quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Pelas mãos dos ensinamentos ofertados pelo haxixe a um filósofo alemão

   Desistir no dicionário é ausência. Larissa dorme. Assucena também. Alice já foi à escola. Dylan Ortega a aguarda com uma pergunta insistente: ¿cuál es la comida típica de Brasil? Uma chuvinha vai despertando a cidade. A Marcelo Guerra só interessa o Maracanã. Ainda não sabe, mas o futebol e a ciência são metamorfoses modernas do antigo espírito religioso. O destino mais nobre da crônica é se converter em canção. E se algum dia chega a ser executada em jardins de infâncias e funerais se realizará plenamente enquanto gênero literário. Discordo em tudo de Vargas Llosa, mas sou obrigado a reconhecer que aquela guerra era mesmo a guerra do fim do mundo. E, além disso, concedo, sem vacilação, meu perdão à ignorância de quem não consegue ver que ela se estende sobre o berço esplêndido de um presente onde tudo se move em direção ao esquecimento. Os serenazgos repetem sem saber, os movimentos das algas marinhas: vão e vêm, vêm e vão, sem saber por que, sem saber pra que, sem saber de onde, sem saber pra onde. A verdade é que aquela guerra nunca teve fim. Os olhos assustados da criança e do velho seguem olhando fixamente para o antiquado fuzil do soldado republicano. Dadá segue lavando os ossos de Corisco nas praças de nossas entediadas metrópoles. A urgência de escrever sobre a teoria da história subjacente à composição de Yo, el Supremo me persegue como o passado recente persegue nossas melancólicas e atormentadas sociedades. São tempos de decomposição e de abruptas e vertiginosas mudanças. Uma vez mais é preciso alterar tudo para que o mundo permaneça exatamente como sempre foi. O problema das formas narrativas é demasiado importante para permanecer nas mãos de especialistas. Assucena já foi à escola, esquecemos de levar a fotografia. Não sei quais sonhos povoam o sono de Larissa agora. Entre Arguedas e Cortázar desenham-se armagedom e apocalipses. Hoje, outra vez o fascismo estará sentado no banco dos réus. Seja qual for o veredito sua vitória é tão certa quanto a miséria que nos define. Restam catorze minutos antes de minha terapia. Uma lágrima escorre pela parede, sua discrição impressiona a onça que a espreita. A diferença entre vingança e justiça é ainda mais sutil quando cinco séculos pesam sobre cada mínimo gesto que se executa. Entender a história é tentar entender o que não pode ser entendido. Por essa razão é tão difícil escrever uma crônica, esse gênero escorregadio que durante décadas esteve aprisionado nas folhas de embrulhar peixes. A poesia é para amadores, por isso tinha razão Arguedas quando afirmou que o exercício da escrita não era exatamente um ofício. Ele sabia que, entre nós, ofícios são sinônimos de ganha-pão. Sigo obcecado por reescrever meu dicionário. Aprendo com Assucena enquanto ela tenta pegar pássaros e esquilos no Campo de Marte. Poetas estão sempre insistindo em alcançar o inalcançável. Por essa razão, o verbete sarjeta está na mesma página dos verbetes amor e desespero. E nenhuma importância tem o fato de que essas palavras iniciem com letras distintas. Afinal de contas, não é questão de palavras ou de letras. A semântica é demasiado importante para ficar clausurada no gélido coração dos gramáticos. Através dela nossos mortos falam com nossos filhos. Há um céu enterrado neste chão. Assim como existe um sangue que habita a letra e uma carne que respira no vácuo dos ossos. Ontem um ministro do supremo tribunal acendeu um túnel no final da luz. Quem espera nunca alcança. Cavalos galopam sobre a relva que amanhece antes de nascer. Meu rosto é exatamente o mesmo do ano em que a morte quase nos tragou: devora-me ou te decifro. De abismos não se escapa, aprende-se sua linguagem. O amor ao escuro e à insônia é uma dádiva e minha gratidão por sua existência é imensa. Sonhei outra vez com São Miguel e, muito embora nada recorde do sonho, posso narrá-lo com precisão e destreza. Havia uma montanha maior que o mundo e uma criança aos prantos aos seus pés. Havia um assassino onipresente e onisciente. Na sua espada estava escrita à mão e carvão a palavra milagre. Havia uma prisão e um desejo de conhecê-la por dentro. Havia uma luz muito escura e muito antiga. Havia um grito idêntico ao silêncio onde crescem as raízes da vida. O resto não posso dizer. Não quero dizer. Não devo dizer. Isso seria como devorar o mesmo coração duas vezes. Como apunhalar Judite pela milésima vez. Profanar o silêncio sagrado de Hermenegildo e todas as coisas que ele me ensinou sobre a forma correta de pronunciar o não. É um milagre que a linguagem tenha rasgado minha pele, me ensinado a ver e ouvir as cores e os sons de mundos que, por não mais existirem, são os únicos caminhos à encruzilhada entre a esperança e as promessas perdidas de redenção. Las comidas típicas de Brasil son feijoada y maniçoba - o que interessa no futebol é que ele nos permite seguir acreditando que Dadá não lavou à toa os ossos de Corisco. A guerra segue: dentro e fora de nós. Às vezes a história nos indica que abraçar a morte é a melhor maneira de dizer sim à vida. A lágrima segue escorrendo pela parede. Agora sim, o verde do limbo se revela: olhar para trás segue sendo a melhor maneira de ver o futuro. Os antigos que me ensinaram isso estão longe, mas suas vozes me chegam de muitas maneiras. Existe uma flecha que sabe a trajetória que conecta o ódio ao amanhã - era isso o que o sonho queria dizer quando me permitiu tocar a lama roxa e comer o chão da minha infância com as próprias mãos. Enquanto houver frio e poesia haverá crença que as coisas possam se reconciliar com seus nomes, ainda que para isso as águas turvas tenham que aceitar a insana violência acumulada em suas margens. Tempo é uma divindade que não suporta o reflexo da imagem de sua própria face: crônicas versam quase sempre sobre as formas como as árvores podem multiplicar significados. Suspeito e pressinto que entre folhas, frutos e sementes existe algo que um feiticeiro poderia nomear sorriso discreto ou lunar resignação. A cidade desperta o sorriso da chuva. Feiticeiros são seres que antecedem e desconfiam de qualquer definição. Crônica é o gênero que brinca com ossos e cinzas e que afirma o não como perigo, voracidade e revelação. Nada mais me é permitido dizer além do que já foi dito.


nuno g.

Lima, 11 de setembro de 2025.

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