sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Regresso ao Sonho, ao Rio, à Imensidão.

    Na imagem rio a presença sorrateira da imagem veneno. As feiticeiras mãos que traduziram águas e venenos em imagens ocultas sob o travesseiro desarrumado da noite passada. Convém não entrar em águas envenenadas, mas o conveniente nunca me interessou. Apenas o necessário guarda importância. Vallejo morreu de fome em Paris e hoje carrega seu país nos ombros. Carrega o peso vivo do seu país nos ombros. Nunca irei à Paris, a menos que na companhia de Isidore Ducasse, o conde de Lautréamont. Suspeito que existe mais vida em qualquer parque de Lima ou praça de La Paz que em toda Paris. Todo poeta carrega um mundo sobre os ombros. O peso do mundo e o peso do amor que são, em última instância, a mesma coisa. A voz de Carol ecoa aqui, a morte se faz sentir e nenhum temor a acompanha. Uma criança vende chocolate coreano no semáforo, estamos na América Latina e aqui todos precisam sobreviver a si mesmo todos os dias. O ancoradouro flutua entre automóveis enferrujados. Preciso entrar e fixá-lo às margens outra vez. Apesar do veneno. Apesar da advertência de Luís. Apesar da voz de Carol. Assucena vai à escola. Alice surfa nas águas geladas do pacífico. Da cozinha vem o cheiro de bife frito. As cores da esperança estão impressas na Wiphala. É preciso não esquecer que todo poema deve necessariamente ter uma intenção. Algo que organize a dispersão natural dos elementos que o constituem. Os de Vallejo tinham a intenção de sustentar o peso vivo do seu país. Esse pretende converter imagens em caminhos, instalar encruzilhadas desde onde se pode ver as coisas sob muitas perspectivas distintas, deslocar rígidos minerais que estão aqui a muito tempo. Mas o que é todo deslocamento senão uma forma sutil e delicada de aproximar-se da morte? Mas o que é todo poema senão uma maneira inútil de manter acesa a ilusão da eternidade e de cumprir a impossível tarefa de cristalizar a fugacidade de toda experiência autêntica? O rio se desloca e com ele se deslocam todos os venenos. Dentro dos sonhos existem muitos rios e venenos, todos eles fundidos em um só. Os automóveis enferrujados e esverdeados pelo lodo deslizam sobre a superfície das águas como as pessoas das cidades grandes deslizam pelas ruas num movimento sem sentido e desorientado. Não há bússola. Não há roteiro. Estamos condenados à liberdade como sussurrou algum dia aquele filósofo de Paris. Mas o que vem de Paris não me diz nada. Não faz qualquer sentido. É da ordem das coisas convenientes, ou seja, opostas às coisas realmente necessárias. A voz de Carol. A morte. A ausência de temor. O maldito furúnculo que me rouba a paz. Assucena chora. Assucena sorri. Canto contra todo vento que não anuncie tempestade. Todo fascismo contemporâneo se fundamenta na eliminação de horizontes históricos. Em evitar a experiência dos velórios e em converter todos os seres em estátuas de sal, em seres unidimensionais incapazes de suportar as águas das chuvas e seus doces venenos. Estou mais longe de mim mesmo, sigo caminhando na escuridão, traço cartografias improváveis quando deveria estar envolvido com etnografias impossíveis. Quando caminho me concentro em tudo que a distração dos transeuntes abandona ao caminho. Gosto do frio. Estou a anos sem ingerir álcool. Mas sigo fermentando, destilando e curando ressacas que não se esgotam. Gostaria de dizer que chegamos ao fim e que já pressentimos as alegrias que costumam suceder a todos os fins. Mas não creio em alegrias, nem em fins. Menos ainda em sucessão ou qualquer outra forma racional de organização das temporalidades. Somos menos e habitamos o nada. Como os personagens de Henry Miller ou as duas damas de respeito que perambulam pelo Panamá em busca de algo que não sabem precisar. Todas as definições perderam sentido. O medo, a morte, o imaginário, as igrejas de Paris. Apenas o livro de Nicanor Parra sobre a mesa. Junto com saladas e bifes fritos. O ancoradouro segue flutuando no rio. Os automóveis verdes também. Apesar do veneno só me resta entrar na água e realizar o que é realmente necessário. Uma senhora pede uma esmola, aqui não é Paris. As imagens são mais interessantes que qualquer verdade. A noite é imensa. Saio do rio, bebo o veneno, desperto do sonho e caminho lentamente em direção à imensidão.


nuno g.

Lima, 22 de agosto de 2025.  

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