domingo, 20 de julho de 2025

deriva

    Sem notícias da Pina, milagres ocorrem quando não esperamos. Amanhã a neve e todas as ausências juntas, como sempre. O livro do sonho despertencia a qualquer gênero e estava dividido em duas partes: desterro & exílio, único que recordo além da prateleira de azulejos azuis como o túmulo do cemitério de Bom Jesus dos Aflitos que não existe mais. De Judite o já conhecido: tarda sempre muito a permissão para dizer o nome de uma dor. Ignez sentiu certa nostalgia. Nação e Estado são coisas tão distintas que nada consegue ocultar de si mesmo a violência que as une. Pipocas e derrotas: uma onça atravessa a tarde sem pressa e com um brilho estranho nos olhos. Hermenegildo abençoou Assucena e uma pétala sorriu para Alice. O beijo não vem da boca, nem o desejo do corpo - Ignácio de Loyola Brandão. Bolaño tem muita razão: estamos todos escrevendo o mesmo livro e quase todos seremos brevemente esquecidos. O Jaguaribe cruza o vale enquanto o mundo arde. Uma jangada quase surge no horizonte - Mucuripe é cada vez mais uma memória desbotada por arranha-céus e turistas. Deus é quem decide destino, disse Alzira antes de desanuviar. Queria mesmo era pronunciar a dor, mas não posso. Resta a dança, essa mistura de tristeza e desprezo à humanidade que desaprendeu a sonhar e que teima em não me esquecer de vez. Amor é sinônimo de lágrima no dicionário que estou escrevendo. Lamento é pedra azul e caminho é, por extensão e deriva, amarelo. Cristalina está bem. Tereza também. Toda nuvem é cigana. Vulcão é por onde a terra expele as secreções da memória mais antiga. Arcaico significa aquilo que está por vir. Os fascistas causam cansaço e tédio, embora possam sim destruir qualquer alegria. Sigo querendo não estar aqui, mas me obrigo. Respiro. Rezo. Alucino. A intuição pode ser o oposto da Morte, mas também pode ser seu leito e sua amiga mais confiável. Deposito essa chuva de ossos no oratório. Assucena morde Alice. Assucena chuta Alice. Pipocas e derrotas são capazes de adiar o fim da tarde. Não falta nada para sermos completamente esquecidos. Na casa de meu pai há muitas moradas; a poesia é, sem dúvidas, a mais aprazível entre todas elas.


nuno g.

Lima, 20 de julho de 2025. 

sexta-feira, 18 de julho de 2025

haiku (dois coelhos amanheceram entre as pedras do seu coração)

   para Alice & Assucena,


Daniela cruzou o frio num susto.

A única maneira de manter nossos mortos vivos é não esquecê-los. 

Amanhã, a neve.


Lima, 18 de julho de 2025.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Sonho (o caçador e os caminhos não nomeados)

Sonhei com a capa do meu pai me protegendo da chuva

Negra e vermelha como as bandeiras dos sonhos operários que não existem mais

Povoada por jaguares, gaviões e serpentes

Entre as águas doces e salgadas

Onde se escuta melhor o canto dos pássaros

E se avista a estrela do amanhecer em sua plenitude

Havia um caminho de piçarra que levava para além do nada

E de todas as gastas metáforas de um tempo ausente

Sonhei com a capa do meu pai me abrigando da chuva

Negra e vermelha como as bandeiras dos sonhos operários que não existem mais

Semeada de flores e borboletas

Entre as ruínas e a mais profunda escuridão

Onde apenas os vaga-lumes acendem alguma recordação

Sonhei que sonhava com a capa do meu pai

Negra e vermelha como a chuva de ossos

Entre o desamparo e a solidão de uma carne ferida pelo punhal do esquecimento

Onde se escuta com fina delicadeza o sopro do vento gelado das montanhas

E a brisa doce que desce dos céus à terra

Sem pressa, sem destino e sem qualquer pretensão de chegar a lugar nenhum...


nuno g.

Lima, 17 de julho de 2025.

domingo, 13 de julho de 2025

entre o Sétimo e a Serpente

    Todos dormem. Aconteceu a tanto tempo que chego a duvidar da realidade do ocorrido. Suspeito que aquela imagem na praia seja somente uma imagem produzida pelo labor incansável de algum daimon arcaico. Entretanto, ainda ouvir o som do mar traz certa tranquilidade e alguma certeza sobre a veracidade dessa memória náufraga. Algo daquilo me resguarda agora contra o pavor que me habita. Onde o medo e o perigo também o caminho. Não havia ninguém além do daimon e da serpente. E coisas muito antigas trabalhavam sobre seus corpos fundando um horizonte insuspeito. O depois revelaria muito sobre como se abrem caminhos nos corpos e nos tribunais. A paranoia, histriônica e ébria, à sombra dos coqueiros, zombava da pressa e da ânsia que dominavam a fúria do daimon em êxtase. A serpente se esgueirava entre os raios do sol como areia entre dedos ou desejo fugaz exposto ao juízo de valor do inquisidor supremo. Da água salgada passaram à água doce. A pressa do daimon e o tesão paciente da serpente. Caleidoscópio de estrelas, ressentimentos vagos, percursos oblíquos. Foi a muito tempo. Nada naquela praia os recorda. Talvez o monstro que os acompanhava, mas do monstro já nada se sabe. Há quem diga que morreu na Nicarágua ou que, para sempre, se perdeu em alguma ruína pré-hispânica da Guatemala. Seria uma boa história sobre como os corpos podem nos levar a cruzar tranquilamente as fronteiras, mas a sofreguidão do daimon não permitiu que assim fosse. Embora seu impulso feroz em direção à carne tenha encerrado a noite dos tribunais e acendido pequenos vaga-lumes nas partes íntimas da serpente. Sobre esta nada se pode dizer, apenas que segue reinando em algum lugar entre o silêncio e a ausência. Vez ou outra regressa em sonho e semeia. Em seguida, desaparece como desaparecem todas as coisas que acontecem nas noites dos carnavais. O medo e o perigo seguem pulsando. Os caminhos seguem se abrindo. Onde existe carne e ferida haverá sempre chão e luz, ainda que tudo esteja demasiado escuro e toda a realidade esteja ameaçada por uma única imagem. As coisas que eu poderia dizer estão interditadas para sempre. Apenas os arqueólogos poderão falar livremente sobre elas. Sobre as ruínas, os ossos e os pequenos sussurros soterrados nas camadas de Tempo que se acumularam desde aquele dia em Mangue Seco. Todos dormem. O frio vai vencendo a guerra inexistente. A memória pulsa e fabrica insetos de estranhíssima arquitetura. Naufragar é sinônimo de ousadia, embora aos olhos de quem julga de longe assemelhe-se a insensatez e resignação. Houve amor e fúria. Houve uma boca suicidando-se em alheia carne. Houveram outras coisas que não posso narrar. Quem sabe um dia a serpente nos brinde com sua versão. Ou o daimon encontre a forma exata de descrever sua noite, seus calabouços e o fogo que alimenta sua própria destruição.


nuno g.

Lima, 13 de julho de 2025. 

sábado, 12 de julho de 2025

dança folclórica

     Outra vez, o Sol. O que aqui neste tempo e lugar é o mais próximo do que conhecemos por milagre. As ausências nos saudaram ao caminho, inevitável. A avenida, fechada, virou chão de baile e memória. E aquela beleza que nasce das mais antigas dores se exibiu ante nossos olhos. Máscaras, lamentos, esporas, chicotes, espectadores com olhares perdidos, autoridades à sombra, cães, crianças e uma serpente colorida traçando indecifráveis arabescos no asfalto. A barca que corre no mar, corre no meu coração. Até aqui chegou aquele vento. E com ele a memória da faca atravessando o peito de Judite. E com ele a faca atravessando o peito de Alzira. E com ele a terceira faca nas mãos pacíficas de Hermenegildo. O arco-íris e uma centena de pequenos insetos ruminantes cavando túneis no ventre da terra. Fazia tempo que meus joelhos não sangravam uma oração. Tem dias que nos esperam com mais promessas que as que merecemos. Não sendo filósofo, pode dizer coisas que estavam além da compreensão. Apenas os vestígios de que esteve aqui um dia seriam suficientes, mas esses também se desfizeram quando o sol desapareceu mais uma vez no horizonte de prédios, escamas e urbanas alucinações.


nuno g.

