quarta-feira, 6 de agosto de 2025

as flores do inverno

     Deus é um bom homem - Hermenegildo estava mais velho. A biblioteca acesa em suas mãos irradiava o fogo dos tempos mortos. Não havia lugar para novos assentamentos e a estrada parecia particularmente perigosa. Do outro lado, uma suspeita crescia e todos os olhos se curvavam ante o desconhecido. Deus é o outro nome da liberdade - Hermenegildo estava mais velho e algo nele recordava vagamente Adélia. A biblioteca se estendia pelos imensos corredores da terra e as vozes do mundo regressavam sutilmente. Quase se podia ouvir outra vez os mortos. A cruz de caravaca repousava no átrio. Um cão hidrófobo passeava pela noite. Deus é recusa e negação - Hermenegildo estava irreconhecivelmente mais velho. Todos seus caminhos agora se revelavam como marcas em seu corpo. O dia foi amanhecendo. A estrada seguia particularmente perigosa. A lembrança de Adélia nos protegia de nós mesmos e abraçava fervorosamente uma solidão irrequieta e triste. As portas do calabouço não poderiam ser fechadas novamente. Apenas os pássaros por testemunha. Adeus ao frio e à todas as veredas que sua presença nos trouxe. Uma grande montanha nos separa de nós mesmos. Deus é um abismo que já não existe mais - Hermenegildo falou em língua que desconhecíamos. A fera da catedral voltou a rugir e a estrada se revelou ainda mais perigosa que de costume. Adélia moveu as mãos no ar como se escrevesse um poema. Deus é uma prolongada e furiosa dor de dente e ausências - Hermenegildo estava mais velho quando se despediu dos pássaros e cavalgou de regresso ao rio. Onças em procissão lhe seguiam. Gaviões sobrevoavam seu galope. Deus é a forma do Nada em noites de lua. Apenas a frágil luz de uma vela nos olhos dos pássaros e um fogo assustado uivando na imensidão. Deus é um poema esquecido na biblioteca abandonada - um vento fez dançar as folhas de tempo. Amanheceu. O sol derreteu a sombria alegria da noite e tudo o que nunca chegou a se realizar se dissolveu como as areias com que nossas mãos cobriram o corpo do Abikú. Adélia sussurrou algo delicado e a vertigem nos cobriu com seu manto de estrelas. Apenas os pássaros, a chama e o frio testemunharam o declínio e o ocaso da fonte de todas as promessas. Deus é um corpo onde depositamos todas as nossas capacidades de dizer não. A cruz de caravaca. O cão hidrófobo. O átrio. A fera da catedral. Rebeca ofereceu a imagem de seu seio aos olhos da multidão. Adélia sorriu. Hermenegildo nos abandonou à própria sorte e solidão. Deus é um subterfúgio, uma estrada escura e a mais sublime forma de expressarmos a severidade de nossa própria condenação.


nuno g.

Lima, 06 de agosto de 2025. 

Um comentário:

  1. A linguagem poética intensifica a sensação de fim, perda e o eterno retorno do desconhecido.

    Excelente

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