segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Navios do deserto

espalhei os bombons sobre sua cova

e ele sorriu: discreto arco-íris que se

desfez antes do pôr-do-sol

e da BR-101 vimos as águas ligeiras

despencando das alturas e erguendo

uma nuvem carregada de navios que

como os navios do deserto

flutuavam e flutuavam entre gotas

de águas e gotas

de areias entre a

solidão e o absurdo

entre cavalos, pedras e

desbotadas primaveras

 

as formigas, as flores, o ventre

do campo santo de espumas e mel

o discreto arco-íris-sorriso

dissolvendo em timidez antes

do beijo sabendo a sexo e oração

a chama pegou e o carro abandonou a estrada de terra

já no asfalto

uma lágrima tocou o tímpano

esquerdo, antes do pôr-do-sol

entre notícias de desabrigados

e promessas de ano-novo

espalhadas como bombons em covas de anjos

ou como navios de guerra

estrategicamente semeados

na oceânica aridez do deserto


nuno g.

Toróró, 27/12/21.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A terceira vela

Em tua cama de areia e pedra descansa, menino

E ainda assim, soterrado antes, hás de sonhar

Entre a torrente incessante de sonhos que é tua única realidade

Sempre retornará a imagem daquele efêmero instante

Em que nos meus braços teus olhos fechados

E teus cabelos encaracolados

Em tua cama de pedra e areia descansa, menino

Para nós, os nascidos, tudo se resume a efêmeros instantes

Ao contrário, para ti, natimorto

Nada é efêmero e só existe a estrada da eternidade

Descansa menino, descansa

Sob o fio de luz desta vela que te acendo,

Descansa,

E com tuas mãos morenas vais abrindo o caminho

Por onde passam as serpentes emplumadas

E a legião dos cegos missionários da floresta

Em tua cama azul e amarela, descansa meu menino

Descansa como descansarias na rede que te teceu a aranha rendeira

Descansa e escuta minha prece, menino

Entre a torrente incessante de teus sonhos

Sentirás o perfume destes incensos que te acendo

Ian, anjo entre anjos,

Luz, firmeza e a consciência profunda dos que se recusam a abandonar a eternidade.

 

Nuno g.

Toróró, 14 de dezembro de 2021.

sábado, 11 de dezembro de 2021

***

 QUEM ESTÁ CERTO ESTÁ ERRADO E QUEM ESTÁ ERRADO ESTÁ CERTO.


Padrinho Manoel Corrente.

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

gira de Mateus

                     para Claudio Reis,


todas as Marias são palestinas



Eles chegaram e bailaram a noite inteira

entre as nuvens e o cume da chapada

entre as árvores de Tempo

e as águas do amanhecer



todos os soldadinhos do Araripe são palestinos



Eles bailaram a noite inteira

entre meus sonhos trôpegos e o Sonho límpido da terra

entre o tempo das árvores

e as águas do entardecer



todos os espíritos são palestinos

inclusive os que nos estendem a mão

quando os rumores nos ameaçam



Eles sabiam que ali estavam guardados

e sob o escudo Azul ergueram a ciranda-matriz

colunas de salamandras e batalhões de encantados

ao som de pífanos e zabumbas

Eles também se sabiam palestinos

e desconheciam qualquer hesitação.



Eles dançaram a noite toda

entre as estrelas e as estrelas da madrugada

Eles eram muitos e tinham nomes sagrados:

Cachoeira, Mosquito, Império.

Margaridas de couro cravejadas no peito

e os três caminhos selados nas palmas do espelho.

Eles eram palestinos e herdeiros

e nunca nos deixaram esquecer

que até o mais agônico cortejo

é regido por uma austera e faiscante alegria.



Eles bailaram a noite toda

e como os Magos Reis da antiguidade

foram guiados por Vênus e Andrômeda

até o terreiro sagrado de Mestre Aldenir

xilogravado na lira esmerada de Walderêdo Gonçalves.



guiados pela lua

abriram os três caminhos:

fertilidade, delicadeza, alegria:

e a memória das coisas que nunca se devem esquecer.



Toróró, 07 de dezembro de 2021.

nuno g.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Morte (hora do delírio), por Junqueira Freire

Pensamento gentil de paz eterna

Amiga morte, vem. Tu és o termo

De dois fantasmas que a existência formam,

— Dessa alma vã e desse corpo enfermo.


Pensamento gentil de paz eterna,

Amiga morte, vem. Tu és o nada,

Tu és a ausência das moções da vida,

do prazer que nos custa a dor passada.


Pensamento gentil de paz eterna

Amiga morte, vem. Tu és apenas

A visão mais real das que nos cercam,

Que nos extingues as visões terrenas.


Nunca temi tua destra,

Não vou o vulgo profano;

Nunca pensei que teu braço

Brande um punhal sobre-humano.


Nunca julguei-te em meus sonhos

Um esqueleto mirrado;

Nunca dei-te, pra voares,

Terrível ginete alado.


Nunca te dei uma foice

Dura, fina e recurvada;

Nunca chamei-te inimiga,

Ímpia, cruel, ou culpada.


Amei-te sempre: — pertencer-te quero

Para sempre também, amiga morte.

Quero o chão, quero a terra, - esse elemento

Que não se sente dos vaivéns da sorte.


Para tua hecatombe de um segundo

Não falta alguém? — Preencha-a comigo:

Leva-me à região da paz horrenda,

Leva-me ao nada, leva-me contigo.


Miríadas de vermes lá me esperam

Para nascer de meu fermento ainda,

Para nutrir-se de meu suco impuro,

Talvez me espera uma plantinha linda.


Vermes que sobre podridões refervem,

Plantinha que a raiz meus ossos fera,

Em vós minha alma e sentimento e corpo

Irão em partes agregar-se à terra.


E depois nada mais. Já não há tempo,

nem vida, nem sentir, nem dor, nem gosto.

Agora o nada — esse real tão belo

Só nas terrenas vísceras deposto.


Facho que a morte ao lumiar apaga,

Foi essa alma fatal que nos aterra.

Consciência, razão, que nos afligem,

Deram em nada ao baquear em terra.


Única ideia mais real dos homens,

Morte feliz — eu quero-te comigo,

Leva-me à região da paz horrenda,

Leva-me ao nada, leva-me contigo.


Também desta vida à campa

Não transporto uma saudade.

Cerro meus olhos contente

Sem um ai de ansiedade.


E como um autômato infante

Que ainda não sabe mentir,

Ao pé da morte querida

Hei de insentato sorrir.


Por minha face sinistra

Meu pranto não correrá.

Em meus olhos moribundos

Terrores ninguém lerá.


Não achei na terra amores

Que merecessem os meus.

Não tenho um ente no mundo

A quem diga o meu - adeus.


Não posso da vida à campa

Transportar uma saudade.

Cerro meus olhos contente

Sem um ai de ansiedade.


Por isso, ó morte, eu amo-te e não temo:

Por isso, ó morte, eu quero-te comigo.