Lima, 12 de julho de 2025  

sexta-feira, 11 de julho de 2025

subterrâneos de um arquivo

     Depois de dias, o sol. Neste lugar onde o sol é sempre um acontecimento: seja pela raridade de suas aparições, seja pela discrição com que desaparece. Quase não se notam muitas coisas quando se está dentro de algum lugar que se desconhece como foi erguido. Revelar um temor é um erro e uma fatalidade que pode mudar o rumo já incerto de todas as coisas. Paciência é o nome de uma senhora distraída que nunca mais foi vista por aqui. Nenhum lugar e todas as ausências. Os costumes obedecem a uma profana dialética que escapa ao nosso parco entendimento. Hoje, melhor não falar da fé. Nem dos seres que a acompanham. Nem das encruzilhadas onde floresce. Nem das ervas que exige. Nem dos cânticos onde ela dança. Hoje, o melhor mesmo é falar pouco ou nada. Abrir apenas as frestas das portas e das janelas. Observar. Meditar. Dobrar sobre si mesmo. Reverenciar essa inóspita presença do sol. Desfrutar da brevidade desse calor. Incensar o corpo e a casa, como se fossem os últimos oratórios. Reestabelecer algum caos onde a ordem ameaça estagnar o fluxo do rio. Sentir o sabor do sangue à boca. O amargo do beijo ao barro. Semana passada não houve sol e enquanto sobrevoávamos as folhas de eucalipto me vi abruptamente transfigurado num louva-deus. Animal de arquitetura sublime, nome gracioso e estranheza estética. A lua foi cheia ontem. Judite traz um punhal no peito. Ela me pediu nada dizer sobre isso. Em sua reverência, me ausento.


nuno g.

Campo de Marte - 11/07/25. 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Olegária, uma senhora nada obscena

para Assucena,


    A conhecemos no Campo de Marte enquanto flutuávamos sobre as folhas de eucalipto em busca de um lugar onde alimentar nossos guias. Garras afiadas e retorcidas. A ansiedade e o progresso são irmãs gêmeas e incestuosas, de sua cópula nascem a estupidez e a ruína - foi o que nos disse antes de partir. Impermeável e sisuda. A todo cansaço se segue uma longa noite - foi o que nos disse ao chegar. Ao redor o som da cidade e em seu corpo som de flauta e incêndio, aroma de flores e águas, efervescentes memórias e evanescências. Dorotéia cruzou a soleira do Campo de Marte a passos distraídos. Todos os guias necessitam ser alimentados: nossas mãos cortaram o frio e tocaram o barro do chão. Além de nós havia um helicóptero sobrevoando o vazio e o sangue. Um rio chamado pássaro e os escombros da cidadela das cicatrizes. Ludmila, de saia rodada e sem paciência. Existem guias que se alimentam de poesia. Deve ser muito triste morrer antes do dia. Dança de Esquilos entre as folhas de eucalipto. Flutuamos e esquecemos. A facilidade com que os de agora se satisfazem é sintoma da decadência de um tempo que não reconhece na lâmina das águas a própria face. Olegária, sobre o cansaço e as voltas tortuosas que alguém é capaz de realizar sobre si mesma. Nossos guias comeram, sorriram e acenaram. Hermenegildo reverenciou a Serpente e Ernesto se perdeu em seu Caminho Amarelo. Tudo passou tão rápido que quando regressamos a nós o punhal já não mais continha qualquer memória da morte. O mar nos enviou um vento úmido e a escuridão acendeu inimaginável plenitude. Nunca soubemos se era sêmen ou lágrimas o que escorria entre as linhas do vestido de cetim. Ficamos com a certeza das nódoas de maturis entrelaçadas aos cabelos. Indefectível, como uma borboleta pousada no ombro envelhecido de uma senhora para quem todos viraram as costas antes do derradeiro pôr-do-sol.


nuno g.

Campo de Marte, 09 de julho de 2025.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

