terça-feira, 30 de julho de 2019

A capoeira do Gomes ou regresso ao jardim dos homens comuns


Acenderam um primeiro fogo na capoeira atrás da serra. Nenhum deles sabia o nome exato daquela capoeira e a batizaram como sendo a capoeira do Gomes, era a marca do atum em lata que lhes serviu de primeira refeição naquela clareira onde fizeram aquele primeiro fogo e passaram aquela primeira noite sem nada que os separasse de um céu estrelado e infinito e misterioso e enigmático e cada um deles àquela noite pensou em tudo o que tinha vivido até então e em cada sentimento que lhes tocara sentir ao largo de suas vidas antes de finalmente chegarem àquela clareira e acenderem aquele primeiro fogo e passarem a noite em claro olhando aquele oceano de estrelas e todos ali sabiam que aquela não era uma simples noite qualquer como todas as outras e todos ali sentiam no mais íntimo de suas vísceras e entranhas e músculos e ossos e veias e dentro mesmo da gordura de seus tutanos e dentro de suas próprias medulas que nada mais seria como antes e todos olhavam em silêncio profundo e inesgotável aquelas chamas daquele primeiro fogo e todos pensavam com seus corações contritos e fervorosos que daqui a pouco o sol iria nascer e esse não seria um nascer do sol qualquer como todos os outros dias de sol que viveram em suas perambulações secretas pelos recônditos abismos e pelas crateras insondáveis pelas quais passaram nesses anos todos em que estiveram vagando por sobre essa terra e pensavam que nunca souberam nem chegariam a saber por quê raios de coisas vieram parar aqui neste planeta a carregarem consigo essa estranha veneração pelos abismos e pelo verde das folhas e pela alegria dos bichos e pelos sonhos e todos os mundos loucos que se abrem e se revelam nos sonhos incompreensíveis que todos nós carregamos conosco e as legiões de fantasmas que nos acompanham em longos cortejos que emergem dos tempos passados e dos tempos anteriores aos tempos passados e dos tempos anteriores a esses tempos anteriores trazendo consigo estandartes com símbolos tão antigos que nada na memória daqueles homens lhe permitia capturar o sentido que tiveram algum dia para os ancestrais de seus ancestrais que os gravaram em couro pelos campos abertos destes sertões e pelas várzeas que separam estes sertões do mar esverdeado e das dunas de areias brancas e das falésias avermelhadas e dos urubus bailarinos que se alimentam de peixes que a ressaca do mar vomita nas areias da praia. A noite foi fria e aquele primeiro fogo foi bem mais que providencial, ainda que todos eles estivessem absortos o suficiente em seus próprios transes e mergulhados com tal intensidade num ritual pessoal de rememoração que em nada lhes atingia o frio e o fogo lhes servia mais que qualquer outra coisa de guia e condutor na longa viagem pela teia de ciclos infindáveis de mortes e nascimentos e outras mortes e outros nascimentos e outras mortes e mistério e sofrimento e lama e por tudo o mais que parecia definitivamente perdido e oculto na passagem inexorável do tempo e agora sim eles entendiam que o tempo guardava sim suas dobras e nessas dobras repousavam muitas sementes de coisas que até aquele momento pareciam esquecidas em algum insólito rincão da vasta e efêmera eternidade em que suspenso, como uma jangada do litoral leste da província do Siará Grande, se encontrava o ponto minúsculo e insignificante do efêmero instante presente. Ventou muito enquanto aqueles homens atravessavam com braçadas fortes as camadas sedimentadas de areias de águas e de tempos: as grandes porções geográficas de dor, mistério, lama e sofrimento com suas aprazíveis ilhas de alegria, gozo e serenidade. Ventou muito, mas ninguém deu nenhuma importância a isso. Estavam todos em transe e quando o sol os arrancou com violência do transe em que estavam já não eram mais os mesmos. Tiveram que trabalhar duro. Levantar as choupanas, cobrir com palhas os abrigos clandestinos e varar as madrugadas recebendo as armas e os alimentos e as flores que lhes chegavam quando a escuridão se fazia absoluta e cobria tudo com os seus setecentos véus. Não se olhavam rosto-a-rosto, nunca. Não queriam saber nada uns dos outros, nada. Isso seria perigoso demais. Era a lei da guerra. Todos ali sabiam que na tortura toda carne se trai e não saber de nada era a única medida de segurança eficaz para evitar o infortúnio das traições. Esqueceram os próprios nomes e as datas dos próprios aniversários. Aprenderam a beber água diretamente do rio. Aprenderam a caçar, a pescar e a ler os sinais celestes. Foram descobrindo dentro de si mesmos uma