Leva-me à região da paz horrenda,

Leva-me ao nada, leva-me contigo.


                                         Junqueira Freire

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Os pássaros

os pássaros se foram – cruzando os céus.

deixando vazio o ninho,

onde antes as mil crianças

agora as brumas de amor e esperança

servindo de escudo, guardando o mistério profundo da pele.

 

os pássaros se foram – seus cânticos se ouvem ao telefone,

e apenas aterrissaram ao sul

pousou aqui o dedo em riste da terra

ofendida em seu pântano e degredo.

 

os pássaros se foram e o silêncio foi colorindo a casa,

a memória das chuvas do próximo março

e o grito de ódio empáfia arrogância e ameaça.

 

no lugar dos pássaros que partiram

a certeza de que regressarão em tempo mais breve

que qualquer ausência possa matar.

 

nuno g.

Toróró, 23 de novembro de 2021.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

O jogo, por Patrícia Gonçalves Tenório

Volto
Ao começo
Ao mesmo
Ponto
Do Big Bang
À mesma
Luta
Comigo
E a vida

Tão desmesuradamente
Bela
E dura
E minha
E sim

Patrícia Gonçalves Tenório

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

15 de novembro.

Aqui chove.
E chove muito.
Chove como se chovesse sobre todo meu passado.
E ouço o som de cada gota sobre este telhado.
E olho esta casa que os deuses me deram.
E ouço cada som da chuva banhando este lugar.
E penso em todas as vezes que me pensei um corpo atado.
Um corpo interditado.
Um corpo sem vereda e sem atalho.
Minha pressa se desfaz e o rio segue sangrando.
Como um coelho degolado por um cão assustado.
Ou como um arbusto decepado pela fúria de um facão.
Aqui chove.
E o gosto de suas coxas não sai da minha boca.
Sou só saliva e barro.
E meus joelhos são penitência e oração.
A república ruiu - e com ela todas as fantasias eróticas da política.
Nenhuma semiótica no quintal.
Só a chuva.
Esta casa.
E a brasa do cigarro recordando uma antiga combustão.

nuno g.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Caminhos de sal

Existe um panteão esquecido pedindo passagem
Aracati / Quixeré / Feiticeiro
Sete flechas em meu corpo-encruzilhada
Se afogando na quentura de um sol radiante
Que não para de sangrar
A senhora de todas as ciganas tangeu os eguns que bailavam ao meu lado
Treme a terra / Geme o mar
Todos os santos / Todos os mortos
E como os bois de antanho subiram o leito do rio ao som do aboio
Sem esperança de chegar a algum lugar
Existe um panteão esquecido pedindo passagem
Aracati / Quixeré / Feiticeiro
Sete flechas em meu corpo-encruzilhada
Se afogando numa sombra que não para de bailar
Subindo o leito esturricado do rio em direção à vila do Icó
O corpo de tua mãe se redobrando pra dentro
Só tu se reconhecendo nestes retorcimentos tão íntimos
E não foi ela que com suas mãos alimentou a fome dessa cidade?
E não foi ela que carregou dentro nosso rio de sangue?
Hilda lavou os búzios lambuzados de mel
E abriu os caminhos do entendimento do escuro
Ainda sob a proteção do Amarelo e do Azul
Quando ela dança no arco-íris eu morro
E essa violência perpétua dos nomes me abrasando antes de qualquer chuva
Okê Arô -- sim, caçador, só temos uma flecha
Dai-nos firmeza e pontaria para atravessar estes caminhos de sal
Existe uma onça uivando no horizonte de calcário
Dai-nos fé e amor para escutarmos a voz que vem do outro lado.


nuno g.

sábado, 23 de outubro de 2021

Bixopá

o que é o Nada?

Uma porção de água doce no meio do deserto

 

uma Igreja de pedra

ferindo a solidão da paisagem

 

mangas, bananas e uma aquarela

conchinhas de unicórnio e som de flauta

 

arsenal de munição para as réstias da vida


nuno g.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

pátio São Pedro

Ela veio duas vezes

em dois corpos-fêmeas

numa falava português

na outra em desconhecida língua

os eguns desfilavam entre nós

como as contas de um terço de algodão & espinho

(à felicidade não restava nenhuma importância)

o preto-velho nos chamou

e nos serviu cachaça com tira-gosto

as luzes apagadas

o silêncio das alfaias

e o desespero de não chegar ao mar e lavar teus pés



nuno g.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

as flechas do Quixeré

me atravessaram como éguas atravessam um rio
deixaram feridas que só sua saliva cicatriza
e um sangue, talhado e doce
granulado como um pariká selvagem
a primeira, me lembrou seu olhar
e quando me disseram que o meu era o mais triste do mundo
a segunda, suas coxas
e quando elas desapareceram para sempre
a terceira, sua mão na minha
buscando água salgada pra criança brincar e subir

nuno g.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

O coveiro.

para Gabriela Gonçalves,


A poesia

reescreve o trauma

na órbita do corpo

 

As velas

reacendem o trauma

na órbita do túmulo

 

A cidade tenta apagar o inapagável

A família tenta esquecer o inesquecível

O vento é um caboclo

E seu hino é feito de sílabas de areia

 

A calçada

reinstala o território inabitável:

Amanhã é o único nome para descrever o passado.

 

nuno g.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

A cigana de Araci

para Claudio Reis,


foi Ela

com suas vestes coloridas

e seu punhal de renda

que abriu o horizonte de águas

e trouxe o sol


em Jardim

também foi Ela

com suas vestes coloridas

e seu punhal de renda

que abriu o horizonte de fogo

e trouxe as águas

que lavam setembro

e floram os cajus


Ela

a cigana de Araci

com a morte nos olhos

e flocos de neve nas mãos.


nuno g.

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Recife, 1977.

para meu pai

para minha filha


São muitas pontes

Alguma deve ligar

Meus sonhos

Aos sonhos dos mortos

 

São muitos rios

Algum deve ligar

Meus sonhos

Aos sonhos dos vivos

 

Cidade-mangue

Marco-zero

Em cada semáforo reconheço

Um estilhaço de uma vida que poderia ter sido

 

Anoitece.

Amanhã o passado amanhecerá ainda mais vivo.

E não haverá pedra que o mate.

E não haverá futuro que já não tenha acontecido.

 

nuno g.

Recife, 03 de setembro de 2021.

sábado, 14 de agosto de 2021

constelação das águas turvas, por Demetrios Galvão

na lascividade do território-carne
nos absorvemos no desejo inebriado

– trânsito nas costas-alamedas dentro da flecha de Eros –

nos perdemos no cinema, na angústia dos outros
acordamos enjoados, tontos
ou não dormimos
pensamos em quem descansa dentro da ventania
olhando o sol dissipar as águas turvas da madrugada

do outro lado da cidade antiga
nossos delírios se acomodam
entre o ronronado dos gatos e canto dos galos

por vezes nos encontramos em tempos furtivos
na varanda fugaz dos nossos peitos

– meteoros volúveis se cruzam no
parque de diversões de nossas bocas.

Demetrios Galvão (Teresina/PI), poeta, coeditor na revista Acrobata e professor.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Certidão


para meu pai.

para o professor Paulo Emílio.

 

No fundo falso da mala a certidão de nascimento.

Foi assim que conheceu Fleury.

Foi assim que conheceu Ustra.

Foi assim que aprendeu que sob tortura toda carne se trai.

Sobreviveu.

E dedicou o resto dos anos de sua vida à arte de ensinar história da arte:

caligrafia islâmica, tatuagens maoris, bauhaus.

A certidão de nascimento era o único portigo por onde espiava o mundo.

O resto era clandestinidade e sonhos.

Envelheceu.

E dedicou sua velhice à construção de um museu na serra da Meruoca.

O fascismo voltou.

Fleury e Ustra foram promovidos a marechais de guerra.

A carne se arrepiou ao pressentimento da violência.

Todos aqui estão mortos, sem exceção.

Vasculho o armário.

Busco papéis e carimbos.

Ouço minha primeira vó, morta, chorando.

Ouço minha segunda vó, morta, me interrogando.

Ouço os estampidos da arma de fogo.

E olho nos olhos dos homens que mataram meu pai:

eles sabiam que ele era meu pai.

Encontro a segunda certidão de nascimento.

Sinto o amor sem mácula de meu avô.

A original se perdeu para sempre.

Caligrafia islâmica, tatuagens maoris, bauhaus.

Os sobrenomes são os mesmos:

ainda quando reduzidos às cinzas.

No fundo do armário nenhuma certidão de nascimento

                                       nenhum portigo para espiar o mundo

Só a clandestinidade, os sonhos e a traição da carne ante a intuição da violência.

Nada de papéis. Nada de carimbos.

Só o sorriso de uma criança asseando o corpo do pai com folhas de urtiga.

Nada de choro. Nada de interrogatórios.

Só a alegria de uma criança velando o corpo do pai.

O fascismo sobreviveu.

Dediquei minha vida à arte:

caligrafia islâmica, tatuagens maoris, bauhaus.

Envelheci.

Quem sabe um dia suba a serra da Meruoca e enterre

no fundo falso do museu este poema.

 

Nuno g.

Toróró, 8 de agosto de 2021.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

demolição

soube que o prédio desabou

como tudo mais em nosso tempo

como os olhos do mar

como as máscaras das instituições burguesas

como os céus que os pajés sustentaram por séculos

soube que o prédio desabou

e passei toda a semana ouvindo os passos do velho

e passei sete noites sonhando com os gestos do velho

e passei a terceira tarde inteira buscando a chave entre os escombros

soube que o prédio desabou

acendi uma grande fogueira no terreiro

e devagarzinho fui queimando memórias sem serventia

 

nuno g.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Aboio

                       Para Antonio Cornejo Polar

Iansã tangeu os eguns

Iansã tangeu os eguns

Iansã tangeu os eguns

 

Meia-lua, sol de boiadeiro,

Redemoinho e azul,

O sol, dourado, se esparramando no pasto,

A montanha, ferida

e os três chicotes no interior vazio do cálice.

domingo, 18 de julho de 2021

Dicionário

Minha alma correu grandes perigos ontem à noite.

O cavaleiro Azul me estendeu a mão e me salvou.

Voltei onde nunca tinha estado.

E vi coisas que não deveria ter visto.

E, por isso, jamais as poderia esquecer.

Minha alma atravessou grandes perigos ontem à noite.

O cavaleiro Azul me ergueu do chão e fez brotar raízes dos meus pés.

Voltei. Agradeci. Não esqueço.

Abri as asas e regressei para onde sempre estive.

O cavaleiro Azul sorriu.

E minha alma girou sobre o chão do terreiro.

Vulcões, terremotos, tempestades.

Minha alma pediu socorro e o cavaleiro Azul veio.

Com sua lança prateada e sua legião de crianças e cavalos.

As coisas que vi não sei narrar.

As palavras me escorrem como o sangue do galo sacrificado.

Vulcões, terremotos, tempestades.

E o cavaleiro Azul desencantado.

Minha alma caminhou até a fonte de águas doces.

Saciou sua sede e seguiu sua fiel jornada.

 

nuno g.

Toróró, 18 de julho de 2021

sexta-feira, 16 de julho de 2021

A farofa, o dendê, os pífanos

Dentes trincados, velas acesas.

Corpo de luz, Leminski à vitrine.

Esboço de amarelo mofado.

Algodão aos pés da tropa.

Ouro em pó e distância.

Velas acesas, dentes trincados.

Amanhecer de.

Esboço de carne e pássaros.

Terra devastada e.

Corpo de luz, vitrine devassada.

Em vão, ou quase.

Como se o som da noite fosse o vento de UAKTI.

Atravessando meu corpo de pífano desregrado.

A lua no céu, sorriso do gato.

Esboço do Nada.

Ponto riscado, azul de ilha.

Esboço, arco e.

Ciranda. A gira. E o lastro.

Removo a argila.

Cavalo castanho na beira da praia.

Ele chega. Me sagra.

E a gira segue nas pancadas do mar.

 

nuno g.

Toróró, 16 de julho de 2021.

segunda-feira, 12 de julho de 2021

O cálice e os três chicotes

A lei. A lei. A lei.

O galo e o enforcado.

E o meu sonho de sempre sobre o meu rosto antes do nascimento.

Refletido na água.

Cravejado com espinhos de ferro & aço.

Brilhando na noite da mata.

Em meio às estrelas e aos dentes de minha mãe.

A lei. A lei. A lei.

A primavera se abrindo com o sangue do galo.

Gotejando na carta do enforcado.

A lei. A lei. A lei.

E o meu rosto de sonho sempre antes do nascimento.

Cavalgando Eleguá, o cavalo de pedra.

E sua crina lambuzada de mel.

Entre os seios e as coxas de minha mãe.

Como se na carne uma fenda aberta à outra carne.

E no coração do mistério um abismo a outro abismo.

Gotejando nos caules de milefólio.

A lei. A lei. A lei.

O galo, o sonho, o enforcado.

Sempre.

O Azul caminhando ao meu lado.

Com sua espada de metal e a serpente.

Um olho tatuado dentro do olho.

Como a noite e o rastro das asas.

O inverno, a seca, o rio que morre e renasce.

Fogo-fátuo ante o palácio dos eguns.

Meu dicionário, meus medos interditados.

A lei. A lei. A lei.

A testa toca o chão ao som do atabaque.

Meu rosto é o mesmo de sempre.

Meu rosto antecede meu nascimento.

O sangue do galo pinga sobre o metal da espada.

A lei. A lei. A lei.

Dentro do cálice os três chicotes trabalham.

A forja Dele. A crina de mel. O silêncio do outono.

A memória do curry e do shoyu, a fonte.

Todos os quintais vão se abrindo.

Escadas e jardins e escadas e jardins e.

