi quando pixaram a estátua do Borba Gato?

Já esquecemos o vigor da nossa polícia defendendo os relógios da globo nos 500 anos?

Hoje o país acorda com mais armas e menos livros.

Universidades ameaçadas de fecharem por não poder pagar conta de água e de luz.

Aldeias indígenas invadidas por garimpeiros e pistoleiros.

Agronegócio não é ecológico, é óbvio e ululante.

No século XVI se debatia o direito à escravidão, hoje também.

No século XVI se discutia se os outros tinham alma, hoje também.

A classe média se move atarantada.

Os setores algo esclarecidos das elites tem esperança.

Eleger o partido dos trabalhadores em condições tais que não possa governar.

Refém do agronegócio.

Refém dos banqueiros.

Refém da miséria moral e estética da massa evangélica.

Refém de si mesmo e de sua política de alianças perpétuas e negociações espúrias.

É só mais um capítulo de um longo massacre.

Haverão outros, caso a hecatombe nuclear não se concretize.

Aqui na matéria, com a visão turva como é toda visão da matéria.

Parece mesmo ser o fim de alguma coisa que não sabemos nomear.

Todo fim é também um começo.

Assim como toda morte é um nascimento.

A democracia morreu pela sua própria incapacidade de isolar os que a ameaçavam.

A tolerância aos intolerantes nos trouxe até aqui.

Talvez esteja próximo o tempo em que o céu desabará sobre nossas cabeças.

Que neste tempo não haja anistia, nem esquecimento.

E que os que estão nesta guerra há cinco séculos nos ensinem a sobreviver e a manejar as armas.


nuno g.

Toróró, 07/10/22.



quarta-feira, 5 de outubro de 2022

devoção II

para Janaína, Maria Alice e Ian,




Ele veio mais uma vez.
Levou Tempestade, seu cavalo.
O sol amarelou o mundo.
O fascismo fazendo ferver a terra.
a jangada que voa no mar
voa no meu coração

As águas do Jaguaribe são sim as águas de todos os rios.
Ele veio uma vez mais.
Para não esquecermos que a terra que pisamos é cemitério indígena.
E que quando as onças cantam futuro e passado se tornam sinônimos.
Ele veio e disse: desconfiem.
Que o neocolonialismo seja sinônimo de neofascismo assusta.
Só quem deseja matar uma vez mais os mortos não sente temor e ódio.
Nós estamos vivos.
Conectados ao sangue tapuia que corre naquele rio.
As águas do Jaguaribe são sim o sangue que corre nas minhas veias.
Ele veio. O sol brilhou majestoso.
Tempestade se foi.
O galo também.
Quando eu morrer se escreva à lápide com a tinta do meu sangue:
a morte de meus pais não foi em vão
e que a jangada siga singrando entre o mar de constelações...



nuno g.
Toróró, 04/10/22

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Devoção.

 para Mardônio França & Claudio Reis,


Ele veio cedo - muito cedo.

Outra vez em seu Ivo - entre um menor e um winston.

A voz entre cinzas, neblina e outras sílabas.

Teu irmão te precisa.

Depois de um longo e prolongado silêncio.

João matou um galo.

O fascismo passou no teste - a ilusão mostrou que tem poder.

Outra vez em seu Ivo - entre um menor e um winston.

O som do pássaro na gaiola.

O som do rádio.

Estórias de sexo & dinheiro.

A fruta só dá no tempo.

Ele veio cedo outra vez.

Levou um galo.

Trouxe notícias nada boas.

Veio recordar não deixar esquecer.

Que esse chão é nosso.

O mensageiro das asas nos pés.

O menino das mil travessuras.

Veio recordar que o fascismo é a pior das ilusões.

Que a matéria nos ofusca a visão.

Que o Senhor da Vida é também o Senhor da Morte.

E que a palha, o ar, o fogo e as águas estão unidas no Tempo.


nuno g.

Toróró, 04/10/22.

sábado, 1 de outubro de 2022

sonhos

Sonhei com Inaê três vezes.

Na lua seguinte sonhei com os guardiões de Tempo:

sustentando as colunas do Astral.

Umas luas antes sonhei com Ernesto e seu Caminho Amarelo.

Quando acordei havia uma cobra de duas cabeças em casa.

Dino a atalhou atrás do armário branco.

A esperança e a morte são boas amigas.

Na estrada os fascistas trocavam sorrisos como se o amanhã lhes pertencesse.

Sonhei com Benedito e Maria.

Eles se banhavam no rio enquanto as onças uivavam na serra.

Um gato deitou no meu colo e juntos cruzamos a madrugada.

Seu pelo era macio e suas orelhas eram espetadas.

Sonhei com Inaê três vezes.

Nas três ela era uma senhora muita velha.

Coberta de flores roxas e lama de mangue.

As canções do motorhead me recordam muitas coisas.

Olhar as juremas floridas espanta tristezas.

Feridas servem para saber que estamos vivos.

O fascismo nos ensina a desconfiar de amabilidades.

Sonhei com Inaê três vezes.

Em outra lua sonhei com o Senhor da Justiça.

Ele trazia às mãos uns lírios brancos da Mãe d'água.

Devolvemos a cobra de duas cabeças ao mato.

E quando acordei o dinossauro não estava mais na sala.


nuno g.

Toróró, 01/10/22.


quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Iluminura II

As juremas floresceram.

Cintilante invadiu a roça dos sonhos para comer os pés de macaxeira.

Os cães latiram e despertaram Moura.

Tia Norma, perdida no poço das onças, me pedia para lhe guiar pelo Caminho Amarelo de Ernesto.

Ignez chegou, Maria partiu: foram para a escola outra vez.

Botei água pro café, tomei um rapé, acendi um cigarro.

E sorri pensando que todos os sonhos que não consigo lembrar estão reunidos em algum lugar.


nuno g.

Toróró, 29/09/22. 

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

iluminura

Tia Neuza fez aniversário:

noventa  e uma primaveras.

Pina pariu:

três lindos gatos alvinegros.

O fascismo seguiu mordendo nossos calcanhares:

a razão burocrática também.

Choveu.

Maria fez prova de geografia.

Comemos feijão com pirão.

A lua, amarela, se pôs pontualmente às oito horas na serra de Muritiba.

Maria comeu macarrão.

Com tomates, pimentão, ervilhas e champignons em conserva.

O vento Aracati veio até aqui.

De jangada até o Montecristo.

Guiado pela alma do Jacaré, o pescador.

Depois de saveiro, pelo Paraguassú.

Acariciou a Pedra da Baleia.

E se foi, cantando:

como costumam cantar os ventos que atravessam as peles de Tempo.


nuno g.

Toróró, 28 de setembro de 2022.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

A morte e a morte de Tempestade

Tempestade morreu: regressou às terras de seu dono.

De onde nunca desejou ter saído.

A cadelinha de Ignez também morreu.

Antes de morrer saiu fogo de seus olhos.

Uma flor em chamas.

Também o cavalo do caçador se foi.

Três mortes antes do amanhecer.

Na floresta dos sonhos uma grande festa.

Aqui na terra o pesadelo fascista.

Tempestade sabia muitas coisas.

Entre elas o caminho dos currais velhos de cor.

O cavalo do caçador seguiu a flecha do Velho.

Ontem me narraram três sonhos.

Hoje me narraram três mortes.

A fogueira segue acesa na encruzilhada.

Dos três nomes que possuíram o corpo de Tempestade.

Foi este último que o acompanhou à partida.

O fascismo não nos fará esquecermos o que não somos.

Nem será capaz de deter nosso caminho em direção ao que podemos ser.

Tempestade sabia muitas coisas.

Na lua cavalga Hermenegildo.

Cleonice traz entre os dedos uma esperança verde.

Em meio a neblina, Tempo sorri.

E o cortejo de encantados segue entoando seus cânticos febris.


nuno g.

Toróró, 27/09/22

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

sonhos.

banhos, serpentes, eguns.

ruas estreitas e muitas águas.

os fascistas voltaram ao poder na Itália.

a fogueira segue acesa na encruzilhada.


nuno g.

Toróró, 26/09/22.


domingo, 25 de setembro de 2022

cemitério indígena.

era uma vez.

ossos & penas debulhados.

entre grãos de nada.

e camadas e camadas de esquecimento.

era uma vez.

um chão onde antes dançavam os tapuias.

onde antes se fartavam de alegria corpos e corações.

era uma vez uma menina.

com um matulão de sonhos.

e um candeeiro de larva vulcânica.

era uma vez a morte.

e a chegada dos nossos.

com suas armas e sua ignorância.

e seu deus esfomeado de ouro e prata.

era uma vez um futuro.

ossos & penas debulhados.

entre grãos de nada e eternidade.

entre chispas de fogo fátuo e desmemoria.

onde não dançavam corpos tristes e corações vazios.

era uma vez um recém-renascido.

andando entre arranha-céus e um deslumbrante céu sem nuvens.

banhando-se num rio de águas antigas.

ouvindo onças imortais.

embalando-se nas redes de Tempo.

entre-nuvens. entre-árvores. entre forasteiros-familiares.

era uma vez um sonho.

entre pontes e fragrâncias.

com uma saudade do mar: verde e absoluto.

era uma vez cães que latiam e latiam sem parar.

ossos & penas debulhados num chão indígena.

e uma leve esperança nas mãos que guiam a passagem.

era uma vez um guerreiro que guerreava com delicadeza e suavidade.

era uma vez um fogo inextinguível.

era uma vez

era uma vez

era uma vez...


nuno g.

Toróró, 25/09/22.

sábado, 24 de setembro de 2022

chuva.

Hermenegildo cruzou meu sonho a trote.
Tempestade cintilava.
Pina pariu.
Tiros em Divinópolis: onde antes só a poesia primorosa de Adélia.

*  *  *

O corpo-água e a história do menino afogado.
O corpo-fogo e a história das chamas e labaredas.
A pedra, o sorriso e a névoa.
Nossos corpos em pedaços ou a história como mapa.
Artefato caseiro que explode a procissão dos dias.

*  *  *

Não esqueço e sigo.
No rumo do horizonte.
Estrada que trilhou Cleonice.
Antes de receber a estrela e a farda.

*  *  *

Esmeralda veio na linha do mar.
Aos pés do ferreiro da mata assentou seu ponto e se firmou.
Arco-íris no céu, serpente na terra.
Celebrar os mortos é apascentar o que nos ameaça.
Entre o Nada e o Nada muitas coisas se movem.
As pétalas das aves de arribaçãs são promessas de mais-vida.

*  *  *

Um vaso de violetas roxas aos pés do pescador.
Coroa-de-frade no ori da casa.
Hermenegildo, Cleonice, Tempestade.
Esmeralda é sereia da linha do mar.
Esmeralda é devoção, alfazema e passagem.

Tudo passa.
O raio fulminante do jaguar nos atravessa.
Entre as águas e o fogo, areia.
Machado à beira-mar.

nuno g.
Toróró, 24/09/22.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

viernes entre nuvens.

As oiticicas não pegaram.

*  *  *

A carne também se amacia.

Igualmente ao espírito.

*  *  *

O futuro está atrás.

O passado à frente.

As batatas-doces sim vingaram.

E o candeeiro seguiu cumprindo seu intuito.

Nos lembrando que à nossa volta faz escuro.

Recordando que cura e perdão não são estações, são caminhos.

Ainda quando isso queira dizer acender feridas necessárias.

Ou mesmo que a nossa limitada percepção não nos permita mais escrever com nuvens.


nuno g.

toróró, 23/09/22.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

miércoles de sol.

para Sergio Mondragón,

Maria Luísa sonhou com um palácio.
Cheio de flores.
Verdes, azuis e rosas.

*  *  *

Bernardo - gritaram Inês, Maria e Santiago.
No exato instante em que o sol nascia.

*  *  *

Enquanto buscávamos a forma animal de nossa alma.
Tempo brincava de esconder-revelar e semear.

*  *  *

A saia branca girou no terreiro.
Não era sonho - era futuro que já ocorreu.

*  *  *

Muita névoa.
Óleo vazando da caixa de marcha.
João perseguindo a própria liberdade.

*  *  *

Na floresta você é o jaguar.
E as onças criaram asas e seguiram seu voo. 

*  *  *

Um Vento chamado Aracati percorreu nossas entranhas mais uma vez.
Sob o Machado, a luz áspera e o corpo sem corpo da salamandra do fogo.

*  *  *

Enquanto Tempo, em forma de Sussuarana, brincava.
Esconder-revelar, o palácio da Rainha da Floresta.
Suas flores semeadas e suas fogueiras sempre acesas.

*  *  *

No céu azul da floresta, o Gavião. 
E no chão, a Serpente.
Com suas plumas de mil cores.
Entrançada à saia branca.

*  *  *

Aracati, o Vento - arrastou ao sal o que já não servia mais.

nuno g.
Toróró, 21, setembro, 22.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

o sonho do cego do Caquende

até os cegos te contam os sonhos?

*  *  *

Formou-se e se viu obrigada, por falta de trabalho, à mudar para Minas.

Chorava. Chorava. Chorava.

Morava no Guarany - que todos, nessa cidade, sabem onde é.

Que todos sabem a Quem pertence.

*  *  *

O excesso de umidade apodreceu as raízes do Baobá.

Ou talvez tenha sido mesmo a ausência de uma serpente enrodilhada em veneração.

*  *  *

Claudio nos lembrou do aniversário do mateus Cachoeira.

Foi Tempo quem me mandou substituir diário por dicionário.

Saber menos. Confiar mais. Seguir.


nuno g.

Toróró, 16/09/22.

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

meu avô.

gosto de olhar as árvores crescerem.
em silêncio.
gosto de ouvir as árvores crescerem.
deitado à rede.
vez ou outra um passarinho rompe o silêncio.
é como se meu avô me visitasse.
nessas horas meu pensamento se desgarra da distração onde vive.
e quase toca algo de matéria.
passarinho avoa, meu avô se vai.
e meu pensamento volta à distração onde vive.
gosto do nada e de todas as coisas que vivem dentro do nada.
tenho horror à palavra que só existe em representação.
tenho horror à palavra que é seta apontando pra fora.
por isso uma das minhas palavras favoritas é víscera.
também gosto de amarelo que quando se junta com caminho sempre me lembra Ernesto.
e todas as lonjuras onde nossos passos teriam tocado se ele não partisse tão antes.
gosto de pensar que um dia tudo isso passa.
essas árvores vão ter virado floresta.
e meu corpo vai estar sob esta terra.

*  *  *

gosto de pensar que já vivi aqui outras vezes.
e que algum dia renascerei entre essas pedras que amo.
e esse rio será águas límpidas.
serei aquele pássaro e o homem deitado na rede será meu avô.
ele me ouvirá cantar e o meu canto o salvará mais uma vez.

nuno g.
toróró, 14 de setembro de 22.

domingo, 11 de setembro de 2022

as três estrelas.

para Larissa Gonçalves, Bruno Gonçalves e Maria Alice Gonçalves 


Foi uma cigana que me disse:

meu filho vai enfrentar demanda difícil,

mas vai vencer.

Três anos depois a mesma cigana.

Batendo fotos no estacionamento de um centro comercial.

Nos guardamos na casa de uma filha das águas doces.

E vimos a lua de prata e fino entendimento.

Os aviões fazendo a volta antes de zarpar ao sul.

E o som do mar ecoando no espelho de Tempo.

A voz de Milton ainda no corpo.

A voz de Deus.

A voz de Miguel, o Archanjo.

A voz de Yauaretê. 

A voz de Iararana. 

A voz da Sussuarana.

A voz do jaguar encantado.

A voz dos sonhos e da infância.

A voz das onças e de Aracati.

Dormimos num motel.

Mas não fizemos nada do que se espera daqueles que dormem em motéis.

Dormimos apenas.

E eu não pude recordar dos sonhos que tive aquela noite.

Menos ainda esquecer quão importante eles eram.

Escutei os sonhos dela.

Sobre carros, avós e confirmação.

Obrigado Milton.

Obrigado Cigana.

Obrigado povo das águas.

Em tempos de dependência e morte.

Só sobreviverá o que for amor.

O resto será já cinzas e esquecimento.

Quando as três estrelas iluminarem outra vez a escama da praia.

O resto será já passagem feita.

Ex-voto. Ex-corpo. Ex-memória-da-escuridão.

A voz de Milton. O trem de ferro.

As palavras rearranjadas de forma a expressar uma imensurável amplidão.

Obrigado Milton.

Eles todos passarão.

Você não. Você nunca.

A voz de Dom Pedro Casaldáliga.

No quilombo. Na aldeia. No terreiro.

Nas três estrelas que iluminam as ruínas dessa nação.

A voz do Jequitinhonha.

A voz do Araguaia.

A voz do Jaguaribe.

Eles todos passarão.

Sua voz não.


nuno g.

Toróró, 11/09/22

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

cambono II

na curva da  estrada, à noite, o cavalo de Hermenegildo cintila.

*  *  *

as promessas do sol ressuscitam à voz do Deus da Guerra.

*  *  *

samsara não é uma palavra, é uma dança que nos ensina.

*  *  *

rios e serpentes, montanhas e corpos esquartejados.

*  *  *

longe daqui uma aranha tece o Destino.

estamos sempre em outro lugar e o que somos será sempre impronunciável.


nuno g.

toróró, 09/09/22.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

cambono.

