sábado, 5 de novembro de 2022

motörhead.

 I.


Sonhei que Gleizer me visitava de surpresa.

Sonhar com alegrias não é coisa nada boa, me disse dona Antônia.

A cidade engarrafada como os pensamentos na minha cabeça.

Francisca foi mordida por um mico.

Se não escrevo, enlouqueço.

Lari dorme de ressaca.

O caminhão de materiais de construção atropela a paz da manhã.

Maria come cream cracker com manteiga.

E tenta aprender a atirar de arco-e-flecha.

O dia está nublado como os pensamentos na minha cabeça.

Se não escrevo, enlouqueço.

A cidade está cheia de pessoas.

E muitas delas tem cabeças de formiga.

Sonhar com alegrias não é coisa boa, repetiu dona Antônia.

A gira não para.


II.


Ontem teve atabaques na praça.

Palavras de esperança & sorrisos.

Crianças brincando e a charanga d'Ajuda.

O brinquedo ficou na casa de Olívia.

A névoa aqui - em nossos desbotados corações.

A gira segue.


III.


A placenta de Maria tinha forma de coração e cor esbranquiçada.

Excesso de cálcio.

Excesso de tempo no útero.

O trem, os ônibus e as pessoas com cabeças de formiga engarrafaram a ponte.

Sete pães de sal e duas broas, por favor.

A fascista espanhola fugiu pra gringa.

O vizinho da frente decidiu construir um muro.

Lari desce a escada.

Maria tosse e joga no celular.

Dick, o cão, devora a ração dos gatos.

a gira, Gira.


IV.



(...)


Quer um café?

Não.

Toma um própolis.

Se eu tomar eu vomito.


(...)


Não esqueço a cigana que anteviu e nos anunciou a morte de Ian.

Quase dezembro.

As macaxeiras crescem.

As bananeiras crescem.

Os jerimuns crescem.

As laranjeiras, os limoeiros, os abacateiros crescem.

Só o baobá não resistiu.

À umidade.

Ou à ausência de uma serpente a lhe ceder chão.


(...)


Maria brinca de correr puxando uma linha para que Garfield a persiga.

É tempo de lagartas de fogo, muitas.

Como as flores de maturis dos tabuleiros cearenses.


(...)


Encontrei a agente de saúde que João mordeu semana passada.

Passa bem.

Sanhaçu.


V.


Chove.

Sobre o agora e sobre o ontem.

Sobre as coisas estranhas do agora.

Sobre as coisas estranhas de ontem.

Cada um de nós tem uma digital distinta.

literalmente, papai,

eu vejo minha digital

quando eu era pequena eu pensava que eu estava doente

por causa da digital

eu achava a digital estranha

eu via esse círculo no meu dedo e eu:

oxe!

Chove.

Sobre o agora e sobre o amanhã.

O brinquedo ficou na casa de Olívia.

Iremos lá daqui a pouco.

O que aconteceu ontem feriu.

Não lembrar de esquecer.

Às vezes a gramática traça destinos. 


VI.



Estou considerado não ir.

Quando tocou pra Senhora de Roxo você começou a chorar.

Quando tocou pra Senhora dos Raios você parou de chorar.

Maria chama no skype.

Nada atende.

A força da vida é maior que a nossa imaginação.

A razão atende a uma diminuta parcela da existência.

Belchior na vitrola.

A felicidade é uma arma quente.

É óbvio que ele não falava da felicidade.

Ele falava da poesia.

Como Camões naquele famigerado soneto.

Ele não falava do amor.

E sim da poesia.

Qualquer poema se distingue do tema sobre o qual versa.

Todo poema é sobre a poesia.

Pai, posso tirar a música pra assistir?

Pode.

O som do acendedor automático do fogão entre os pingos d'água da chuva.

Gleizer me disse: hay que desfrutar.

Sem perder o sentido do vigiai, pensei com meus botões.

A água desse rio pertence a quem me desdiz com mais carinho.

João e Night Day conversaram sobre o Viva Deus e a terra vermelha.

A cartografia e a geologia são mais úteis à poesia que a história e a antropologia.

Os celulares que batem foto são o estado terminal da arte da fotografia.

É óbvio agora que o meu encantamento pelo velho feiticeiro tem muitas camadas.

Tem broa que eu comprei pra você.

Muchas gracias!

Se quiser te passo um café.

Você fez duas xícaras com tudo isso aqui de pó?

A primeira delas tem a ver com meu avô.

Com seu semblante, sua morte e a espuma que saía de sua boca quando dentro do caixão.

A segunda tem a ver com seu destino mesmo.

De caminhar sempre sozinho e permanecer fora mesmo quando inteiramente imerso.

As outras Tempo disse ainda não ser hora de saber.

Nesse mundo tem tempo pra tudo.

E sua voz soava como a voz de Milton.

As onças são as divindades que sustentam a esperança quando não há mais esperança.

Você sabe que já vai dar duas e meia né?

Sei, termino de escrever isso aqui e vou.

Namastê.


VII.


Ao que habita a estrela cravada na pedra.

Só quem não deve, não teme.

E todos devemos.

Laroyê.


nuno g.

Toróró, 04/11/22

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