Não há mais esperanças:

A vida pode finalmente florescer em paz.

 

nuno g.

Toróró, 12 de julho de 2021

sexta-feira, 2 de julho de 2021

CARTA DA VOLTA, Revista Pindaíba

 Recomeça....

 

Se puderes

Sem angústia

E sem pressa.

E os passos que deres,

Nesse caminho duro

Do futuro

Dá-os em liberdade.

Enquanto não alcances

Não descanses.

De nenhum fruto queiras só metade.

 

E, nunca saciado,

Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.

Sempre a sonhar e vendo

O logro da aventura.

És homem, não te esqueças!

Só é tua a loucura

Onde, com lucidez, te reconheças...

              Miguel Torga

 

 

Saudações pindaibísticas!

Comparsas, a esfera voltou a girar! Em  2021 a revista Pindaíba completa 18 anos. Quatro edições publicadas e uma quinta prestes a ir ao prelo.

 

Há cinco anos lançamos a quarta edição e concluímos que já bastava. A Pindaíba deveria morrer pois fazia parte de um tempo que deixou de ser. Observamos as mudanças profundas que estavam acontecendo no mundo e também ao nosso redor, no nosso reduzido universo das relações próximas e pessoais... O velho Benfica dos anos 90 e começo dos anos 2000 (quando começamos) com seus bares de esquina e butiquins; o Brasil da era Lula e PT; a América Latina com seus governos nacionalistas e populares não mais existiam. Tudo se desfazia no ar e um novo mundo, com perspectivas sombrias, se manisfestava. Portanto, entendíamos que a quinta edição seria a derradeira. Se ainda teimássemos em fazer revista deveria ser uma outra, com novas características, que refletisse os “novos tempos”...

 

Embalados pela ideia da Morte da Pindaíba, logo organizamos a nova e última edição. Nos reunimos na Praça João Gentil, decidimos sobre o caráter da coletânea de contos e poemas, deliberamos sobre as matérias, recebemos os textos, criamos o projeto gráfico e fizemos a diagramação. A ideia era lançar ainda no ano de 2017. No entanto, como não poderia deixar de ser, a vida surpeendeu: nesse ano perdemos um comparsa muito querido, pindaibeiro mor, pelo seu modo de ser e encarar a existência; Carlos Jorge encarnava, como ninguém, o espírito contestador da Pindaíba. Para além, CJ  representava esse velho Benfica onde costumávamos nos perder noites afora, esse Benfica que havia passado. Ao meu ver, CJ  é o símbolo maior, pelo menos para nós pindaibeiros, dessa era de sonhos etílicos, de brisa e madrugadas marginais.

 

A partida inesperada de nosso amigo causou um refluxo. Os encontros na praça pararam de acontecer, a produção da quinta edição passou a operar em modo “banho-maria”, a esfera parou de girar... Essa paralisia perdurou até o fim de 2019, quando ventos de entusiasmo voltoaram a embaralhar nossas cabeleiras. Reavaliamos a ideia de matar a revista e a desconsideramos totalmente. PINDAÍBA VIVE! passou a ser nosso lema, o oposto. Avaliávamos agora que a morte já havia levado seu tributo; já tínhamos perdido o CJ. A Pindaíba não cederia mais nada à senhora contratante de Caronte, pelo menos não agora. Essa retomada merecia uma celebração. Organizamos uma confraternização de fim de ano na saudosa casa do Manoel, no Benfica, com a convicção de que no primeiro semestre de 2020 a revistinha seria lançada. Ledo engano. Mais uma vez a vida veio e nos deu uma rasteira. Iniciava-se naquele ano a Pandemia do Corona Vírus, acentuada aqui no país pela  nefasta polítca do flagelo Bozonazi e as serpentes golpistas. Tivemos que estacionar a esfera mais uma vez. Algo muito mais urgente requeria nossa atenção.

 

Pois bem, após esse histórico, me permitam afirmar que uma nova oportunidade se apresenta.  O povo tá ocupando as ruas novamente, dessa vez para protestar. Na verdade a maioria dos brasileiros nunca pôde deixar as ruas. O isolamento social, segundo estatísticas, só alcançou 27%  da população. A massa de trabalhadores continuou obrigada a dividir ônibus e metrôs lotados, assim como as linhas de montagem das grandes indústrias e comércios. Devemos aproveitar essa onda de protestos para se juntar às manifestações e também, com a vontade renovada, trazer a Pindaíba à luz.

 

A revista está pronta, terá 140 páginas. Além da coletânea COLÍRIOS E DELÍRIOS de poemas e contos, reunindo 34 autores, essa edição traz: 4HQs; entrevista com o grupo cearense de teatro Pícaros; entrevista com Jonnata  Doll; matéria sobre o poeta cratense Geraldo Urano; matéria sobre a cena marginal da literautura de Natal/RN; matéria sobre a literatura independente de Teresina/PI e a tradicional seção TÔ PUTO! (os “tô puto” serão acrescidos após uma campanha de divulgação).

 

Muito é preciso fazer. Vamos começar a etapa de divulgação e campanha financeira. É necessário o engajamento de todos, pois só é possível a publicação com o empenho coletivo dos pindaibeiros.

 

Vamos novamente nos reunir  na Praça João Gentil no sábado 17/06. Todos com máscaras e mantendo  o distanciamento proporcionado pelo espaço livre da praça. Na ocasião apresentaremos o boneco impresso para que os autores possam verificar a revisão; informaremos os valores da gráfica; discutiremos as atividades de divulgação e de venda e a participação da revista nas manifestações. Quando mais próximo, informaremos horário e a pauta de discussão mais específica. Os pindaibeiros que não puderem comparecer ou que ainda não se sentem seguros em participar de atividades desse porte, podem requerer  encontros pessoais na semana seguinte para esclarecimentos e ficar a par dos informes e encaminhamentos.

 

Sem mais no momento,

Abraços e Vida Longa à Revista Pindaíba!!!

 

André Dias

Fortaleza/CE. 29 de junho de 2021

quarta-feira, 30 de junho de 2021

quando os teus olhos O reconheceram

outra vez em fuga o cavalo:

em busca de seu dono e sob o batismo de teus olhos

outra vez sua crina banhada em mel:

em busca de seu destino de metal e mais-metal

como se a cada passo no pasto

abrisse nuvens e túneis

que O tornavam mais reconhecível aos olhos que selaram seu nome.


nuno g.

terça-feira, 29 de junho de 2021

T r a n s o m á t i c a, por Margarida Vale de Gato


De que carne cá dentro vem

aquilo que em mim tenta e pode

escrever o que estou lendo

de outrem?

           Não propriamente posse —

antes uma disposição

que internamente se impõe:

o corpo inteiramente votado

ao trânsito dum longo transe.


Não sei de que mais me envolva

tantas horas – nem dos distúrbios

do amor e respetivo sexo.


Cúpida presa mira longe texto.