Sonhei com Dick, o cão.

Ele estava desplumado e triste.

Como um rio ante as represas que o impedem de chegar ao mar.

*  *  *

No sonho também havia outras coisas que não consigo lembrar.

As coisas que realmente interessam estão sempre em outro lugar.

Como as lágrimas que só afloram quando a distração nos leva a sentir o esquecido.

*  *  *

Em outro sonho eu cavava uma cova.

E quanto mais eu cavava menos espaço vazio havia.

Meu corpo superava em matéria o vácuo que minhas mãos lhe destinavam.

*  *  *

Cleonice foi coroada Senhora e Madrinha.

Por um instante senti que poderia alcançar alguma compreensão.


nuno g.

Toróró, 08/setembro/22.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

a báscula do julgamento III

Garfield se entrelaça às nossas pernas como um cipó na árvore de Tempo.
Hermenegildo segue passando todas as tardes montado em seu cavalo.
Tempestade pasta e nos guarda do abismo.

*  *  *

Perdão e cura não são estações, são caminhos.

*  *  *

Lírios brancos em sonhos cheios de urgências.

*  *  *

Onde mais andaria o Cristo senão entre os famélicos?
Qual força seria suficiente para impedir o rio de chegar ao mar?
Dino caça. Pina dorme. Dick passeia.

*  *  *

As flores roxas de São Miguel semeiam o horizonte.

nuno g.
Toróró, setembro de 2022.

domingo, 4 de setembro de 2022

a báscula do julgamento II

A procissão marchava dividida em duas fileiras.

Eles haviam desaprendido a língua portuguesa.

Caminhavam em silêncio.

Apenas o som dos passos sobre os irregulares paralelepípedos.

*  *  *

Maria me abraçou à sombra do pé de cacau.

*  *  *

Os maracás tocaram com força e intensidade.

As chamadas foram entoadas com firmeza.

Cleonice se ergueu e cruzou o Azul e o Branco até a mesa do centro.

*  *  *

Recebeu a graça do Tucum e a benção da Rainha.

O sol, a lua e as estrelas brilharam.

As varas do caule de milefólio foram consultadas.

*  *  *

Maria me abraçou.

A luz invadiu o quarto.

Enquanto os encantados dançavam ao redor das brasas que resistiram à madrugada.


nuno g.

toróró, domingo de 2022.


sábado, 3 de setembro de 2022

a báscula do julgamento.

Judite desapareceu.

Stella se matou.

Hermenegildo segue passando todas as tardes em seu cavalo.

*  *  *

papai, cadê as três estrelas que a lari me deu?

E os seus lábios se moveram pronunciando sílaba-a-sílaba o conto uruguayo.

*  *  *

Nunca encontramos o corpo.

Nem os filhotes.

Os jerimuns brotaram.

Entre as juremas e o mar.

*  *  *

Alguma tosse povoando o inverno de setembro.

A cidade girando sobre si mesma como um pião.

*  *  *

Cuscuz com ovos e um sonho qualquer.

Na desimportância de uma distração a manhã se consumindo.

E os tomates avermelhando a horta.


nuno g.

Toróró, sábado de 2022.


quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Areia de cemitério

 para Ian Gonçalves,


A charanga d'Ajuda despertou o Caquende.

Arco-íris nenhum no céu.

Os convites de domingo se desmanchando como sorvetes ante a ira do sol.

Um amigo, filho de Odé, soltou sua angústia:

Então tenho que matar meus pais!?

A frase, tal como pronunciara, soava hesitante. 

Não chegava a ser uma pergunta nem uma exclamação.

Ou era as duas coisas a um só tempo.

As certezas se desmanchando ante o fascismo.

Era uma vez uma cidade onde corria um rio.

E junto com ele corriam os tapuias.

Nossos antepassados chegaram e construíram ali um forte.

Os traíram. Os perseguiram. Os mataram. Os expulsaram daquelas terras.

Um desses tapuias virou vento.

Seu nome é Aracati.

Sua presença me protegeu a infância.

Junto com ele vinham as onças.

Suçuaranas. Pardas. Castanhas.

Eram minhas melhores amigas.

Seu uivo me ninava.

Em meus sonhos regressavam memórias de um tempo anterior ao colonialismo.

Dois dias depois o arco-íris chegou.

Rastejando como uma serpente sobre o rio.

Não me deixando esquecer que todo chão que piso é cemitério.

E que a mesma lama roxa onde nasceram todas as formas de vida.

É o lugar onde nos encontraremos com a morte algum dia.

Botei as moedas que tinha no saco das ofertas da festa.

E a charanga seguiu pra despertar a Faceira.

Seus deuses, seus pescadores e seus indígenas.

Segui meu rumo e no mais improvável dos acasos.

Encontrei Dom Mario Benedetti. 

Na praça do Lavrador em Cruz das Almas.

Ele me recorda que o Nacional de Montevidéu.

Está nas semifinais da sulamericana.

O Ceará não.

Às vezes a vida se decide nos pênaltis.

Como quando um dedo aperta um gatilho.

Ou quando alguém salta de um arranha-céu.

O índio que me acompanha me acaricia os cabelos.

Ouço seu ponto cantado.

Vejo seu ponto riscado.

Tateio com a língua seus lábios feridos.

Entendo assim a coexistência do doce e do amargo.

Atravesso sua mirada como um raio ou uma lança atravessam uma chaga.

Entendo assim a coexistência da tristeza e da alegria.

Recordo o vale dos jaguares tapuias de onde vim.

Recordo os fortes traços indígenas nas feições de meus sobrinhos.

Em seus corpos e trejeitos.

Nem tudo o colonialismo mata.

Nem tudo o fascismo faz perecer.

O futuro é sempre o que está soterrado.

E todo passado aguarda ainda o tempo de amanhecer.

A areia de cemitério que trago nos olhos, no tórax e nas mãos.

Vem de longe, muito longe.

Vem daquele velho túmulo de azulejos azuis que já não existe mais.

Vem das margens daquele rio que o sangue dos tapuias avermelhou as águas.

E foi sobre ela que Ogum, irmão de Odé, serviu seu feijão.

Aracati, seu filho, comeu com as mãos.

Antes que a serpente das sete cores tornasse a cruzar os céus.

Antes que a procissão dos encantados tornasse a cruzar o horizonte.


nuno g.

Toróró, 21/25 de agosto de 22.


segunda-feira, 15 de agosto de 2022

doces águas.

Dino, o gato filósofo, espreitando na porteira.

Come-e-Dorme, o cão, dormindo sobre o calor das brasas da fogueira de ontem.

Um menino vestindo uma camisa com o Machado do Senhor.

Foi com um beijo que Judas traiu Jesus - me disse seu Antônio.

Também me disse seu Ivo do mercado.

A chuva voltou e com ela sentimentos bons e singelos.

Tudo teria sido mais suave se você não tivesse morrido,

mas agora eu sei que você precisava morrer.

Era isso que eu te diria hoje mãe.

Te diria também que ontem o dia foi bonito bonito.

Que sua neta cresce bem, que os tomates já foram colhidos e que as pimentas brotaram.

Pai, tudo seria mais suave se não tivessem te matado,

mas eu sempre soube que eles precisavam te matar.

Era isso que eu te diria hoje.

Te diria também que tua neta tem uma casa na árvore.

Que ontem trocamos os curativos de João e Cristalina.

E que as macaxeiras e batatas-doces vão crescendo muito bem.

A chuva voltou e com ela sentimentos bons e singelos.

Meu avô, ontem claudinha me mandou um poema que me lembrou de você.

De seu desespero, seu hálito de cachaça e seu imenso amor.

Era isso que eu te diria.

Te diria também que está tudo bem.

Ontem foi um dia lindo. Choveu e comemos bistecas de porco com batatas ao forno.

O Ceará perdeu o derby, mas não doeu tanto.

Esse mês aqui tem muitas flores e pipocas, vovô

- e entre pétalas e grãos sempre vejo suas lágrimas.

Era isso que eu te diria meu querido avô.

Apesar da tosse, tudo está no seu lugar.

Ainda fumo e talvez o cigarro me mate como lhe matou um dia.

O resto das coisas que eu te diria não cabem em palavras meu avô.

E você, mais que eu, bem sabe.

Levei as crianças na escola.

Passei um café.

Tomei um rapé.

E escrevi esta oração no meu dicionário:

paternidade é o caminho que nos leva de volta à casa onde nascemos.


nuno g.

Toróró, 15 de agosto de 2022. 

terça-feira, 9 de agosto de 2022

O Senhor que habita a Pedra

O que tudo vê.

O que tudo sabe.

O que aqui estava quando não estávamos ainda.

O que conhece nosso rosto antes mesmo do nosso nascimento.

O que nos guia em nossa distração.

O que é rude e áspero por ser entendimento em estado bruto.

O que nos cuida quando perdidos.

O que nos reconduz ao nosso coração quando farrapos.

O que nos reconcilia com o escuro de dentro e com o excesso de luz lá de fora.

O que nos permite as canções da lua e a coragem do amor.

O que nos ampara quando caídos erramos pelos subterrâneos.

O que é água quando somos sede.

O que não diferencia sonho e realidade.

O que não nos permite desistir.

O que nos quebra os ossos quando hesitamos ante o necessário.

O que nos desperta quando o engano nos seduz.

O que é mais Velho do que o mais velho de nossos desejos.

O que é pensamento em perpétua sedimentação.

O que é larva no interior de nossa memória.

O que é futuro arcaico e passo firme em direção ao amanhã.

O que se desdobra sempre e outra vez.

O que com seu sopro faz emergir na árvore de Tempo a face do que somos.

O que é o que sempre desconhecemos de nós mesmos.

O que nos acompanha, nos cura e nos mata, com amor e ferocidade.

O que é, simultaneamente, terror e delicadeza.

O que habita a Pedra e a Palha.

O que nos cura.

O que nos mata.

O que nos escuta.

O que dança e não nos abandona.

O que sabe da formação geológica da terra e das almas.

O que se transmuta em pássaro quando quer voar.

Em serpente quando quer guiar.

E em esquecimento quando quer nos proteger do Nada e seus maus agouros.

O que é mais velho e mais terno

- pois mais caminhos já percorreu nessa gira.

O que aqui ainda estará quando nós já não mais estaremos.

O Senhor que habita a Pedra, a Palha e o destino das almas deste mundo.

O que tudo vê.

O que tudo sabe.

Siga guiando nossos passos.

Siga regendo nossa peregrinação.

Além.


nuno g.

toróró, 09/08/22.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Os pescadores da Faceira.

O Velho veio em sua forma de pássaro.

As lavras das mangabeiras pelas mesmas mãos que chamavam a Serpente.

Toda uma vida talvez não seja suficiente para regressar à casa onde se nasce.

A igrejinha de Nossa Senhora da Conceição perdida entre as voçorocas de um sonho.

O Velho veio em sua forma de pássaro.

Todas as passagens fechadas.

Os pescadores em volta do fogo cultuando o Velho.

A Senhora das Sementes cultuando a Senhora das Serpentes.

Toda uma vida talvez não seja suficiente.

Era o primeiro dia de agosto.

A dor no osso do joelho esquerdo do Ferreiro que fazia as joias.

Em sua casa de palha, numa capoeira no meio do verde da mata.

Sozinho e em silêncio.

Trabalhando o ferro como quem ora.

O Velho veio em sua forma de pássaro.

Junto com ele a Senhora das Sementes.

Junto com ele a Senhora das Serpentes.

Junto com ele o Ferreiro das Doces Águas.

Junto com ele o Menino da Encruzilhada.

Licença - e meus olhos entraram na casa de palha.

Licença - e meus olhos cruzaram o verde da mata.

Licença - e meus olhos tocaram o roxo do vestido e se encharcaram de lama.

O Velho partiu e deixou seu canto de pássaro.

O osso em trauma e uma névoa nos pensamentos.

Na pedra do rio uma criança.

Na praia os pescadores repetindo:

somos parentes e temos toda a vida para regressarmos à casa

- mas talvez uma vida não seja suficiente.


nuno g.

Toróró, 03 de agosto de 2022.  


sábado, 30 de julho de 2022

Ayê

Noêmia sonhou com os três porquinhos.

Assim me narrou Bernardo ao amanhecer.

Rezo à Adélia - como se minhas mãos fossem sândalo.

Penso em Ogum Beira-Mar.

Penso em Ogum-Iara.

Penso em Ogum Megê.

Penso em Ogum.

A mulher que dorme ao meu lado tem a razão no corpo.

Assim como eu tenho a escuridão e a rutilância.

Ela me ensina uma foto de Francine.

Remoçada. Jovial. Renascida.

Me alegra a alegria dos que cruzei ao caminho.

Penso no Sétimo e no seu reino do sertão.

Me revelando seu nome em sonho.

E soltando gargalhadas de marfim e calcário.

Rezo à Adélia - como se minhas mãos fossem parafina.

O horror está em todos os lados.

Penso na Pombagira entoando canções ciganas.

Só a poesia importa - o resto o sol da morte dissolve todos os dias.

A mulher que dorme ao meu lado tem a razão no corpo.

Assim como eu tenho uma infância mergulhada em mentiras e covardia.

Chove. Chove. Chove.

Chove e falta água nas torneiras e nas descargas.

Penso em Ogum e rezo à Adélia.

Quem sabe Ele também em sonho me revela Seu nome.

Todas as perversões entregues ao dicionário da noite.

A moça que vende café preto e mixto quente.

A moça simples que vende broas de milho.

Ser mulher é ser bruxa.

É trazer dentro a força que resiste à nadificação.

Rezo à Adélia - como se minhas mãos fossem espumas.

Ouço o Sétimo gargalhando no sertão.

Recordou o sonho em que me revelou Seu nome.

Recordo o hálito de cachaça, benção e proteção.

Soterrado vivo - meu coração dispara como um cavalo.

Meio-irmão dos raios, meio-irmão dos trovões.

Penso em Rimbaud - o poeta é mesmo um místico selvagem.

Avesso às amarras de qualquer doutrinação.

Entregue à semântica das tempestades.

Nas curvas que sobem a serra duas placas chamam a atenção.

Pastel do Alemão - em negro e vermelho.

Deus julgará a todos - em amarelo-ouro.

A cidade do Senhor de São Félix fica para trás.

Penso em Artaud entre os tarahumaras.

Buscando ressuscitar divindades em seu gélido coração.

A mulher que dorme ao meu lado tem a razão no corpo.

Sonha com Miguel - como eu sonhei algum dia.

Chove. Faz frio. E falta água nos canos.

Meu Ori sente a irresistível atração do Orum.

O Ayê me quer aqui.


nuno g.

Toróró. 27 de julho de 2022.




segunda-feira, 18 de julho de 2022

Orum

para Serena Assumpção,

I.


Nasci em cidade nenhuma.

Nasci em um rio.

Entre ferros d'água e espelhos de pedra.

Nasci às margens e às avessas.

Como uma pluma sem cão.

Uivando em dialeto acalanto.

Nasci como nascem as ilhas.

Num instante de distração do rio.

Mãos dadas ao escuro.

Olhar posto à imensidão.

Nasci mil vezes em uma só vida.

No rio onde nascem todos os rios.

No rio onde nascem todas as ilhas.

No rio onde as águas estão em permanente estado de distração.

Às avessas. Às margens.

Como uma pluma sem a ferocidade do cão.


II.


Não quero mais estar aqui.

Mas sigo.

Penso nos meus filhos no Orum.

Penso nos meus pais no Orum.

Penso no Orum.

Mas sigo.

Entre mares de azeite e encruzilhadas de farinha.

Com a precisão com que se movem as ruínas de um engenho.

E sigo.


III.


Beira-fogo, sina, artefato.

Na minha morte meu corpo coberto de sementes e nada.

A matéria cega devolvida à terra.

E o meu espírito à imensidão.

Orum.


nuno g.

Cachoeira, 17 de julho de 2022.

domingo, 17 de julho de 2022

os lírios do cotidiano e os sonhos que os ventos trazem.

havia tendas - como nas caravanas ciganas que acampavam sob as oiticicas.

e quando acordei o sonho ainda estava lá - escorrendo em sua voz ao telefone

e se amalgamando às fotos do Velho 

que esperaram quatro décadas para chegar aos meus olhos.

havia um bebê - como no dia em que me levaram na mata para conhecer Miguel.

e quando acordei as tendas ainda estavam lá e sua voz escorrendo como óleo

entre as teias e as flores e as crianças.

havia tantas camadas de febre e esquecimento sobre as pequenas coisas do amanhecer

que parecia ser impossível qualquer despertar.

havia muita água doce e uma gargalhada sincera aprisionada numa garrafa.

havia tendas e fogueiras e alguém aprendendo as primeiras letras.

sua voz escorrendo no telefone, uma fotografia antiga e um arrepio à pele.

somos o que esquecemos e sangramos para que o nada não soterre o amanhã.

somos o sangue que derramamos sobre a terra.

somos também a terra onde se erguem as tendas.

e sim, no seu sonho ela era a mais bela das mulheres daquele rio.

ela te disse como se chamava e te entregou mais uma vez a infância de Maria.

quando acordei a foto estava lá - e nela todo o passado que me foi negado.

havia lírios, sonhos e águas doces.

quando pronunciei teu nome tua voz me chegou ao telefone.

só no óleo certas esperanças alcançam sobreviver.


nuno g.

Toróró, 17 de julho de 22.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

entre Serrinha e Santa Bárbara.

à margem esquerda da estrada

atrás, muito atrás, do brejo onde as garças pousam

o arco-íris se apresentou

e conversamos sobre todas as cores

uma suave distração

e obrigamos um caminhão verde a frear na subida

um cafezinho e entramos na cidade antiga

notícias do fascismo, bolo de milho, saudades

animais domésticos e uma bela noite

no outro dia a chuva

notícias de uma despedida

e as luzes de alerta sanitário piscando no céu

à margem esquerda da estrada

atrás, muito atrás, do horizonte que nossos olhos alcançam

pulsa uma força imensa que não sabemos nomear


nuno g.

Toróró, 11 de julho de 22,

sexta-feira, 8 de julho de 2022

a cabeça de touro e a igreja de Nossa Senhora da Conceição

Vazaram todas as águas.

Da bexiga de Alice.

Do radiador do pirata.

Um gordo numa moto nos guiou à oficina Edson & irmãos.

Passamos pela igreja suspensa.

Recordei da cabeça de touro enterrada ali.

E do gavião morto no asfalto na entrada da serra do Pereiro.

No porta-malas as mudas de oiticica.

O queijo, a nata, a paçoca, a manteiga da terra, o doce de leite e o Sonho.

A lembrança do serrote do Peixe onde não fomos.

E de todas as outras coisas que nunca aconteceram.


nuno g.

Icó, 07 de julho de 22.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Regresso à linha do equador

o mar levou pro rio

um presente pra mamãe Oxum

e o rio levou pro mar

um presente pra Yemanjá

Maria Alice

a procissão de fogueiras da Vila Gonçalves à Ingá

ossos frágeis e delicados e um sem-número de objetos outros

enterrados sob este chão:

escapulário de ferro

o prato fundo repleto de sangue

e o sonho dos dois caixões

a Gare de Astapovo

os pedreiros ateando fogo na cozinha

a chuva no Peixe Gordo

e o dia amanhecendo alaranjado nos olhos do jaguar enfeitiçado

ossos frágeis e delicados e um sem-número de objetos outros

enterrados entre as estrelas desta noite insaciável

a paz aqui é só uma palavra

fervendo entre outras palavras

mergulhadas no dicionário das placas tectônicas

e na larva que escorre entre as frestas

do túmulo de azulejos azuis 

que não existe mais

a lagoa da Caiçara repleta de aguapés, serpentes e eguns

que insistem em remar suas canoas

entre os ossos frágeis e delicados deitados na alvorada 

entoando esse coro insuportável

que rompe a harmonia das esferas

e ecoa nos cânions do Aquém e do Além

despertando a divindade asmática

e desnorteando os ponteiros da lazarenta memória

dos castiçais esfumaçados

dos aprazíveis licores

dos habitantes da cidade sem-nome

do arco-íris órfão ressuscitado

demasiadas coisas enterradas sob este chão

entre a escuridão imensa destas estrelas

o sangue do esquecimento atravessando as vértebras

de cada palavra que escrevo no ventre obtuso desta chuva

hálito tapuia & o rugido do sino da Catedral

carregados em liteira de marfim e assombramento

pelo vento Aracati que sopra desde as fronteiras do infinito

arrastando os raios da Senhora ao som dos címbalos que anunciam

a partida prematura dos deuses de ontem

e o inexorável atraso da chegança dos deuses do amanhã

o sol assenta sobre seu trono

sem que se saiba quem terá pés capazes de tocar o solo dos salões iluminados

onde as aranhas tecem e destecem os destinos

e as linhas-de-força encruzilhadas no moto perpétuo deste incansável rio

nesta maldita insônia, neste sagrado oráculo

a procissão de fogueiras da Vila Gonçalves à Ingá

no sinal de acesso à Barão do Rio Branco

um velho com uma guia de contas negras e azuis cruzando o tórax

exibe um papelão onde se lê em vermelho a palavra FOME

à esquerda um desses carros modelos naves espaciais

com bandeira pátria e adesivos com o nome do inominável

a palha, o mel e os olhos do Senhor das Estradas

recordando a guerra e os seus hinos

recordando o sonho do velho conde 

repousando em Iásnaia Poliana

entre ossos frágeis e delicados

e um sem-número de objetos outros

esparramados sobre as cinzas do quilômetro oitenta

a palha, o mel e os olhos ávidos e sinceros do Senhor da Estrada

se movendo no interior da cidadela inexpugnável da insônia

e nos caleidoscópicos labirintos do oráculo

a procissão de fogueiras da Vila Gonçalves à Ingá

o hino das águas e dos erês no açude do Bixopá

os unicórnios e jabutis dançando entre as corredeiras onde vivem os pitus da ilhota

canjica quente, pé de moleque, bolo de macaxeira, paçoca e vatapá de galinha

o hino das águas e dos erês apascentando as doces fúrias do Aquém e do Além

e a ternura impronunciável dos habitantes da cidade sem nome

a palha, o mel e os olhos ilegíveis do Senhor da Estrada

orando através de mim quando meus olhos leram outra vez a inscrição no jardim:

rua do meu pai - café negro, longo e amargo

se derramando sobre o azul-azul do céu do Iguatu

e entre as árvores do esquecimento 

onde repousam ossos frágeis e delicados

escapulários metálicos, pratos repletos de sangue

e os dois caixões do sonho

a clepsidra de vidro gira mais uma vez no quilômetro oitenta

e o daimon arcaico desperta de seu torpor

gravando entre as cicatrizes as recordações de antigas atrocidades

rua do meu pai - o jardim em tudo o mesmo

Iggy Pop vagando na domingueira eternidade de sua felina existência

o mel, a água doce, o sorriso

nos protegendo da ferocidade de Tempo

nos guardando dos abandonos que abandonamos antes da alvorada

entre ossos frágeis e delicados

entre um sem-número de objetos outros

enterrados entre as estrelas reluzentes

que seguem faiscando e vibrando

nos obscuros subterrâneos dessa terra onde as promessas nunca são cumpridas.


nuno g.

russas / fortaleza, 21 a 27 de junho de 2022.


quarta-feira, 22 de junho de 2022

O caminho das almas ou o teleférico fantasmagórico

O óleo da caixa de câmbio vazou em Teofilândia

Atravessamos o deserto mais uma vez

No Ibó as sertanejas mãos de Jean voltaram a encher de óleo a caixa

As águas do São Francisco estavam mais calmadas que de costume

E todos falavam sobre a colheita das cebolas

As engrenagens da quinta marcha colaram definitivamente

As mãos sertanejas de Jean as arrancaram como quem arranca as vísceras de um pirata

Uma coruja de olhos esbugalhados seguiu caminho conosco

Alice falou do Bené e da Inaê

Mastigamos beterraba, couve e carne assada

O resto da viagem foi desapressada

E quando o sol se pôs já estávamos no meio da floresta do Araripe

Tomamos cumaru, fizemos uma fogueira

Brincamos de macaca e cozinhamos o milho que Luís plantou

Falamos sobre sonhos e sobre o Senhor da Vida e da Morte

Deayunamos frutas com aveia e café negro

Trezentos anos ou a eternidade

E nossos passos entrando no vagão do metrô

E nossos passos cruzando o coração da cidade sagrada

Os olhos do padre Cícero pousados sobre nós

Como as asas do gavião sobre o açude

Ou o clarão da lua sobre a noite imensa

Tomamos mais cumaru e conversamos sobre o pesadelo fascista que nos assola

Chico catou entre as ferragens as engrenagens da quinta

Recordei do velho Aranha e Alice falou sobre a Débora

Assistimos Tico & Teco, comemos baião-de-dois e pizza

O Velho nos abençoou com a palha

E pegamos outra vez a estrada rumo ao fantasmagórico teleférico do Caldas...


nuno g.

Crato, 18 de junho de 2022.

sábado, 11 de junho de 2022

oráculo.

Havia águas e serpentes

E ainda assim havia fogo e veneno

Foi antes do estopim da guerra

Foi depois do nascimento das mãos que erguiam casas com aéreos materiais

Havia fogo, águas, serpentes, venenos e metais

Com os quais se forjaram os três caminhos

E todas as sentenças da justiça

E ainda assim no sonho veio o que tinha de vir

E se fez carne e memória e habitou entre os cardeiros e a piçarra

E se fez memória do vermelho das flores dos cardeiros

E se fez memória do vermelho da poeira da piçarra

E se fez serpentes e águas

Fogo e veneno

Antes do cessar da guerra

Antes do amanhecer do escuro

Antes do sonho ser sonhado como tinha que ser sonhado

Antes das mãos modelarem os materiais aéreos

E erguerem a casa sertaneja

E o mítico coração da barca que navegar no mar

Havia uma guerra e mais coragem que argila

Havia um sonho e mais água que veneno

Havia um fogo e mais metal que entorpecimento

Havia o escuro e seus refúgios infinitos

Havia um sol, uma lua e uma estrela:

Três caminhos e todo mistério para além de qualquer esquecimento.


nuno g.