nova humanidade e uma nova maneira de seguir caminhando sobre a terra e um novo jeito de sentir e de comer e de trepar e de executar cada gesto do corpo e de olhar e de assimilar cada cheiro novo e começaram a aprender a falar com as pedras e a escutar as pedras, a falar com o rio e a escutar o rio, a falar com a noite e a escutar a noite e começaram a entender que cada um deles era só uma ínfima parte de uma gigantesca teia de seres vivos interligados uns com os outros por uma enigmática e gigantesca teia de afetos e de energias e que tudo que acontecesse com cada um deles afetaria diretamente a todos eles e às pedras e ao rio e à noite e ainda assim sabiam que não deveriam olhar rosto-a-rosto nem saber o nome nem a data de nascimento nem qualquer outra coisa que seria caguetada sob a violência covarde dos instrumentos de tortura espalhados como armadilhas nas rotas incertas dos seus destinos. Comeram atum em lata e nomearam aquela capoeira com a alcunha de capoeira do Gomes. Acenderam um primeiro fogo e desceram em botes precários de madeira a cachoeira das eras e viram coisas de outros tempos e ouviram vozes de outras épocas e sentiram cheiros de mundos desconhecidos e devoraram alimentos que nunca haviam vistos e se deram conta que eram feitos de matérias e elementos que nem imaginavam serem passíveis de existência e caminharam em círculos em volta do segundo fogo e caminharam em círculos em volta do terceiro fogo e assim por diante até que perderam a conta e já todos os fogos eram um só fogo que ardia e queimava e transformava em pó tudo o que precisava ser reduzido à cinzas e eram muitas as coisas que clamavam por regressar ao seu estado originário, à sua condição de cinzas. Mas o fogo era também algo perigoso, sua fumaça poderia denunciar o acampamento, poderia trazer ao coração daquela irmandade os instrumentos metálicos de morte e de tortura, poderia trazer a ira e a impiedade e a cólera e o delírio dos obscuros. Os processos corriam seguindo ritos sumários, a cegueira e o rigor agiam de maneira implacável e as execuções se converteram em rotina e os deuses que cuidavam da justiça foram ofendidos, foram insultados, foram condenados ao exílio perpétuo e desde o exílio seguiram trabalhando e mantiveram vivas suas esperanças e redobraram suas forças e aprenderam coisas que não sabiam e se lembraram de outras que já haviam esquecido e viram vagalumes piscando e piscando e piscando e ouviram onças cantando e cantando e cantando e sentiram as gotas grossas da chuva molhando seus cabelos molhando suas pálpebras molhando as palhas de carnaúba com que cobriram o corpo e foram planejando centenas e centenas de pequenas e delicadas insurreições e foram acendendo milhares de centelhas de pensamentos de revolta e de angústia e zilhões e zilhões de faíscas de sonhos febris de amor e de serenidade enquanto as pedras deseducavam cada célula de seus corpos biológicos e cada sentimento de suas estruturas psíquicas e cada espécie do ecossistema próprio que servia de habitat às suas indevassáveis individualidades. Tudo isso se passou atrás daquela serra, dentro daquela neblina. O mês era o de agosto e chovia muito. A capoeira eu sei bem onde fica, mas não posso te levar lá. No meio dela, enterrado a sete palmos de fundura, tem uma lata enferrujada de atum. Isso é tudo o que me foi permitido te revelar hoje. Morte, mistério, dor, sofrimento, lama e o heroísmo e as pequenas glórias de homens comuns que decidiram abandonar tudo que já não fazia mais sentido e se reunirem em volta do fogo e escutarem as línguas da pedra e do fogo e que foram levados por essas línguas através de ruínas e de paisagens decrépitas e puderam assim sobreviver àqueles tempos de violência e de instrumentos metálicos de tortura e de traições gratuitas e de bizarras vulgaridades. Aqueles homens nunca mais seriam os mesmos. Eles estavam definitivamente alterados. Haviam sido arrancados de suas órbitas e agora dançavam com a grande serpente e agora sorriam como crianças e agora sabiam que não haveria mais volta e que o planeta seguia girando e que eles estavam soltos na via láctea e suas raízes e âncoras haviam sido decepadas para sempre pela guilhotina implacável do tempo. Isso é tudo o que me foi permitido te revelar hoje. Isso é tudo. Essa é a parte que me foi permitido te contar sobre o caminho de dor, sofrimento, lama e pequenas glórias e pérolas de serenidade que percorreram aqueles homens em sua longa jornada de regresso ao jardim dos homens comuns. Adiós.

nuno g.
Cachoeira, 30 de julho de 2019.

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