Correntes desenrolam-me outra

coisa que não seca, conquanto

subam e desçam, carrossel

esconso, áspero silvado

ora escarpa, ora dossel

fluvial, Ó quanta líbido

discípulos da vertigem (à

falta de mais certeiro nome —

sanguíneo pneuma?) pode

trasladar a carne o canhão

para a fome espiritual?


Margarida Vale de Gato 

quarta-feira, 9 de junho de 2021

sedimentação / destilação / fermentação (procedimentos poéticos)

o que você chama de paz eu chamo terror / e sim, há sangue correndo entre essas águas do Jaguaribe / a minha insônia traz nome, não O revelo / meu fastio, minha insolência, meu despertencimento / só O que não se reconhece ao espelho interessa / essa fábrica de narcisos engrossando fileiras de algoritmos desenfreados / tenho a madrugada, a neblina e o meu coração cheio de covas abertas e gotas de / o gato mia / o gato foge / o gato se encurrala em seu próprio labirinto como um fauno / como um asno / como um avestruz de penas ruivas / as fezes sobre os sonhos e os dias de adoração ao Senhor / quaresma / quaresma / quaresma / e a nova penitência / como num filme antigo / preto-e-branco / como o manto sagrado do Ceará / o que você chama terror eu chamo paz / e sim, tarda em arder a sarça / a minha revelação traz nome: insônia / tenho a madrugada / a neblina / e esse leve rumor de asas que não me deixa esquecer que atrás da imagem refletida na água evapora tudo o que é sagrado.


nuno g.

domingo, 6 de junho de 2021

Sobre o Cisne de Stéphane Mallarmé, por Eduardo Guimaraens

Um Sonho existe em nós como um cisne num lago

de água profunda e clara e em cujo fundo existe

outro cisne alvo e triste, e ainda mais alvo e triste

que a sua forma real de um tom dolente e vago.


Nada: e os gestos que tem, de carícia e de afago,

lembram da imagem tênue, onde a tristeza insiste

por ser mais alva, a graça inversa em que consiste

a dolente mudez de um espelho pressago.


Um cisne existe em nós como um sonho de calma,

plácido, um cisne branco e triste, longo e lasso

e puro, sobre a face oculta de nossa alma.


E a sua imagem lembra a imagem de um destino

de pureza e de amor que segue, passo a passo,

este sonho imortal como um cisne divino!


Eduardo Guimaraens

terça-feira, 18 de maio de 2021

Jaculatória II

Rogo, rezo, imploro.

Aos anjos

Pelo sinal do caminho de regresso

ao corpo em que nasci.


nuno g.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

O Povo como Templo, por Guenádi Aigui

e as almas que nem velas se acendem uma a outra



Guenádi Aigui

Aldeia de Romáchkovo

6 de janeiro de 2002, véspera de Natal

(trad. jerusa pires ferreira)

terça-feira, 20 de abril de 2021

Amém Senhor, por Rony Bonn

Bebemos uma água suja

Que eles dizem

Que está limpa

Comemos uma ração podre

Que eles dizem

Que é comida

Vivemos sob uma luz turva

Que eles dizem

Que está vívida

Eles dizem muitas coisas

E a tudo damos graças

Mais tudo que temos

São essas coisas baratas

Maconha, cigarro e cachaça!


Rony Bonn.

sábado, 17 de abril de 2021

A cegonha, por Annibal Teophilo

 Em solitária, plácida cegonha,

Imersa num cismar ignoto e vago,

Num fim de ocaso, à beira azul de um lago,

Sem tristeza, quem há que os olhos ponha?


Vendo-a, Senhora, vossa mente sonha

Talvez, que o conde de um palácio mago,

Loura fada perversa, em tredo afago,

Mudou nessa pernalta erma e tristonha.


Mas eu, que em prol da Luz, do pétreo, denso

Véu do Ser ou Não Ser, tento a escalada

Qual morosa, tenaz, paciente lesma,


Ao vê-la assim mirar-se na água, penso

Ver a Dúvida Humana debruçada

Sobre a angústia infinita de si mesma.


Annibal Teophilo

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Itamaraju – poema da estrada

Quinze horas cruzando Minas Gerais.

As flores, as máscaras e os dois arco-íris na fronteira.

Quinze horas abandonando flechas no acostamento.

Quinze horas cruzando um Sonho absurdo e gigantesco.

Quinze horas nas veredas da mata de Tempo.

Quinze horas de guerra e oração dentro.

Itamaraju foi crescendo – o que era um quintal se fez um céu.

E nossos corpos deitaram-se um sobre o outro.

Meus passos de vespa zumbindo no mercado.

Comprando frutas, comprando própolis, comprando cigarros.

Meus passos de mosca santificando a semana de um só dia.

Mastigando bolinhos caipiras na porta da barraca e lembrando.

De uma noite no vale dos buritis – penas brancas & cobras corais.

O rapé. O pajé. A poeta. O irmão.

Itamaraju – palavra que desconheço o significado.

Pedra, como tudo que é pele à minha pele.

Quinze horas de lírios à sombra da segunda sombra da oiticica.

Jaguaribe; minha fome, minha sede, minha monástica aparição

às horas de rumores & neblinas

Itamaraju. Jurema.

(os raios que habitam teus lábios – e o meu perdão saltitando como uma rã entre vossas mãos)

Caminhões & faróis altos.

Faróis altos.

Bananas, uma bolinha de plástico de máquina à moedas.

Quinze horas e nenhum cansaço.

A força límpida e cristalina da estrada.

Recolhimento pandêmico e notícias da terra.

Itamaraju – o oposto perfeito de esquecimento.

Pedra que guarda o que recebe.

Lugar onde se assenta.

ita /mar / azul

uma fotografia mais para o álbum.

 

nuno g.

Toróró, 14 de abril de 2021

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Primeiro Verbete Involucionário em Agônica Pandemia, por Felipe Franklin Neto

V@cyna.

Do pandêmico brutal; mortal; bestial; racista; classista; infectocêntrico; viral; Do Vate é destro; vade; desgoverno; genocídio necropolítico; sultanato miliciano; carbonato de mentiras insalubres; bioindústria farmacêutica; crime organizado; a mercantilização e a financeirização da; de olho numa; pesquisa na outra; imunização; a mitologia do gado e o coeficiente do rebanho; a imunidade de; do; como; percentualismo; momento em que nenhuma conta fecha quando é o seu na reta; universalização; democratização; popularização; saberes populares e ancestrais; " Vacinar ou não vacinar?" eis a falsa, inoculada e inócua questão; indigestão pública; o que pode o corpo; pergunta; retórica; geopolítica; briga; disputa; concorrência; amizade; intriga; mesquinharia; pangeia; Pachamama; virolândia; momento logístico e histórico da história logística e operacional do ato de; vacinar; ato de se libertar de uma pandemia deixando o braço ser picado pelo sentimento de esperança; agulha; centelha; certeza; científica; sensível; senil vais com as outras; outros; alfabeto sumério de gêneros; que vida é essa que te jaz; faz; delirar; impele; lockdown; fakedown; mortandade festiva; aglomerações; índices; picos; curvas; mentalidades; ilusórias; sacudidas; nero; necro; política; fazer festas em momento de; espanto; interrogação; exclamação; afirmação; inquietação; sonegação; do provérbio sistêmico e único de saúde: "É melhor prevenir do que intubar! " exclamou a enfermeira aos parentes enfermos; comércio e contrabando de oxigênio; falta de estrutura e organização municipal e estadual por conta da indigestão federal; forças desalmadas; despreparadas; Patetazuello; sem zelo; ria; rua; ruajoelhe-se seu cabra; safado; China; Cuba; solidariedade; EUA; a que te tens de regresso; avanço; corporações; mineração de dados em picos pandêmicos; as Gates do Bill; Trumpicídios; Bin Baden; What Laden; lados; assimetrias; defeitos laterais; status; quo; vacinis; patentes; quebra de; agentes; reagentes; matérias primas que estruturam; organizam; funcionam; a vacina; princípios ativos; disputa pela cadeia produtiva da; enquanto que; coisa; absurdo; Diz- se daquilo que; simboliza a; em momento de; a necessidade universal e democrática; popular; horizontal; no intuito de; parar com isso; avançar para parar com isso; com; nós; vós; planeta; vozes; relação predatória entre seres humanos, capital e natureza; persecutória; especismo; fábrica de pandemias sociedades atônitas; à vista: custo; curto, médio e longo; prazo; paparazzo; arrazo; afasto; arrasto; nefasto; corrida civilizatória, holográfica, fotográfica e audiovisual para chegar à vacina; os sérios nessa história; invenção; as ilusões perdidas; os pessimismos; os otimismos; os realismos; os cinismos; os progressismos; os reacionarismos; inscritos nas análises conjunturais e estruturais de todos esses espectros; mercados; totalitários; fascistas; de possibilidades; animosidades; terraplanismo; cada quadradinho forinha do seu lugar; abusotantismo; obscurantismo; a incrível e ardorosa guerra e luta contra essas tentativas para além do bem e do mal e dos maniqueísmos sem recair em; relativismos; tentativa cotidiana de; quem dá mais; quem tem menos; comprar ou dadivar; soletre a gramática ativa da ação; o rico, vacina, o pobre, chacina; desigualdade estrutural, social, política e econômica em relação ao acesso; ao conhecimento; à produção, circulação e distribuição das; vacinas; mais uma vez revelada; escancarada; aloprada; remoída; e vaticinada; infectologia; virologia; saúde pública; saneamento básico; atenção primária, secundária, terciária, quaternária, incendiária; sangue nos olhos; luta; dor; sofrimento; agonia; esperança; desilusão; compaixão; empatia; sintonia; vacinar; atinar; atiçar; a tabela periódica de civis sentimentos; planetária; lucros exorbitantes; covas aviltantes; mercado da morte; estatísticas; campanhas locais, municipais, estaduais, federais, continentais, hemisféricas, intergaláticas; microscopia biológica, física e química; macroscopia política, econômica e ambiental, voos sem escalas; siderais; vacina; letra jota; vogal a; consoante; dissonante; desmororalização; continua; capetão cloroquina; gripezinha; do ato de imaginar o que se passa no coração - e na mente; de um; bossal; inominável; mentira institucionalizada; a verdade afugentará; será; oxalá; cada dia novos abris.


Felipe Franklin Neto

sexta-feira, 26 de março de 2021

gravidade

dois seres de Ar

suspensos no espaço

entre estruturas metálicas

e abismos cósmicos

dois seres de Ar

suspensos no coração

de um buraco negro

dois seres de Ar

suspensos nas ruínas de um engenho

entre flores liliputianas

dois seres de Ar

se olhando à sombra

suspensos

no coração da água

dois seres de Ar

um olhando

o outro banhar os pés

entre liliputianas flores

dois seres de Ar

suspensos no fogo

como se o sangue

regasse com luz

o cúmplice

silêncio

do rio



nuno g.

Toróró, 16 de fevereiro de 2021.

sábado, 6 de março de 2021

Sobre escolas e desejos de volta, por Danilo Heitor Cajazeira

Existe um grupo de pessoas no Brasil, que alguns veículos de mídia chamam de movimento e dizem ter mais de 150 mil membros, que defende que as escolas deveriam permanecer abertas, mesmo nos piores momentos de contágio da pandemia de covid-19. O nome que esse grupo de pessoas assumiu para si é "Escolas Abertas".

Os argumentos trazidos pelo grupo parecem nobres: as crianças, apartadas da escola, tem apresentado perda de aprendizagem, mais significativa para as de menor idade; a escola tem uma função social, inegável, ainda mais em um país pobre e desigual como o nosso, principalmente no que se refere à alimentação; os casos de violência e abuso em casa aumentaram com as escolas fechadas.

Tudo isso é verdade. Posso afirmar porque sou professor de duas redes, a pública e a privada, na maior cidade do país. 

(Não sou uma raridade: são muitos os profissionais da minha categoria - sendo justo: são *muitas*, já que é uma categoria majoritariamente composta por mulheres - que ocupam toda a vida dando aula em duas escolas pra conseguir ter renda suficiente para se manter.)

Para além desses argumentos, o discurso do Escolas Abertas para o retorno das aulas presenciais se baseia na realidade de outros países, como o Reino Unido, onde as escolas não fecharam mesmo com lockdown. Por lá, testagens massivas foram feitas para garantir esse retorno. Mesmo assim, quando o contágio aumentou demais, as escolas fecharam de novo. 

É aí que começa o problema: sabemos, eu, você que está lendo e as pessoas que compõem o Escolas Abertas, que isso não aconteceu - e nem vai acontecer - no Brasil.

Nem lockdown de verdade, nem testagem massiva - na rede pública de São Paulo, a prefeitura testou apenas 17,7% do total que havia prometido, e ainda com o tipo menos confiável de teste.

Essa testagem aconteceu toda no ano passado - ou seja, todas as pessoas testadas podem ter se contaminado desde então.

Além disso, que não é pouco, existem diferenças gigantes de estrutura entre as escolas do Reino Unido e as daqui - e, principalmente, entre a rede privada e a pública no Brasil. 

As pessoas que compõe o Escolas Abertas tem, em sua maioria, os filhos matriculados na rede privada, em grande parte dos casos nas escolas mais caras. Lecionando nas duas redes, experimentei na pele as diferenças, gritantes, entre elas. Da merenda, que por pouco não virou ração nas escolas públicas municipais, aos passeios de campo, que banquei do bolso na EMEF onde trabalhava até ano passado. Diferenças que vão muito além das questões materiais, sobre as quais não vou me alongar. Fiquemos com apenas um fato: mais de 500 escolas públicas em São Paulo não abriram por não ter equipe de limpeza no dia programado para o retorno, semana passada - e nas que tem essa equipe, e retomaram as aulas, não faltam relatos e apontamentos de que são insuficientes. 

Se formos analisar a ventilação nas salas de aula, já que o principal modo de transmissão do coronavírus é por transmissão aérea em ambientes fechados, a situação piora ainda mais, e atinge tanto as escolas públicas quanto as privadas. Mas também não quero explorar esse fato, porque, de novo, todos sabemos disso: eu, você, o Escolas Abertas e qualquer um que perca dois minutos lendo as redes sociais e as notícias nos últimos dias.

Mesmo assim, o "movimento" insiste no retorno.

Não quero entrar nos motivos dessa insistência, que vão muito além da perda cognitiva ou da saúde emocional das crianças. Escrevo aqui impulsionado por outra razão: externar dois desejos meus neste momento.

No último domingo, recebi a notícia da morte de uma atendente escolar, da rede pública, com quem trabalhei nos últimos três anos. Ela era três anos, também, mais nova do que eu, que estou prestes a entrar nos meus quarenta anos.

No mesmo dia, mais tarde, a avó dela também morreu.

Mesmo com essa notícia, uma entre tantas outras que tem surgido diariamente, o meu primeiro desejo, o maior dos dois, é retornar para a sala de aula. Porque o ensino remoto é horrível. 

Mas só quando isso não significar um aumento exponencial na possibilidade de morte, minha e de todas as pessoas com quem irei interagir nas duas escolas em que leciono, no caminho de casa até a escola (uma hora de trem), de uma escola até a outra (mais duas horas) e depois de volta pra casa (outra hora inteira). E das pessoas que, depois disso, irão interagir com essas pessoas.

Quero retornar para a sala de aula, sim. 

Quando isso não significar, para além da morte, o aumento também no risco de nunca mais poder entrar em sala de aula, já que cresce o número de pessoas com sequelas que - ainda não se sabe - podem ser permanentes, entre elas perda respiratória e, vejam só, déficit cognitivo. É o caso de uma amiga, também professora, com quem dei aula muitos anos e que hoje vive no Pará. Mesmo com sintomas leves, mais de seis meses depois de ter sido contaminada, ela ainda não recuperou completamente olfato e paladar e tem se confundido com coisas simples do dia a dia, como lembrar de desligar o fogão.

Quero retornar para a sala de aula.

Mas não para atender os desejos fúnebres de pessoas que nem sequer estarão lá, e que se sentem bem em apostar as vidas dos próprios filhos nesta loteria macabra.

É aqui que entra meu segundo desejo, ligado umbilicalmente ao primeiro, bem mais simples, e que diz respeito às pessoas que fazem parte e defendem o Escolas Abertas.

Para elas, todas elas, eu desejo a morte.

Não por ódio ou vingança, longe disso. 

Mas pela simples reciprocidade.

Porque elas, como eu e você, sabem muito bem dos riscos que essa volta significa, no pior momento da pandemia até aqui, com mais de mil mortes diárias todos os dias. E seguem gritando pelo retorno, porque não se importam com a vida - a minha e a de todas as pessoas que trabalham nas escolas, professoras, coordenadoras, faxineiras, atendentes escolares e seus familiares.

Morte por morte, desprezo por desprezo, então, eu deixo aqui meu desejo de volta.


São Paulo, 23 de fevereiro de 2021.

Um professor.

Danilo Heitor Cajazeira

https://sempredesobedecer.wordpress.com/


sábado, 20 de fevereiro de 2021

Das coisas que me diz o fogo ou dos sonhos que sonham as pedras

neste manto azul de entendimento e abertura

nesta terra-terra de formigas e assentamento

neste céu-sem-dogma, nesta carne que cura e treme

neste manto azul de espera e fundação

neste fogo-fogo que consome e arde

neste esquecimento, neste cume do esquecimento

nestas veias e artérias, neste sangue que corre,

nestas três árvores, nestes indícios de soberania

nesta carne que se ressente e que caminha

entre enxames de vespas & abelhas

neste manto azul, que aos teus olhos apareceram

entre os ínfimos grãos do sétimo infinito

às margens das margens do reino de Tempo


nuno g.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

INTERPRETAÇÂO, por Mourid Barghouti

Um poeta escreve num Café

A velha pensou que escrevia uma carta para a mãe.

A adolescente, que escrevia para a namorada.

O menino, que desenhava.

O comerciante, que planejava um negócio.

O turista, que endereçava um cartão postal.

O contador, que calculava suas dívidas.

O homem da policia secreta caminhava lentamente em sua direção.


Mourid Barghouti

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

O Canto, por Antônio José Bezerra - o pajé

Eu canto a paz, que emana do coração
No oásis do sertão não posso cantar a dor

A linda flor que perfuma alegria
Conserva toda energia dessa terra de amor

Eu canto as matas
Canto os rios
Canto as fontes
Canto baixios e montes
Canto a luz do sol e sou

Uma semente que germina esperança
Que rega toda criança dessa terra que brotou

A tua essência é de quinta dimensão
Ilumina a escuridão do ser que não despertou

Pra uma conquista de luz em tempo passado
Cariri consolidado
Força do interior

Eu canto as matas
Canto os rios
Canto as fontes
Canto baixios e montes
Canto a luz do sol e sou

Uma semente que germina esperança
Que rega toda criança dessa terra que brotou
Que rega toda criança dessa terra que brotou
Cariri consolidado
Força do interior

Antônio José Bezerra - o pajé.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

À BEIRA-MAR — por RABINDRANATH TAGORE

À beira-mar de mundos infinitos, se encontram as crianças.

O céu infinito está imóvel sobre suas cabeças e a água inquieta é tumultuosa. À beira-mar de mundos infinitos, as crianças se encontram com gritos e danças.

Elas constroem suas casas com areia, e brincam com conchas vazias. Com folhas murchas tecem seus barcos e sorridentes os flutuam no vasto abismo. Crianças brincam à beira-mar de mundos.

Elas não sabem nadar, elas não sabem lançar redes. Pescadores de pérola mergulham em busca de pérolas, os comerciantes velejam nos seus navios, enquanto as crianças juntam seixos e os espalham novamente. Elas não procuram tesouros escondidos, elas não sabem lançar redes.

O mar sorrindo se levanta em ondas, e pálido brilha o sorriso da praia. Ondas ameaçadoras e mortais cantam baladas sem sentido para as crianças, como uma mãe enquanto balança o berço do seu bebê. O mar brinca com as crianças, e pálido brilha o sorriso da praia.

À beira-mar de mundos infinitos, se encontram as crianças. A tempestade vaga no céu sem caminhos, são destruídos navios na água sem rastro, a morte está nos países distantes, e as crianças brincam. À beira-mar de mundos infinitos é a grande reunião das crianças.

RABINDRANATH TAGORE

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

***

No hay nada que temer. 

No hay nada que esperar. 

Siempre se está más o menos vivo. 

Siempre se está más o menos muerto.


César Vallejo in Contra el secreto profesional.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Do espaço em direção a cá, como dois tempos - por Stella Díaz Varín

A noite,

deslocada como asa de um cetáceo ferido.

Amortalhada sempre que a pupila negue sua orfandade.

Mar pomposo e grotesco seio;

quando a claridade se faça em mim

não necessitarei de vossa amada boca,

não necessitarei do meloso solilóquio de tua vertigem.

 

 

Me tens, como um peixe à sua escama,

miseravelmente unida a ti,

levando-te como uma criança canibal ao peito de sua mãe.

E não hei de desperdiçar hora, para maldizer

tuas parições de planetas fosforescentes

que vomitas ao meu lado sem nenhuma delicadeza... ...

 

Esquecida como árvore do deserto,

onde transplanta o viajante seu êxtase sem experiência,

feliz de abandonar o barco,

desejando encontrar na terra

a veia misteriosa da felicidade.

Navegante audaz,

dissociador do mar e da terra,

veia obscura será teu caminho em direção ao infinito!   

 

Quem, senão o esquecimento,

quem senão a medida de uma juventude posta de lado,

vem em minha ajuda agora.

Agora que tenho aprendido a pronunciar palavras

contra Deus e seus signos

e me ajoelho de hipocrisia ante os conhecidos.

Quando em ângulo reto junto à uma porta

espero a palavra de boa vinda.

E só escuto dentro, ruído de copos

cheios de um vinho generoso que jamais provarei...

 

Existem continentes simples, de um só país

com cidades elementares e casas de um piso

onde poderia me abandonar

e às cegas buscar o ócio e suas virtudes.

Mas a lembrança apenas de tão buscado lugar,

me pinta à cara um gesto de asco.

 Como se penetrara à habitação do amor

e me encontrara com três cadáveres

ante uma janta inconclusa de ostras descompostas –.


Stella Díaz Varín

tradução: nuno g.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

ENSÉÑAME A BAILAR, por Roberto Bolaño

a mover mis manos entre el algodón de las nubes
a estirar mis piernas atrapadas por tus piernas
a conducir una moto por la arena
a pedalear en una bicicleta bajo alamedas de imaginación
a quedarme quieta como estatua de bronce
a quedarme inmóvil fumando Delicados en ntra. esquina
los reflectores azules del salón van a mostrar mi rostro
goteado de rimmel y arañazos, ustedes van a ver una constelación
de lágrimas en mis mejillas, voy a salir corriendo
enséñame a pegar mi cuerpo a tus heridas
enséñame a sostener tu corazón un ratito en mi mano
a abrir mis piernas como se abren las flores para el viento
para sí mismas, para el rocío de la tarde
enséñame a bailar, esta noche quiero seguirte el compás
abrirte las puertas de la azotea
llorar en tu soledad mientras desde tan arriba miramos
automóviles, camiones, autopistas llenas de policías y
máquinas ardiendo
enséñame a abrir las piernas y métemelo
contén mi histeria dentro de tus ojos
acaricia mis cabellos y mi miedo con tus labios
que tanta maldición han pronunciado, tanta sombra sostenido
enséñame a dormir, esto es el fin.


Roberto Bolaño

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

O único verso, por Bento Prado Jr.

Tropecei, esta noite,

Num verso mais que estranho,

Único verso presente em todos os poemas reais

Ou possíveis de todas as línguas do mundo:

Primeiro hieróglifo, emblema de Hermes Trimegistos.

Verso em si ilegível e vazio embora necessário,

Verso perverso

Que nos condena a retornar, obliquamente,

A todos os poemas escritos até hoje,

E todos os futuros,

Um gonzo fechando,

Por dentro, um cubo hermético-metálico,

Que, mônada, espelha, em seu imo, todo o mundo externo.

Começo e fim de toda poesia,

Ou seu constante recomeçar?

Delirei, esta noite,

Um único verso,

(uni-verso),

que poeta algum jamais escreveu,

Face infinitesimal do Grande Diamante da Poesia ou do Ser,

Acesso a todos os demais versos,

Que se mostram, simul, ao leitor

Que eles próprios, nesse instante, criam.


Mas foi apenas um vislumbre:

Uma vez iluminado o Grande Diamante,

O verso volveu à sua aparente vacuidade

E dissolveu-se-lhe a cumplicidade com todos os demais,

Devolvendo-me ao ritual de meu dia-a-dia,

Mergulhando-me novamente em meu Não-Ser.


Bento Prado Jr.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

"Havia terra neles", de Paul Celan

Havia terra neles, e

cavavam.


Cavavam e cavavam, assim passava

o seu dia, a sua noite. E não louvavam a Deus,

que, segundo ouviam, queria tudo isto,

que, segundo ouviam, sabia tudo isto.


Cavavam e não ouviam mais nada;

não se tornavam sábios, não inventavam nenhuma canção,

não imaginavam qualquer espécie de linguagem.

Cavavam.


Veio um silêncio, veio também uma tempestade,

vieram os mares todos.

Eu cavo, tu cavas, e o verme cava também,

e aquilo que ali canta diz: eles cavam.


Oh um, oh nenhum, oh ninguém, oh tu:

para onde íamos que não fomos para lado nenhum?

Oh tu cavas e eu cavo, cavo-me para chegar a ti,

e no dedo acorda-nos o anel.


Paul Celan

trad. Yvette K. Centeno

domingo, 10 de janeiro de 2021

Na estante do meu avô, por Agostinho

Eu sonhei co'a velha estante

Da casa do meu avô

Lugar bonito e pujante

Onde este vate estudou


Uma lembrança ficou

Que me fere todo instante

O retrato que marcou

Do meu avô o semblante


Aquela estante modesta

Sempre fora minha festa

Sempre me dera alegria


Naquele local indulto

Eu tornei-me um homem culto

Relendo filosofia


Agostinho 

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

2021, por M. França

lá naquela esquina tem vacina para a solidão
vc pega o auto o poema pelo avesso
vc pega pelo meu braço e comigo vem ver o mar
o mar nos enlaça na maresia de nossos sonhos.

o leviatã segue em orion, em alegria
neste ano, o carnaval vai passar
neste ano, o são joão terá folguedos e abraços
neste ano, o azul será turvo, cor de chumbo
azul de picasso, azul de modigliani
com toda chuva de ansiedade lá fora, vou pegar o guarda-chuva da poesia
com a sacola de miudezas em cognatos, em morfemas
em vetores, irei fazer uma prece, uma reza, uma oração
cada poema é uma oração
cada pintura é uma oração
cada sinfonia é uma oração.

a timidez dos festejos vespertinos
a solidão dos reveillon de 2020/2021
a crueza dos fardados fascistas
a mudez das crianças e dos velhos por entre máscaras
a palidez dos sonhos e o silêncio dos autos
não me assusta
não me faz desistir desse samba torto
essa febre, esse ritmo, essa toada
da formiga
da cigarra
do poeta
que te diz q o amor é o astrolábio dos sentimentos
e o medo, esse medo, terá o fim.
:a alegria é a prova dos noves.


M. França