Toróro, 11 de junho de 2022.


terça-feira, 7 de junho de 2022

entre feiticeiros e despertencimentos.

chove sobre a colina sagrada

o frio penetra minha omoplata

sem pedir licença

acende a bursite

o chão de lama, escorregadio

e a cidade com seus paralelepípedos centenários

e sua ponte de ferro & ferrugem & tempo

os gatos invadem a casa

como os degraus da escadaria amarela

invadem os sonhos

chove sobre a colina sagrada

ao longe, a pedra da baleia e um saveiro

venta e no vento vêm vozes e mais vozes

de aquém, de além, de cima, de baixo da direita e da

esquerda da esquerda da

chuva que cai sobre a colina sagrada

da chuva que molha os centenários paralelepípedos

da chuva que afoga todas as coisas de ontem de anteontem

como a areia da sepultura da serpente

apenas os olhos expostos ao sol

o frio, a guerra, o parapeito de madeira e estrela

tudo se move como se movem as pedras

a cidade, o vento e as frutas pintadas a óleo

os gatos, o som da casa de farinha, tilintar de copos e nada

aos palmos medindo a distância de todas as órbitas

e cruzando o mundo como um trem mineiro fora dos trilhos

abarrotado de bugigangas


nuno g.

Toróró, 07 de junho de 22.


quinta-feira, 2 de junho de 2022

as águas do Jaguaribe

 para Dellany Oliveira,


todos os rios, o rio

e em seu leito de várzeas todos os sonhos

correndo em direção ao outro lado

como se a noite fosse mesmo um pássaro

e as estrelas seus ninhos

todos os rios, o rio

e em seu leito canoas, jangadas, saveiros

correndo em direção ao outro lado

como se os pássaros fossem mesmo noturnos

e a única forma de aplacar a sede

seguisse sendo beber o fogo

todos os rios, o rio

e suas nuvens correndo em direção ao outro lado

como se o tempo fosse apenas um calafrio passageiro

ou o osso de um mártir encontrado entre os lajedos

todos os rios, o rio

correndo entre o esquecimento e a loucura

e atirando flores nos despenhadeiros da chapada

todos os sonhos, o sonho

correndo entre o lodo e as pedras

como se a única forma de saciar a fome fosse jejuar ao sereno

amanhece na pedreira - o galo canta

Aracati chega, apascenta, acarinha

e canta devagarzinho antigas canções de ninar

sobre túmulos de azulejos azuis e vespas dançarinas

sobre árvores de raízes pardas e onças tão imensas quanto o coração da lua

todas as onças, a onça

Sussuarana chega, espreita e se vai

boqueirão de vertigens, caleidoscópio de estrelas

a força da tempestade, o som dos sinos,

o sangue das sete aldeias correndo pro mar

amanhece - devagarzinho

todas as noites, a noite

se enrolando como uma serpente colorida

entre as névoas que não se desfazem

e as promessas que não se cumprem

todas as águas nas águas deste rio

todas as pedras nas várzeas deste rio

todos os sonhos nos sonhos deste rio

um deus que dança e usa espada chega e assenta

desalvoroça, destorce, semeia ramas de tempestades

sorri e ascende

sete aldeias sangrando, uma cabeça de touro enterrada na vila do Icó

e o campanário da catedral atingido por um raio

o rio corre e com ele correm todos os rios

o rio corre e com ele correm todas as embarcações

o rio corre e com ele corre o meu coração...


nuno g.

Toróró, 02 de junho de 22.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

a fogueira do Senhor da Justiça

Não pronunciarei seu nome, não sou digno.

Mas farei do seu fogo minha morada.

E guardarei junto aos lírios brancos que recebi.

A memória de como a serpente me salvou das lágrimas.

Não pronunciarei seu nome, não sou digno.

Mas guardarei a história de Jó e seus ensinamentos. 

Sobre a vida, os escombros, os retalhos.

Junto ao beijo que nesse seio amanheceu.

Não guardarei dos golpes e punhaladas senão a memória da guerra.

E aquele fatídico hino que falava a língua das labaredas e das chamas.

Não pronunciarei seu nome, não sou digno.

Serei o último a bailar no fogo.

Serei o último a caminhar sobre as brasas.

Não pronunciarei seu nome, não sou digno.

Mas o guardarei comigo contra todo esquecimento.

Te entrego minhas cicatrizes e meu corpo destroçado.

Te entrego a alegria que me trouxe a serpente em seu barco.

Já tem milho verde na feira.

Já tem amendoim na feira.

Já tem lenha separada no terreiro.

Para acender teu fogo, minha morada.

Te entrego os lírios brancos e todas as minhas fraquezas.

Te entrego meu afogamento nas lágrimas do pai injustiçado.

Não pronunciarei teu nome, não sou digno.

Mas renascerei das cinzas e darei vivas à serpente.

Guardarei no coração do mar este fogo, minha morada.

E não mais permitirei que outra voz que não a do vento me alimente.

Guardarei teu nome não pronunciado.

Junto ao segundo beijo que nesse seio amanheceu.

Farei do teu fogo minha morada.

O habitarei como algum dia habitei as lágrimas.

E o alimentarei com os lírios brancos ainda úmidos de doces águas.

Guardarei a serpente e os cânticos em sua memória.

Guardarei suas cores e o ritmo em que navega seu barco.

Guardarei as nuvens onde ela fez morada.

Neste terceiro beijo que amanhece nesse seio.

Acende o fogo que ilumina o chão deste terreiro.

A sombra do semblante distorcido. 

E as plumas do gavião cicatrizado.

Guardarei a morte e sua memória sagrada.

Fonte da vida, foice de todas as iniquidades.

Não pronunciarei seu nome, não sou digno.

Mas farei do teu fogo minha sagrada morada.

O alimentarei com lírios brancos e doces águas.

Servirei com as mãos impuras o mel que recolhi nas encruzilhadas.

Guardarei seu nome no silêncio desta árvore.

Não sou digno. Só teu fogo saberá do que passou.

No silêncio desta árvore onde habita o Impronunciável.

Estarei sempre em guarda. Contra todo esquecimento que nos ameaça.

Serei eu mesmo a memória de todas as lágrimas.

Serei este fogo. Estes beijos amanhecidos nesse seio.

Serei eu mesmo a fogueira que será minha última morada.

Serei teu nome e nele arderá toda a ferocidade. 

E todos os vestígios de um jaguar em azul reencantado.


nuno g.

Toróró, 27 de maio de 22.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Ápeiron


Também tentei tocar com as mãos o indeterminável

E molhar com suor os círculos concêntricos das origens

E foi com os olhos, mais precisamente com os cílios

Que acariciei os círculos concêntricos dos fins

Sorri, quando seus lábios me falaram sobre desistências

& outras coisas impossíveis

Também tentei farejar a luz do esquecimento

& dizer o indizível

Abri os jornais e vi os bombardeiros russos e chineses sobrevoando os céus do oriente

Abri os jornais e vi os diplomatas chineses afirmando:

Tratamos lobos com espingardas

Fiquei imaginando como seria isso escrito em hieróglifo

Fiquei imaginando como seria isso escrito em ideograma

Fiquei imaginando como seria o mundo se não temêssemos a morte

Ouvi o som do escuro e separei a maisena, a vaselina, o suco de limão

Para preparar a massa de biscuit e modelar outra vez o infinito

Abri outra vez os jornais e vi os militares detalhando seus planos para os próximos anos

Orei a Anaximandro e em silêncio bebi o chá que me serviram as montanhas

Talvez essas nuvens guardem as formas da escrita 

Capazes de representar os círculos concêntricos do indeterminável

Orei a Anaximandro, repousei a cabeça na pedra delicada

E sonhei com a linguagem do infinito


nuno g.

25 de maio de 22.


domingo, 22 de maio de 2022

a menina que sonhava com terreiros

 para Gabriela Gonçalves & Larissa Gonçalves,


Eles somos nós

De uma maneira que a linguagem não alcança

Nenhuma linguagem

Nem a do corpo

Nem a da fala

Menos ainda a do pensamento

Açucena é um nome bonito

Cheira bem, soa bem, reverbera

Nós somos eles

De uma maneira que não alcançamos entender

Nem com nenhuma linguagem

Nem quando nos esvaziamos

Mas nunca estivemos realmente vazios

Estamos sempre entre uma ficção e outra

Mas quando sonhamos

Já não somos os mesmos

Já somos eles

E eles são o que somos

O vento chega, refresca e parte

O vento sempre volta ao mesmo lugar onde nasceu


nuno g.

Mata de São João, maio, 2022.

quinta-feira, 19 de maio de 2022

A sepultura da cobra e o salto da rã

 para Marialice,


Uma concha cor de esmeralda, uma pata de siri, uma estrela do mar

Crustáceos voadores, peixes com patas à luz da lama

Suave água amarelada - espelho da terra

As mãos de Ignez, as mãos de Alice

O sorriso de um peixe com patas e sombrero

Deixando cócegas para trás

Os olhos da cobra desenterrados

Para que ela veja o salto da rã

E o azul do infinito se derramando sobre o céu amarelo

Sob o olhar da Senhora de Roxo

E do dono do destino de todas as almas

Caminho não se esquece, sonho se semeia

Hoje nasceu uma nova árvore na antiga praia

Sob as bênçãos do pintor fugitivo de asas alaranjadas

E as graças do caranguejo perfumado de patas lilases

Caminho não se esquece, sonho floresce

E se colhe - como lírios selvagens entre os bambuzais

E os magníficos corais do Além.


A lua cheia iluminou a aldeia

E as pedras da sepultura da serpente

A lua cheia iluminou o mar que sempre esteve aqui

Acendeu os búzios de nossos contra-eguns

E o silêncio prateado nas folhas da árvore sem-nome

A lua cheia iluminou a aldeia

E os magníficos corais do Além.


nuno g.

Montecristo, 15 de maio de 2022. 

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Teologia do Vento.

 O fogo é a lucidez, a parafina é o samsara.

Lama Padma Samten


Vinte e três caminhos movediços.

Uma serpente morta na estrada.

O sono, a lei, a melancolia.

Outra vez e sempre a rã saltitando na lâmina d’água.

Vinte e três movimentos em direção à Quietude.

Hacia o que se pode ver desde o cume das sete montanhas.

Ou ao que se pode não pensar quando silencia o monge zen.

Vinte e três espelhos ante o transcurso das horas.

Uma serpente morta na estrada.

O sono, a lei, a melancolia.

Outra vez e sempre a rã saltitando na lâmina d’água. 

Sete montanhas, um monge zen e vinte e três reverências à Quietude.

Ataraxia, a sombra nos guarda.

Nos bendiz, nos reza.

A sombra é desdobrável e assemelha-se a uma onça que ignora o amanhã.


nuno g.

Toróró, 12 de maio de 22.


segunda-feira, 9 de maio de 2022

O castelo da Rainha.


Tudo que não invento é falso.

Manoel de Barros

Foi para lá que ela me disse que ia antes de partir.

Quando chorou não o fez pela guerra, mas pelo pressentimento da vitória.

Havia tanto mel entre os vinte e três pássaros que a noite decidiu tardar além do previsto.

Cobra coral, o silêncio dos meus joelhos sobre o sangue de vosso sagrado chão.

Xangô reinou sobre todas as coisas.

Curumim soprou com fé desde o bambuzal:

Não se celebra antes, sonho bom se desfaz.

Quando chorou não o fez pela guerra, mas pela intuição do sol.

Havia tanto mel entre as serpentes que choveu.

E quando Curumim soprou a flauta os sons de Uakti despertaram.

Xangô reinou sobre todas as coisas.

Havia mel, demasiado mel, entre as pipocas.

Foi para lá que ela disse que íamos antes de partirmos.

Quando chorei não o fiz pela guerra, mas pelos cânticos que anunciaram seus propósitos.

Xangô reinou sobre todas as coisas.

E as bênçãos da cobra coral caíram sobre nós como as águas do dilúvio.

Xangô reinou sobre todas as coisas.

Curumim brincou com as estrelas.

Curumim brincou com a lua.

Curumim se lambuzou de mel e se foi.

Quando choramos não foi pela guerra, mas pela força do vento que soprava da flauta.

Não se celebra antes, sonho bom se desfaz.

E Xangô, finalmente, reinou soberano sobre todas as coisas.



nuno g.

Toróró. 09 de maio de 2022.

sábado, 7 de maio de 2022

Romantismo.

Vivemos uma ficção.

Estamos imersos num pesadelo.

O apocalipse deixou de ser um gênero literário.

Convertido em horizonte histórico avassalador.

O fascismo assumiu o comando do relógio do tempo.

O que nós buscamos se afasta de nós como o azeite da água.

A relação entre terror e realidade foi equacionada pela perversão.

Não escutamos. Não entendemos. Não vemos.

E os gritos de nossos sonhos já não nos flecham.

Quando as mãos sem cor apertaram o gatilho não puderam esquecer meu choro.

Olhei dentro do armário anos a fio o semblante dela.

E suas pernas torneadas e seu corpo esbagaçado na calçada.

Ainda assim permanecia bela e inviolável, soprou o coveiro. 

Voltamos à ficção.

Mergulhamos uma vez mais no pesadelo.

Os submarinos, as armas nucleares e a falência psíquica.

Quando as ruas foram cobertas com folhas de maniva.

Quando choveu meteoros uma última vez.

Quando a perversão tornou-se o equalizador da canção do terror e da perversão.

Paramos de sonhar. Paramos de entender. Paramos.

E ainda sem escutar ou sem ver a fantasia persecutória prosseguia.

Os disparos, o salto e a teia de mentiras.

O que buscávamos se afastando como o azeite da água.

E os mortos em silêncio trabalhando em prol da incertidumbre.

Nas cidades invisíveis da floresta negra o sol atômico e as películas de culto.

As pernas torneadas entre as peças de antiquário.

O balé de delfines no deserto do Atacama.

Os gritos de nossas flechas já não sonham.

Só a montanha impávida e colossal saberá nos mover daqui.

O tempo desintegrará todos os relógios.

E os subterrâneos da terra voltarão a sorrir.

Só os que morreram muitas vezes saberão nos guiar para fora do pesadelo.

Só os que conhecem a terra dos mortos saberão restituir ossos ao corpo da realidade.

Só os que falam a língua dos pássaros e das nuvens entoarão canções de amor e utopia.

O balé de flores sob o asfalto derrotado.

E os afetos que nos atravessam como quando entendemos 

que também os apocalipses guardam em segredo seus mais indecifráveis propósitos.


nuno g.

06 de maio de 22.


sexta-feira, 6 de maio de 2022

Sonhos



Para Akira Kurosawa



Alta noite, o elefante subiu o rio na canoa.

Passarinho veio bem perto e olhou muito dentro.

Tão dentro que corpo se fez rio.

O Velho veio todo de branco.

Como os grãos de milho que seu braço arremessara em direção à pedra.

Um laço de cipó amarrou os pesadelos todos.

O Velho veio e me abraçou demoradamente.

Amanhecendo, o sol ainda despontando.

Uma lágrima escorrendo com medo dos pesadelos amarrados no laço.

Uma lágrima escorrendo com a alegria retida do abraço.

O Velho se foi. Todas as palavras ditas esquecidas.

Apenas a lembrança do abraço.

O medo dos pesadelos amarrados no laço.

E uma pequena alegria saltitando como uma rã sobre a lâmina d'água.



Nuno g.

Toróró, 05 de maio de 2022.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

mistério das águas e do tempo

tudo é pressentimento e intuição

os passos dos mortos que sobem e descem as escadas

o arco-íris que não se apresenta depois da tempestade

e a luta incessante e feroz entre a carne e a carne

tudo é pressentimento e intuição

os olhos da fera que habita a casamata

e o silêncio, rude e vago, que percorre os entrevãos da sombra

tudo é pressentimento e intuição

a memória, o caminho, a febre

não há outro selo que não seja o da infecção

não há outra via que não seja a da ascensão

por todos os lados o horizonte se estreita

ricos vestidos de ricos se comportam como ricos

enquanto os sábios regressam às selvas e com as mãos em formas de conchas

bebem uma vez mais a límpida água que corre nos rios

o tempo nos atravessa como uma flecha

miríade de flechas e cavalos castanhos

tudo é pressentimento e intuição

nada é em vão - o morto que aqui habita

procura uma boca que lhe abrace a voz

tudo é pressentimento e intuição

a chuva afaga a terra

os ricos se olham como ricos e se pensam ricos

nada lhes basta, nada lhes conforta, nada lhes pertence

os sábios regressam - sempre recordando as dificuldades inerentes a todo regresso

a luta incessante entre o espírito e o espírito

e os paralelepípedos da cidade mágica permanecem inalteráveis

a culpa, o pecado, a cisma

a chuva outra vez e todas suas indistintas promessas

tudo é pressentimento e intuição

nada é em vão - nem o medo, nem a tempestade

o solilóquio dos sábios é composto de música, delicadeza e abruptas revelações

tudo é pressentimento e intuição

a chuva afaga a terra, os olhos do cintilante se fecham,

tudo é turvo, tudo é ascensão:

tudo é pressentimento, tudo é intuição.


nuno g.

Toróró, 28 de abril de 22.


terça-feira, 26 de abril de 2022

asa cálida.

Não creio em coincidências, ou melhor, as desacredito desde antes de acontecerem.

Hoje encontrei uma asa seca no Livro de Adélia.

Os tijolos de minha humilde habitação vão resistindo bem à umidade do primeiro inverno.

Assim como meu Sonho vem resistindo às cento e oitenta mutações de estações.

Meu ombro ainda dói, é certo.

E entre espirros e animais de estimação vamos inaugurando cores.

A mulher que dorme ao meu lado traz a razão no corpo.

E ainda quando bate o vento desconheço-me.

Não desacredito de crença nenhuma.

Quatrocentas e quarenta e sete vezes neguei a mim mesmo.

Nem por isso temo algarismos graúdos.

Um peixe roeu o travesseiro.

A minha dor no ombro é nada ante a ferida do ombro de Cristo.

Sou pálido, antigo e azul.

Ao mesmo tempo.

Como aqueles mapas dos livros de história.

Desconfio severamente que a morte não existe. É um embuste, uma artimanha, um artifício.

O vento proclama e sussurra.

Simultaneamente.

Alguém afagou a parede do convento.

E ela amanheceu ardendo:

Laroyê - pixado em vermelho.

Como o sangue que infla a coroa do pênis.

Levei as crianças à escola.

E tornei a pensar na Senhora de Roxo parindo todas as coisas.

A erva acabou, a chuva passou e os cães estão infectados com carrapatos.

Estranha alegria descortinando a semana.

Quebramos um prato no alvoroço do despertar.

Água, gengibre, mel e alho.

Balneária e incorruptível solidão.

Os astros bailam, meu coração também.

Este cemitério onde semeio flores de São Miguel.

Uivo e existo em sua memória.

E o Cavaleiro da Lua se apresenta com seu séquito de Senhores.

A mulher ao meu lado traz a razão entranhada no corpo.

E quando goza vira terra e calmaria.

Suportar o caminho, refazer os atalhos.

Regar o silêncio dos mortos com café amargo.

Instaurar silêncios sobre os ruídos da relva.

Não creio em coincidências.

Desacredito da morte.

Entre a pixação do convento e a asa seca entre os versos de Adélia

tudo é Sonho, Pressentimento e Ruminação.

A mulher acorda.

Me beija a boca e me diz:

os mortos conhecem todas as línguas...


nuno g.

Toróró, 25 de abril de 2022.



sexta-feira, 22 de abril de 2022

hoje,

um casal de maritacas descansou no galho da mangueira

anteontem uma cobra passou também

Beth Carvalho deu aula

a bursite doeu.

e doeu. e doeu. e doeu.

você ardeu e me ardeu junto.

como se tudo agora fosse parte daquele amanhã

ou como se tudo que está acontecendo sempre estivesse acontecendo

você moveu coisas estacionadas desde há muito

um casal de maritacas descansou no galho da mangueira

a bursite doeu e doeu e doeu

a cobra se foi sem dizer quando volta

Beth Carvalho deu aula

os cães latiram

e nós ardemos.


nuno g.

toróró, 22 de abril de 22.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

A dieta do Aroettowaraare

Moela de galinha e fígado por três dias.

Treze de macaxeira à vontade, cozida sem sal.

Vinte e quatro horas de pura água.

Farinha, carne de caça, tabaco e pariká.

Café à exaustão e sol.

Lama e coração de galinha.

Fogo fátuo.

Treze dias de macaxeira à vontade.

Vinte e quatro horas de pura água.

Carne de galo de guerra e prece.

Três dias de jejum e silêncio.

Banho, coragem e despedida.

Outra vez os cílios da morte e as feras do corpo.

Outra vez a imensidão da cegueira.

Até que a flecha cruze o roxo.

E todo o passado seja destituído de forma, conteúdo, sentido e função.


nuno g.

Toróró, 12 de abril de 22.


terça-feira, 12 de abril de 2022

Psicologia de uma paisagem

Primeiro veio o infiltrado.

Veio de longe, muito longe.

E apagou o rastro das distâncias que percorrera.

Bateu a cabeça e morreu.

Seu corpo se dissolveu em pura música.

Em seguida veio o bebê.

Órfão.

Bateu a cabeça e morreu.

Depois vieram as águas.

Levaram os peixes e as redes dos pescadores.

Voltamos à aldeia.

Às mesmíssimas ilhas de pedras onde nasceram

o mausoléu, as sombras e a encruzilhada.

Fizemos uma grande fogueira no centro do mundo.

Banhamos em sal e ervas os colares e as coroas.

Voltamos à aldeia.

Ao mesmíssimo montículo de areia e solidão onde nasceram

as fúrias, a angústia e as aflições.

Choveu sete dias sobre o reino.

E só então entendemos o que a serpente nos dissera

sobre o nunca, o vazio e o nada.


nuno g.

Stella Maris, 10 de abril.


quinta-feira, 7 de abril de 2022

Hermenegildo

Hermenegildo cruzou outra vez o meu sonho.

Seu cavalo ainda era o mesmo.

Apesar da lança do tempo que agora trazia ao peito.

E ao despertar quase nada recordei.

Somente a conversa entre a minha tristeza e a tristeza de um amigo.

Numa praça onde quando colônia se vendiam escravos.

Um chafariz jorrando águas e machados.

E a memória de um céu amarelado por ondas vulcânicas.

As mensagens da morte nos chegando.

E Hermenegildo seguindo seu caminho.

Com seu cavalo e suas preces manuscritas.

Ainda era em tudo o mesmo.

Apesar da lança do tempo que agora lhe atravessava o peito.

Como um arabesco servindo de ponte.

Ou uma lua nova mergulhando entre o cruzeiro e as três marias.

Havia certa palidez em meus gestos.

E o sentido das coisas parecia para sempre perdido.

Entre os sedimentos porosos e as ruínas ósseas.

Uma leve brisa reacendeu meu cigarro.

E os sapos saltaram sobre as folhas de cartolina.

Não existe atalho. A ideia de salvação é um ato falho.

O laço, o chicote e as corriqueiras hesitações.

Apesar de tudo, Hermenegildo e seu cavalo seguiam sua jornada.


nuno g.

Toróró, 07 de abril de 2022.

terça-feira, 5 de abril de 2022

lírios brancos

chove sobre os séculos que me habitam

e sobre essa infinidade de objetos desconhecidos que me povoam

o entardecer nunca foi tão amarelo quanto ontem

e o laço nunca foi tão preciso e amoroso

chove sobre as dúvidas e aflições que me respiram

e sobre essa infinidade de estranhos afetos entre as ferrugens

o entardecer nunca foi tão roxo e sincero quanto ontem

e o chicote vibrou com a perfeição que exige todo mistério

todo poema é um tratado teológico

e a metafísica é um biscoito doce que se serve com café

fizemos spaguetti com ternura, josefinas, azeitonas e tomates

comemos no jardim com as mãos

olhando esperanças e louva-deuses

enquanto o laço e o chicote traçavam círculos concêntricos

sobre nossas cabeças

sobre nossos desalinhados cabelos

sobre nossas velhas roupas coloridas

Ele veio de longe e nos tocou com suas plumas de arara

percorremos uma vez mais nossas árvores genealógicas

guiados por seu sonho até a fronteira

onde seu avô buscava armas e oxigênio para a sobrevivência

a metafísica é um café amargo que se serve com biscoitos

a onça parda, a pintada e o maracajá

todos rezando sob as lágrimas de Oxalá

os tempos em que vestíamos negro desaparecendo no firmamento

e o gavião pairando sobre nossas delicadezas eróticas

pego um fósforo, acendo o cigarro

brinco de medir as distâncias entre o beijo e o escarro

ao contrário de Suassuna

que escrevia para espantar a morte

escrevemos para não esquecê-la

para sempre recordar que um dia ela chega

raios e tempestades sobre o que somos

e o que somos é sempre o último que nos chega

aos pés da Árvore nossos desejos mais sublimes

e todas aquelas imagens que brotam do pós-apocalipse

nenhum mal dura mil anos

todo poema é um tratado sobre nudez e eternidade

quem me sopra estes delírios com coisas reais?

quem acende entre minhas frestas estas súbitas intuições?

imprecisas inquietações que me flecham

e outras aparições inesperadas

tua avó cozinhando quirerinha

tua avó lapidando diamantes

tua avó fritando bolinhos caipiras

e o vento soprando do infinito

enquanto minhas mãos misturam o suco de limão ao açúcar mascavo

sonhando com os lírios brancos que colheram nos bambuzais...


nuno g.

Toróró, 05 de abril de 2022.