sábado, 5 de julho de 2025

aboio

 para Eliana Gonçalves,


    Envelhecer é deixar para trás toda e qualquer ilusão que tenha sobrevivido ao transcurso do tempo. Ainda estou no deserto e confio apenas em meus pés e meus joelhos para seguir a travessia. Embora meus pés estejam demasiado inflamados pelos espinhos do passado e meus joelhos sigam em permanente estado de hemorragia. A noite é longa e apenas as estrelas me acompanham. A noite é demasiado longa e os rios estão avermelhados pelo sangue derramado através dos séculos. O esquecimento seria uma dádiva, mas nunca uma solução. Me demorei tempo demais em lugares onde nunca deveria ter estado e tardei excessivamente em caminhar em direção aonde sempre estive. Ouço o cântico noturno e sombrio das onças. Avisto a imensidão do paredão calcário ante meus olhos. Envelhecer é permitir que se dissolva tudo que sempre clamou por dissolução. E são muitas as coisas que nasceram para se dissolver.  Estar só seria um alívio, mas não uma solução. A túnica inconsútil me abriga e me protege de mim mesmo. Lá fora, tudo aspira a transmutar-se em algo. Ainda quando já esteja nítido que apenas o nada deveria nos guiar. Com serenidade e sabedoria. Sem desespero. Sem angústias desnecessárias. Com firmeza e resolução. A noite é imensa e nela tudo se destina a encontrar sua resolução. O resto é dedução prematura. Indevida conclusão. O inexistente me abraça. O mundo ameaça devorar meu envelhecimento precoce. Conservo a audácia de uma juventude onde cheguei a acreditar que havia algum sentido em estar aqui. Neste lugar que me aprisiona. No interior deste pesadelo infinito e labiríntico onde todas as areias são inexoravelmente movediças. Não haverá beijos neste inverno. Apenas uma paz fria e uma inesperada quietude que nenhuma similaridade guarda com as bestiais formas de consolação que me apavoram. Algo insiste em cair e nas minhas sobrancelhas se multiplicam borboletas e mariposas de inúmeras cores e cintilâncias. É tarde. Sempre foi tarde. As distâncias e os abismos se acumulam no caminho. Amar a noite. Amar o silêncio. Amar as estrelas. Escutar o cântico das onças atravessando o vento que possui nome. Isso é tudo. O resto deve, definitivamente, ficar para trás.


nuno g.

Campo de Marte, 05 de julho de 2025.

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