sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Poema de abril

Todo se inicia, y todo termina en amor.

Enrique Verástegui.


Recém me chegou esse poema encharcado de abril suando por todos os poros.

Não sei por quais caminhos terá se perdido entre as movediças fronteiras das estações do ano.

Nem por quais razões terá extraviado essa correspondência do além.

Talvez pela imperícia dos mensageiros ou por mera distração do destinatário.

O esperava com a mesa posta e farta.

Repleta de ervas mágicas e conjuros de toda sorte.

O esperava com as mãos cheias de amor e ansiedade.

Recém me chegou esse poema composto com ilusões, tristezas e esperanças.

Com passos leves e desconfiados que se assemelham aos passos de um filho pródigo que retorna ao lar que abandonou sem deixar qualquer aviso ou mensagem.

Batendo as asas como um passarinho assustado que regressa ao ninho de onde nunca desejou ter partido.

Como um vento arrancado ao útero de um vulcão.

Recém me chegou esse poema esvaziado de lembranças e recordações.

Um poema encharcado de abril e de vazio.

Correndo como um esquilo entre milhares de esquilo.

Sorrindo como sorri um coelho perdido num campo de cenouras.

Esse poema fala sobre a condenação de Sísifo e Prometeu.

Nos recorda que a busca pela liberdade nos conduz a novas amarras e prisões.

Nos recorda que não nos resta outra coisa senão seguir empurrando pedras montanhas acima.

E que a diferença entre sonhos e pesadelos reside unicamente nos juízos de valores que estabelecemos.

Não sei quem escreveu este poema.

Embora desconfie que somente eu poderia tê-lo escrito.

Este pressentimento vem da saudade que sinto daquelas tardes na avenida Tristão Gonçalves.

Este pressentimento vem das intuições que ele carrega como se fosse uma carga de prata.

Este pressentimento vem da consciência desgarrada da história que faz florescer em meio à tempestade de minha inércia e pessimismo.

Este pressentimento é o mesmo pressentimento das árvores ante o insondável inverno.

Este pressentimento é uma equação matemática extraída das alucinações dos anjos.

Recém me chegou este poema que guardei no bolso como se fosse um grilo atordoado.

Um grilo espavorido no meio de uma cidade absurda mergulhada em névoa e neblina.

Apesar de tudo este poema grita.

Apesar de tudo este poema ama.

Apesar de também sussurrar que sempre foi tarde e que todo esforça é inútil.

As tardes da avenida Tristão Gonçalves não existem mais.

Só me resta a imagem do vale do rio das onças que colhi no cume da cordilheira dos andes.

Só me resta esperar que este poema tenha fome e sede outra vez.

E que devore todas as ervas mágicas e os conjuros que à mesa lhe esperaram todos esses meses.

Como uma criança espera que o mundo a receba com amor.

Como um cadáver espera que a terra lhe devolva à condição de cinza.

A poesia é qualquer coisa menos um jogo,

mas se fosse um jogo seria certamente um tabuleiro de xadrez.

A poesia é o caminho pelo qual encontramos deus em nós mesmos.

E nele a morte e todos os segredos que nos confia a morte.

Apesar de tudo este poema chegou.

Suado, cansado e abarrotado de pressa e esquecimento.

Apesar de tudo ele está aqui.

Como uma doença que guarda o mistério da própria cura.

Como a voz de alguém que antes de se suicidar apagou a luz da sala e do quarto.

Como uma estrela que ainda brilha depois de extinta.

Como o sopro de um tapuia ou o demônio da cronologia, essa criatura perversa e insensata que nos encarcera no labirinto do qual acreditávamos ter escapado.

A maldade, assim como a bondade, encontra-se em todos os lados.

Ao final das contas são somente modos da nossa percepção.

Limitações que nos pertencem como um afeto sobre o qual não temos nenhum controle.

Esse poema me trouxe também o nome do poeta que eu buscava.

Para minha surpresa soube também que foi precisamente na quadra 23 da avenida Arequipa, onde comprei todos os cigarros de abril e maio, que seu corpo tomou impulso e foi soterrado por um automóvel desgovernado.

Me pergunto sobre a cor deste automóvel inocente e culpado e o vento me diz que ele era verde como os automóveis verdes e uivantes que algum dia me atropelaram em algum lugar entre a cidade 2000 e o Dionísio Torres.

Recém me chegou este poema esverdeado de abril e acrílico.

Esta tapeçaria e mosaico onde as coisas soterradas desvanecem e perdem sentido e abrem veredas para que o nada e o vazio se manifestem no coração da memória material da cegueira.

Entrego-lhe meu amor e minha ansiedade como um precioso tesouro guardado por meses a fio.

E me recolho no caracol onde o semblante do eremita se traduz no semblante do enforcado.

A duras penas esse poema finalmente chegou a seu destinatário.


nuno g.

Lima, 21 de novembro de 2025.

 




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