domingo, 13 de julho de 2025

entre o Sétimo e a Serpente

    Todos dormem. Aconteceu a tanto tempo que chego a duvidar da realidade do ocorrido. Suspeito que aquela imagem na praia seja somente uma imagem produzida pelo labor incansável de algum daimon arcaico. Entretanto, ainda ouvir o som do mar traz certa tranquilidade e alguma certeza sobre a veracidade dessa memória náufraga. Algo daquilo me resguarda agora contra o pavor que me habita. Onde o medo e o perigo também o caminho. Não havia ninguém além do daimon e da serpente. E coisas muito antigas trabalhavam sobre seus corpos fundando um horizonte insuspeito. O depois revelaria muito sobre como se abrem caminhos nos corpos e nos tribunais. A paranoia, histriônica e ébria, à sombra dos coqueiros, zombava da pressa e da ânsia que dominavam a fúria do daimon em êxtase. A serpente se esgueirava entre os raios do sol como areia entre dedos ou desejo fugaz exposto ao juízo de valor do inquisidor supremo. Da água salgada passaram à água doce. A pressa do daimon e o tesão paciente da serpente. Caleidoscópio de estrelas, ressentimentos vagos, percursos oblíquos. Foi a muito tempo. Nada naquela praia os recorda. Talvez o monstro que os acompanhava, mas do monstro já nada se sabe. Há quem diga que morreu na Nicarágua ou que, para sempre, se perdeu em alguma ruína pré-hispânica da Guatemala. Seria uma boa história sobre como os corpos podem nos levar a cruzar tranquilamente as fronteiras, mas a sofreguidão do daimon não permitiu que assim fosse. Embora seu impulso feroz em direção à carne tenha encerrado a noite dos tribunais e acendido pequenos vaga-lumes nas partes íntimas da serpente. Sobre esta nada se pode dizer, apenas que segue reinando em algum lugar entre o silêncio e a ausência. Vez ou outra regressa em sonho e semeia. Em seguida, desaparece como desaparecem todas as coisas que acontecem nas noites dos carnavais. O medo e o perigo seguem pulsando. Os caminhos seguem se abrindo. Onde existe carne e ferida haverá sempre chão e luz, ainda que tudo esteja demasiado escuro e toda a realidade esteja ameaçada por uma única imagem. As coisas que eu poderia dizer estão interditadas para sempre. Apenas os arqueólogos poderão falar livremente sobre elas. Sobre as ruínas, os ossos e os pequenos sussurros soterrados nas camadas de Tempo que se acumularam desde aquele dia em Mangue Seco. Todos dormem. O frio vai vencendo a guerra inexistente. A memória pulsa e fabrica insetos de estranhíssima arquitetura. Naufragar é sinônimo de ousadia, embora aos olhos de quem julga de longe assemelhe-se a insensatez e resignação. Houve amor e fúria. Houve uma boca suicidando-se em alheia carne. Houveram outras coisas que não posso narrar. Quem sabe um dia a serpente nos brinde com sua versão. Ou o daimon encontre a forma exata de descrever sua noite, seus calabouços e o fogo que alimenta sua própria destruição.


nuno g.

Lima, 13 de julho de 2025. 

Um comentário:

  1. Fiquei chapado só de clicar aqui. Gracias, traficante!

    https://epiphyllumlogos.blogspot.com/

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