terça-feira, 9 de setembro de 2025

a arte de honrar os lugares onde nunca estivemos

         Corazón serrano na rádio da padaria: 9 bolillos de queso y un vaso de chicha morada! Ainda é domingo e haverá praia, lasanha e sexo. A voz de um rio distante me pergunta sobre as bibliotecas incendiadas. Não sei o que dizer. Teria que falar outra vez sobre o punhal atravessando o corpo de Judite, o silêncio insondável de Hermenegildo e a ausência inquietante de Adélia. As pessoas aqui traçam na face o sinal da cruz ao sair de casa, esqueceram os ensinamentos das aulas de catecismo ou preferem ignorar que esse gesto é insuficiente para afastar a luz dos demônios que as atormentam quando despertas. O rio infinito insiste em me perguntar sobre as bibliotecas incendiadas como se fosse possível revelar qualquer coisa razoável sobre o proceder de nossos ancestrais. As pessoas esqueceram que são réplicas de si mesmas e que todos temos o poder de nos desdobrarmos através do tempo e do espaço. O fogo perpetua até o indesejável. O fogo perpetua principalmente o indesejável. O fogo acende, ante nossos olhos, todos os artefatos do museu do irremediável. O que interessa antecede ao nascimento de qualquer nome, à violência que é a imposição de qualquer nome. Corazón serrano na rádio da padaria: un café pasado y una empanada de pollo! Não consigo esquecer as bombas que destruíram o Caldeirão, nem tampouco aquele homem que antes de mim veio a esse país e desapareceu sem deixar rastro. Dona Rosa, que está em algum lugar onde nunca estive, levou consigo as razões dos incêndios que transformaram em cinzas as bibliotecas de José e Antônio Gonçalves. O fogo conserva as vozes e seus tempos. O fogo tem mais artimanhas que a morte. Exílio é uma palavra muito estreita para definir a peregrinação de quem sonha com serpentes e enigmas. A arte de honrar os lugares onde nunca estivemos é semelhante à arte de honrar os lugares onde sempre estivemos. Em ambos se incendeiam bibliotecas no afã de apagar o que lhes incomoda, mas o fogo reescreve com a verve das cinzas os signos incendiados. Alice despertou de mal humor, Assucena também. Larissa sonhou com minhas tias: novenas, folhas de chá e as doenças de minha vó. A voz dos lugares onde nunca estivemos pediu a Bruno que rezasse uma Salve-Rainha. Talvez fosse dona Rosa tentando me mostrar que existe algo próximo à misericórdia no enigma que habita a poesia. Ou talvez fosse apenas a súplica de um rio, distante e infinito, exigindo mais coragem ante a demoníaca luz onde brotam as flores e as lágrimas que anunciam a chegada da primavera.


nuno g.

Lima, 07/09 de setembro de 2025. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário