sexta-feira, 11 de agosto de 2023

os Senhores da Noite, os Guardiões da Sombra e os caminhos do Inframundo.

 para Night Day & Claudio Reis,


Nunca estamos sós.

Nunca andamos sós.

E existe sempre outra coisa acontecendo enquanto caminhamos.

Senhora da Lama: rogai por nós que recorremos a vós.

Seus dois filhos. O roxo de seus olhos. 

Os centros cerimoniais que a fúria de Tempo transformou em corações em ruínas.

Uma foto antiga, uma conversa à beira do rio sobre quando a vida se estilhaça.

E essa cegueira que nos ataca a visão aguardando que a Senhora das Doces Águas nos lave as retinas.

Poderia ser África ou algum rincão da Arábia.

Mas é essa cidade.

É esse quebra-cabeça de memórias que não se enquadram.

São esses desejos em perpétua guerra e esse arco nos céus.

Essas feridas que nos ensinam pela dor.

Essas serpentes que nos curam com veneno.

E a beleza que nos atravessa como um raio.

A voz das onças. A voz do vento. A algazarra tapuia.

Atravessando cada passo seu meu irmão.

Rumando ao Mucuripe onde mágoas encontram seu túmulo de salgadas águas.

Rumando à Pitanga onde tudo é queda e vertigem.

E todas as gentes que andam conosco.

Sonhando os sonhos que não pudemos sonhar.

Empurrando o Sol ao pino.

Ressuscitando a Lua das coxas sob os véus de Isís.

Acendendo as estrelas que nos movem enquanto estamos distraídos.

Em cada passo seu agora irmão.

Se estenda o meu chão sem chão.

E aquela promessa minha que só agora você pode entender plenamente.

Nunca estivemos sós.

A família que escolhemos foi escolhida antes de nascermos.

Ela caminha contigo.

Ela caminha comigo.

Ela nos leva sempre a outro lugar tão distinto do que planejamos ir.

A cidade que te asfixia agora é a mesma que asfixia os que caminham comigo.

Nunca nada esteve perdido.

E o Nada é um baú antigo onde se guardam muitas coisas.

Castanhas paraenses, marinheiros apaixonados e outras maneiras de filosofar e orar.

Teus pensamentos chegam aqui numa velocidade que me assusta.

E rogo à Senhora da Lama que me ensine mãos para te abraçar à distância.

Como me abraçastes enquanto eu enterrava Ian sozinho em Cruz das Almas.

Nunca esqueci o silêncio do coveiro se retirando.

Não havia ninguém mais naquele cemitério.

Eles vieram, dançaram, comeram, beberam e cravaram um espinho em meus testículos.

Era a única maneira de me fazer chorar.

Irmão, agora você tem uma estrela.

Isso não é fábula, não é lenda, não é história pra boi dormir.

Issó é caminho e horizonte.

Não estamos sós.

Nada está perdido.

Seu coração é maior que toda a dor do mundo.

E a estrada do Infinito aguarda o motor de sua moto.

Irmão, meu chão é seu chão.

Você não está só.

Tudo que acontece uma vez seguirá sempre acontecendo.

Caminho e horizonte.

Os sinos das igrejas de Belém dobram por ti agora.

Chovem flores brancas em meus sonhos.

E quando ouço um velho amigo falar de sua tristeza às margens do rio Pitanga.

Te escuto pronunciando o impronunciável.

Que a Senhora que nos fez da lama.

Apascente teu coração.

Lave teus olhos.

E faça nascer entre os cacos do teu ser a Flor da Aurora do Entendimento.


nuno g.

Toróró, 11/08/23 


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