segunda-feira, 7 de agosto de 2023

dicionário dos medos imaginários - 25 anos de poesia

A poesia é realmente a única coisa que importa. Ela sempre esteve aqui. Quando eu acordava e olhava para todos os lados e encontrava a morte em todos os lados era ela que me abraçava. De todas as formas ela me sussurrava é preciso seguir, você não tem o direito de desistir. A poesia me ensinou mais do que as milhares de horas de escola. Ela sempre me fez recordar que eu não tinha o direito de esquecer. Tudo havia sido destruído antes mesmo do meu nascimento e ela insistia procure ver o seu rosto antes disso. A poesia é realmente inútil. É algo que não serve para nada. É a última sobrevivente de um tempo em que o valor das coisas não era medido por sua serventia. Eu acordava e meus pais estavam mortos. Eu acordava e meu primo estava morto. Eu acordava e meu avô estava morto. Eu acordava e não havia nenhum sinal de ninguém que conhecera meu pai. Eu acordava e todos mentiam sobre a morte da minha mãe. O silêncio gritava no meu ouvido. Era um grito insuportável. Nada é tão ensurdecedor quanto o silêncio. A poesia chegava e dizia você não tem o direito de desistir. Nada fazia sentido. E a poesia dizia eu sou a beleza.  Ainda quando não havia beleza nenhuma ao alcance das mãos. Ela foi a única coisa que me acompanhou esses anos todos. Sempre me empurrando à vida. Sempre me impedindo de partir de vez. Sempre repetindo eu sou o sentido. Não importava se eu não podia mais acreditar em nada. Não importava mais se me era impossível lidar com os sentimentos contraditórios que me habitavam. Eu temia o sono. Dormir significava ter pesadelos e mais pesadelos e mais pesadelos. Só a poesia dizia siga. Tudo era sempre mais confuso do que eu podia suportar. As pessoas eram perigosas. O cansaço que se abatia sobre mim era imenso. As pernas tremiam. O corpo suava. A vida social era uma réplica exata do inferno. A poesia dizia não renuncie. Nada mudou. Tudo permanece idêntico ao que sempre foi. O que aconteceu algum dia segue sempre acontecendo. Vinte e cinco anos depois do Cacos de Cristo a poesia segue sussurrando no meu ouvido todos os dias você não tem o direito de desistir. Eu acordo e tudo segue tão vazio como sempre. Dois filhos mortos e uma montanha de estupidezes acumulada ao longo das décadas. Uma quantidade inumerável de mentiras acumuladas. A poesia me estende sua mão e me leva às margens do fogo. A poesia me estende sua mão e me leva ao fundo do rio. A poesia me estende sua mão e me leva à morada do jaguar encantado. A poesia me estende sua mão e me leva à aldeia dos tapuias mortos pelos invasores ibéricos. A poesia me exige seguir vivo. Ela me mostra minhas filhas brilhando como estrelas na escuridão e me grita siga, seja lá o que apareça adiante siga. A poesia é a própria vida. A doença e a saúde, a alegria e o sofrimento, o êxtase e a depressão, o amor e o ódio, tudo é passageiro e transitório. Só a poesia permanece. É por ela que me levanto da rede todos os dias. Engulo minhas amargas xícaras de café e sigo caminhando nesta terra. Com meus mortos. Com meus sonhos. Com minha solidão. Com minhas centenas de medos imaginários. Com os pesadelos que se arrastam há décadas nos meus porões. Com minhas filhas. Com minhas esperanças, minhas utopias e meus desesperos. É a poesia que vai abrindo meus caminhos, que vai me guiando de encruzilhada em encruzilhada. Foi por ela que eu vim. Foi por ela que eu cheguei até aqui. E é por ela que eu sigo. Sem direito à desistência ou à remota expectativa de chegar a ver algum dia o rosto anterior a meu nascimento. A poesia é o único caminho que eu conheço. Uma forma de vida. Minha condenação e a sólida pedra onde meus fundamentos deitaram raízes. Sem ela eu já estaria morto. Como meus pais. Como meu avô. Como meu primo. Como meus abikus. Como minha avó. Como milhares de pessoas que me cruzam o caminho e não conseguem esconder a letargia e o sonambulismo que as move. A poesia é minha promessa. De que aconteça o que acontecer não desistirei nunca. Meu vício, meu caminho, minha fé na escuridão. Isso é tudo. Estou mais velho, mais cansado, mais solitário. E só me resta seguir escrevendo e me embriagando com a luz dos olhos de minhas filhas faiscando como estrelas na escuridão. A poesia é minha herança, meu destino e a forma com que os astros me permitiram permanecer vivo por todos os dias que compõem essa minha breve encarnação. O resto é o mesmo inferno de sempre. Isso quer dizer que se sobrevive a tudo. E, muitas vezes, sobreviver é mais importante que todas as outras coisas que inventamos para nos distrair. Quando nada mais tem importância, a poesia segue ali ao seu lado. Quando todos foram embora e só restou a sujeira da festa ela ainda vai estar com você. Quando você percebe que tudo é mentira e pesadelo ainda sentirá a presença dela uivando em seu peito como uma onça no cio. Quando o seu corpo fraqueja e a sua mente parece tão perturbada e confusa que o abraço da loucura lhe sufoca, você ainda terá sua companhia e poderá escutar sua voz doce e delicada soprando Além!

nuno g.

Toróró, 09 de julho de 2023.

9 comentários:

  1. "É por ela que me levanto da rede todos os dias". Eu me levanto também Nuno, de toda a escuridão. O seu poema conversou comigo. Bjs

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  2. A poesia é alfa e ômega! https://lulupisces.blogspot.com/2023/08/ousadia.html

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  3. Ainda bem que a poesia extrapola as limitações da vida humana. Saudades, meu amigo. Obrigado por compartilhar.

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  4. Como é bom ler um texto que desperta nossos próprios medos e desesperos. Fazia tempo que não me lembrava dos meus. Obrigado, professor.

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  5. "A poesia é a própria vida" " Só a poesia permanece"

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  6. Sim, Nuno. É isso. Sem tirar nem pôr. Obrigada por isso e pelo email de fim de ano. abs e vamos em frente.

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