caminhos do inverno

     O inverno chegou, as mãos do ferreiro voltaram a tocar o semblante da divindade. As onças cruzaram o mar em busca de Hermenegildo. Em busca de Judite, de Adélia e do Senhor de Todas as Feridas e Todos os Unguentos e Beberagens. À maneira de despedida o que se viu foi uma floresta repovoando as cidades. Automóveis paralisados. Engravatados paralisados. Transeuntes paralisados. Pássaros voltando do Icó trazendo ao bico a memória da cabeça de touro enterrada entre os alicerces coloniais da igreja de Nossa Senhora da Conceição. A piçarra avermelhou o céu e as águas do Banabuiú desfizeram as barreiras que demarcavam seu leito. Havia alguém chamado Luzia, outro alguém chamado Joaquim, outro alguém que veio a cavalo da Itaiçaba. Todos sabiam seu nome, mas não o pronunciavam. Chegou antes do sol na vila do Pacheco e antes dele partiu. O ferreiro, suas mãos, a floresta: tudo se movendo em direção ao semblante da divindade. Hermenegildo cruzou o mar em busca das onças e o que encontrou não houve maneira de transformar em palavra. A vida toda seria inverno e qualquer oração estaria aquém do desejável, embora cumprisse sempre alguma serventia. Adélia era toda abismo. Judite era caverna. E os pássaros do Icó nunca permitiram que esquecêssemos da cabeça de touro enterrada aos pés da Virgem da Conceição. Assim como não esqueço sua voz antes da plenitude do sonho sussurrando: ensina tuas Marias sobre sua morte. Nem quando depois da plenitude do sonho tornastes a sussurrar: ensina a tuas Marias a doce e delicada arte de morrer. Antes que o inverno se despeça espero já não mais sentir a incômoda dor de saber que jamais me será permitido pronunciar outra vez a chama do teu nome. 


nuno g.

Jesús María, 07/08 de julho de 2025. 

sábado, 5 de julho de 2025

aboio

 para Eliana Gonçalves,


    Envelhecer é deixar para trás toda e qualquer ilusão que tenha sobrevivido ao transcurso do tempo. Ainda estou no deserto e confio apenas em meus pés e meus joelhos para seguir a travessia. Embora meus pés estejam demasiado inflamados pelos espinhos do passado e meus joelhos sigam em permanente estado de hemorragia. A noite é longa e apenas as estrelas me acompanham. A noite é demasiado longa e os rios estão avermelhados pelo sangue derramado através dos séculos. O esquecimento seria uma dádiva, mas nunca uma solução. Me demorei tempo demais em lugares onde nunca deveria ter estado e tardei excessivamente em caminhar em direção aonde sempre estive. Ouço o cântico noturno e sombrio das onças. Avisto a imensidão do paredão calcário ante meus olhos. Envelhecer é permitir que se dissolva tudo que sempre clamou por dissolução. E são muitas as coisas que nasceram para se dissolver.  Estar só seria um alívio, mas não uma solução. A túnica inconsútil me abriga e me protege de mim mesmo. Lá fora, tudo aspira a transmutar-se em algo. Ainda quando já esteja nítido que apenas o nada deveria nos guiar. Com serenidade e sabedoria. Sem desespero. Sem angústias desnecessárias. Com firmeza e resolução. A noite é imensa e nela tudo se destina a encontrar sua resolução. O resto é dedução prematura. Indevida conclusão. O inexistente me abraça. O mundo ameaça devorar meu envelhecimento precoce. Conservo a audácia de uma juventude onde cheguei a acreditar que havia algum sentido em estar aqui. Neste lugar que me aprisiona. No interior deste pesadelo infinito e labiríntico onde todas as areias são inexoravelmente movediças. Não haverá beijos neste inverno. Apenas uma paz fria e uma inesperada quietude que nenhuma similaridade guarda com as bestiais formas de consolação que me apavoram. Algo insiste em cair e nas minhas sobrancelhas se multiplicam borboletas e mariposas de inúmeras cores e cintilâncias. É tarde. Sempre foi tarde. As distâncias e os abismos se acumulam no caminho. Amar a noite. Amar o silêncio. Amar as estrelas. Escutar o cântico das onças atravessando o vento que possui nome. Isso é tudo. O resto deve, definitivamente, ficar para trás.


nuno g.

Campo de Marte, 05 de julho de 2025.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

breve história da lucidez

 para Larissa Gonçalves,


    Antes, muito antes, todas as plantas morriam. Não era descuido. Não era inércia. Não era ausência. Apenas um modo de depositar energia. Todos os meses de julho meu joelho esquerdo dói e sangra. Dói insuportavelmente. E sangra de tanto chão. Talvez agora que as plantas pararam de morrer e que pude entender algo sobre o sacrifício e a afirmação da vida sobre todas as coisas essa dor e esse sangue se realizem plenamente. Ainda que Assucena insista em enfiar pedaços de frango, restos de plástico e qualquer outra porcaria nos buracos do nariz sei que está tudo bem. Ainda que não esteja. Ainda que nunca tenha estado. Ainda que eu sinta a certeza de que nunca chegará a estar. Ainda assim é somo se soubesse que está tudo bem. E que a dor e o sangue são tão necessários quanto a escrita, a fala e o sexo. E que os sonhos são mais reais que tudo que é ordinário e comum. E que não é possível viver como antes quando se entende que não é o mesmo dizer que tudo é passageiro e transitório que sentir nas vísceras que tudo é passageiro e transitório. A fé, obscura e enigmática, oscila entre o canto do anjo vermelho e o sino assombroso da catedral. Existem coisas que nada pode alterar, essas parecem ser realmente as que importam. Quando se percebe que apesar das aparências tudo que aconteceu um dia segue sempre acontecendo se pode lentamente permitir que asas floresçam onde antes havia apenas um casco duro e opaco como o casco das tartarugas amazônicas. As plantas pararam de morrer, faz dias que não vemos o sol. O mar gelado do Pacífico me acaricia. Atravessa a vida de Alice desde o Anáhuac até o Tawantinsuyu. Violência e barbárie escorrem aos grãos das mãos de L. Existem muitos nomes que não me são permitidos pronunciar. Existem muitas histórias que não posso narrar. Os mortos que caminham comigo me protegem da morte. Rogo a eles por mais dor e mais sangue. Rogo a eles por mais sacrifícios e entendimento. Rogo a eles que me ensinem a língua das rezas do futuro. E os vejo apontar para algum lugar subterrâneo onde já estive antes de estar aqui. Onde habitam vespas, moscas e muitos outros oráculos. As folhas de Tempo caem ao solo. O mar esbraveja. As plantas insistem em não mais morrer. Afirmar a vida sobre todas as coisas e nunca esquecer que somos menos e o mais sublime que podemos aspirar é o nada.


nuno g.

Campo de Marte, 03 de julho de 2025.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Rebeca: onde se lê fé obscura leia-se coveiro da esperança ou às mãos que semearam desertos e tempestades

para Giacomo Leopardi & Cruz e Sousa, 

que antes de mim reconheceram na face deste mundo o inferno.


       Se eu não me chamasse Nuno me chamaria Rebeca, ao menos essa parecia ser a vontade de minha mãe. Foram anos sentindo repulsa e aversão a este nome até que o aceitei. Junto com ele aceitei também algumas outras verdades oriundas do antigo testamento, como aquela que diz que, apesar de tudo, aqui o peso é constante e o fundo da vida é um poço repleto de sal e peixes tristes. Séculos se passaram desde a última vez que o sino assombroso da catedral ecoou, embora em meus sonhos seu eco seja pura e autêntica presença e comprovação fática que todo passado e futuro são meros efeitos do agora. Simples estilhaços das máscaras da submissão imersas na longa noite da resignação. Os termos de quaisquer equação sempre podem ser invertidos, assim como o movimento nada pacífico das marés ou os gestos oriundos do sonambulismo. Com razão, no início, a boca de ferro e delicados lábios poderia ter pronunciado outra origem. E o mundo, com suas águas, lama e fogo teria iniciado assim: se eu não me chamasse Rebeca me chamaria Nuno, ao menos essa parecia ser a vontade do meu pai. Junto a isto aceitei também algumas outras verdades oriundas do novo testamento, como aquela que diz que, apesar de tudo, sem essa ânsia de vômito que me acompanha, a novena e a procissão seriam ainda mais sombrias. Séculos se passaram desde que o anjo vermelho cantou seu penúltimo aboio e celebrou as onças dançarinas. Se eu não me chamasse Nuno nem Rebeca poderia, finalmente, sentir a alegria de não ter nome. Então caminharia pelas ruas à chuva sem me importar com essas flechas que os transeuntes me atiram todos os dias. Voltaria ao roxo e, desde suas entranhas, assistiria outra vez aos primórdios da criação. Quando as mãos, enrugadas e flácidas, semeavam desertos e tempestades ou quando as mãos, esquálidas e ossudas, semeavam tempestades e desertos. Calabouço talvez se adequasse a descrever o que passou, mas não. Seria inoportuno e demasiado impróprio tentar exprimir o que, por definição, é inexprimível. Depois de tudo, resta apenas o frágil registro, esculpido pelo vento às falésias, de que sabíamos que não havia nada que pudéssemos fazer para alterar o ocorrido. Sabíamos também que qualquer palavra ou esforço para pronunciar o que havíamos presenciado seria em vão. E assim, finalmente, chegamos a entender o real significado das coisas irremediáveis.