domingo, 16 de novembro de 2025

O eremita abraça o mar imaginário

 

Até aqui cheguei.

Seguindo cada signo de cada pesadelo.

Observando as cores das escamas da Serpente.

Traduzindo as línguas desconhecidas em que o Mago pronunciava o impronunciável.

Até aqui cheguei.

Estudando a memória de cada passo e a direção dos ventos.

Seguindo com as asas que o Mundo me ofertava à luz das nuvens de vagalumes.

Até aqui cheguei e já não há mais para onde ir.

Não há mais como fingir que sou o mesmo que antes.

Que posso manter conversações desconexas.

Que posso ser sociável e simpático.

Não estou mais aqui.

Depois de tudo finalmente pude reconciliar o irreconciliável.

Abraçar o mar e todas suas escamas.

Abraçar a Serpente e todos os seus venenos.

Terminei por transfigurar-me na montanha que me salvou de mim mesmo.

E já não sinto necessidade de qualquer diálogo que não seja imaginário.

Até aqui cheguei.

Com meus suicidas, meus pistoleiros, meus filhos não-nascidos.

Com minha borboleta preciosa e minha flor sertaneja.

Nunca estive tão próximo do canto das onças.

Nunca estive tão próximo de ser esse cântico que por toda a estrada esteve comigo.

Nunca estive tão próximo de amar o que chamam de solidão.

E nunca foi tão desnecessário estar junto à multidão.

Tudo se desfaz com uma velocidade impressionante.

Os arcanos menores me trouxeram até aqui como os anjos levam as orações enlutadas.

Como os condores levam as almas dos mortos.

Como meu avô levou a dor e os ossos até o túmulo de azulejos azuis.

É domingo, mas já nada importam os dias da semana ou os meses do ano.

Há plantações de uvas e cheiro de vinho transbordando deste poema.

Que não é um poema, mas a densa descrição de uma sina.

Que não é um amontoado de versos, mas a fogueira onde arde e se revela um destino.

Até aqui cheguei.

E trago comigo a velha e amada mochila cheia de esterco e sonhos.

As marcas de todos os delírios convertidos em cicatrizes e espalhados pelo meu corpo.

Que já não é mais um corpo e sim uma carcaça que envelhece.

Na mesma desmedida da impossível descoberta que só nas coisas inúteis a plenitude é alcançável.

Meu barco pirata segue ao mar.

Mareio, vomito, embriago-me de náuseas e alucinações.

Avisto as ilhas onde se recolheram os poetas de todas as épocas.

Essas precárias estações onde os arcanos menores guiam os cegos.

Até aqui cheguei.

Agradecendo as mutilações que me afastaram da morte.

Relendo as cinzas e as lembranças dos incêndios que me alimentaram. 

Como o Senhor alimenta pássaros e peixes no deserto onde não há morte.

Até aqui cheguei. 

E agora só me resta esperar e narrar como atravessei o precipício entre o Nada e o Nada.

Como amaldiçoei toda a desumanidade das mãos que me amordaçaram.

Como me livrei da violência do mais prolongado silêncio.

Como chorei ao ver o Senhor alimentando peixes e pássaros no deserto onde não há morte.

Envelheci, sangrei e aprendi que o excesso de chão é apenas um momento que antecede a chegada.

Meu barco segue no mar. 

E os piratas que nele cantam, dançam e bebem.

Estão cansados demais para regressar.

Eles agora conhecem as montanhas e trazem no corpo o cheiro das montanhas.

Já sabem que a morte não existe e já nada mais lhes resta senão morrer no mar.

Eles agora estão esgotados.

Nada mais têm a aprender ou ensinar.

Já não lhes importa se alguém se vê triste ou alegre.

Toda nossa existência agora se resume a manter a incandescência de estrelas que não existem mais.

E nossa última alegria é olhar o eremita abraçar o imaginário mar.


nuno g.

Lima, 16 de novembro de 2025.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário