terça-feira, 2 de setembro de 2025

crônica de um amanhecer

     Sidney Magal ainda faz muito sucesso no Peru. Esqueci as flores que Assucena deveria levar à miss. Muitas vezes só nos resta regressar. Flores roubadas à boca, pois somente flores roubadas possuem algum sentido ainda. Hoje o fascismo despertou no banco dos réus. Isso é bom. Isso parece bom. Soa como sopro de vento favorável. Entretanto, resta ainda o gosto amargo da pergunta: quando foi que deixamos de sonhar e passamos a simplesmente resistir ao pesadelo? Em qual momento começamos a acreditar que defender instituições burguesas deveria estar em nosso horizonte? Entre oxxos e tambos corre o Apurímac. Adentra meus sonhos trazendo os ossos de Pizarro e as águas das geleiras andinas que se desfazem como um sorvete de lúcuma exposto à crueldade do sol. As artérias abertas da história seguem correndo em direção ao mar e em seus olhos salta a pergunta: quando foi mesmo que nos tornamos tão reativos? As pessoas passeiam seus cães em Jesús María. Ensaiam algumas palavras em português que aprenderam nos porões das fábricas japonesas. Entrego as flores. Olho os esquilos. Os andes estão descongelando numa velocidade inimaginável. Todos seguimos indiferentes ao perigo que isso representa. A raposa de baixo está em silêncio. A raposa de cima também. Todas as raposas estão em silêncio profundo. A terapia pode ser um bom caminho para curar o que resta de otimismo. Alguém que eu gosto muito me fala sobre a dor e, imediatamente, eu penso: não há dor maior que a resignação. Gal na vitrola: mal secreto e outra vez a alegria de quando se mandava tudo mais ao inferno. Uma das minhas tias hoje celebra oitenta anos. Minha alma chora, vejo o rio Apurímac e nele outra vez o Jaguaribe. Seus pistoleiros, suas carnaúbas, suas várzeas de piçarra vermelha. Entrego as flores roubadas na escola. Alguém olha as estrelas e estuda mitos antigos desde a janela de um apartamento em Salvador: constatar que se está perdido é um bom início. O julgamento se inicia. Os fascistas finalmente tomam assento no banco dos réus. Não deveríamos esquecer que também entre os juízes existem fascistas e que a história é uma artéria aberta, mas também uma armadilha. Os ossos de Pizarro estão em todas as esquinas dessa cidade. Em seu céu cinzento a estrela que é, a um só tempo, sina e oráculo . As mineradoras seguem contaminando palavras e flores. Minha tia celebra oitenta anos e eu penso nessa esperança ferida que entrego a São Miguel em seu mês. Há um sol que se chama esquecimento. Há um sol que se chama abandono. Há um sol que se chama fertilidade. Há um sol para cada desejo de Tempo. Assim como há um leito de rio onde transborda leite e mel. Antes de viajar meu tio me deixou algum contentamento. Como se quisesse me recordar que anos atrás suas mãos me salvaram de algo pior. Olhar a cidade me acalma. Não gostaria de entrar em falsas polêmicas, mas não resisto. O que define a literatura, senhora, não é a inovação formal. Existe muita literatura boa que se serviu de formas poéticas estabelecidas. Mas sim, em algo a professora da USP tem bastante razão: o mercado tem determinado em muito a circulação, a produção e a recepção das poéticas de nosso tempo. Impossível não recordar aqui Françoise Perus. A segunda polêmica é ainda mais rasa: andam outra vez repetindo que antes de se suicidar ela mudou a história da poesia. Com todo respeito, não foi assim. Nem perto disso. Adélia o fez. Augusto também. Cruz e Souza ibidem. Ela não. É só um clichê mais ativando nossa reatividade poética e política. Existe um anjo vermelho. Existe um anjo azul. Não devo lhes revelar seus nomes. Em respeito ao punhal que atravessa o coração de Judite. Em reverência ao silêncio de Hermenegildo. Em memória de todos os rios e das flores que brotam em suas margens. Há uma pedra no meu coração. Ela sangra. Ela espuma. Ela vocifera. Ela ruge. É como a fera do campanário: sua voz traz ao chão a lírica da escuridão. As aves de rapina sobrevoam a catedral. Todo vento que faz justiça ao nome anuncia tempestade. O julgamento prossegue. Apenas os mortos suportam a fulgurante beleza do passado. Algum dia nossos fantasmas nos julgarão por termos abandonados cedo demais a crença no amanhã. Já escuto os tambores dos terreiros louvando a São Miguel. Seus caboclos chegam. Comem com as mãos. Dançam. Fazem algazarras. Alegram nossos corações. A eles entrego a esperança. Ferida e agonizante. Desolada e cativa. Resistindo tenazmente ao ceticismo e à desolação.  


nuno g.

Jesús María, 02 de setembro de 2025.

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