domingo, 7 de setembro de 2025

crônica de setembro

     A miséria apodrece a alma humana. O trabalho degrada o corpo e o espírito. É quase primavera: o frio já nos abandona e caminha em direção ao outro lado do mundo. Sonhei com uma cidade azul dentro de uma cidade vermelha construída dentro de uma garrafa verde. As livrarias continuam sobrevivendo nos bairros ricos com suas cafeterias europeias. Ontem a lua estava cheia e radiante. Hoje um gato caça um pássaro com a delicadeza que só os gatos, essas pequenas onças, possuem. As flores já surgem na cidade. Recordo dos livros de pirotecnia, do meu tataravô, que foram queimados após sua morte. Recordo dos livros sobre a maçonaria, de meu bisavô, que também foram queimados após sua morte. Será mesmo a crônica um gênero menor? Uma maneira insuficiente de dizer o indizível? Descreio. Já sinto saudade do frio que parte, mas não posso segui-lo: temos destinos distintos. Uma senhora que veste algas roxas me fala de sua infância como se fosse um céu de maio. Certas brincadeiras de Tempo são como astúcias de animais urbanos, têm mais a ver com a sobrevivência que com a necessidade de entendimento. Antes de ontem vi um filme africano maravilhoso. Nele uma mãe estapeava a filha e lhe dizia: quando eu cortar meu braço para que você não passe fome finalmente entenderá que sou sua mãe. E um outro personagem falava assim: a democracia é como macaxeira importada, apodrece rápido. Nem sempre é possível ser sutil. A fome é um fato. A fome está acesa no horizonte da humanidade. A fome é um fardo. Carpinteiro do universo e Tente outra vez são duas canções que podem nos ajudar em tempos difíceis. Hoje o sol acordou mais cedo e dentro dele vibra uma tempestade cheia de promessas e milagres. São Miguel está na terra outra vez. São Miguel está na mata. São Miguel está nas águas. O trabalho degrada o corpo e o espírito. O trabalho produz e reproduz miséria. O pássaro escapa à fome do gato. Quem tem fome mata por uma migalha. Quem não tem mata por prazer. Os indiferentes se matam sem pudor. Tudo que nos é alheio nos pertence de outra forma, eis uma maneira interessante de inventarmos um caminho. Quando tio Joãozito, esse deus asmático que me protege, morreu, ainda não sabíamos que em Tenochtitlán se come pizza com feijão: isso alteraria pouca coisa, mas certamente teria feito com que ele sentisse algum prazer ao comer pizza. Agora é tarde, ele está morto e enterrado no cemitério de Russas. As águas da Caiçara lavam seu corpo como lavaram o de minha mãe, o do meu avô, o da minha vó. Não sei onde enterraram meu tataravô e isso me causa insônia e desconforto. Meu corpo está novamente coberto com cera de carnaúba. Tio Joãozito, carteiro e mulherengo como Bukowski, morreu antes de ir a Portugal encontrar com sua filha. A crueldade da vida é um bem compartilhado com todos. No filme africano uma criança inventava cata-ventos usando livros escolares de física. Meu bisavô tentou inventar um moto perpétuo no Vale do Jaguaribe. A criança africana conseguiu, meu bisavô não. Será mesmo a crônica um gênero insignificante? Gostaria que o frio não fosse embora. Gostaria que o frio me levasse com ele. As duas coisas são impossíveis, mas são as coisas impossíveis as que movem verdadeiramente o mundo. As que deslocam o que precisa ser deslocado. Cada vez mais as tiranias prosperam e se espalham como sementes malignas pela terra. A democracia é como macaxeira importada, apodrece antes da hora. Minha mãe fez mais que a mãe do filme, cortou a própria alma para que eu sentisse sede. A vejo sorrindo na lua. Iluminando o gato que caça um pássaro nos últimos dias antes da primavera. Sonhei outra vez com o rio Apurímac. Havia montanhas de ossos em seu leito. Um dia Ogum se fez senhor do meu corpo em plena margem do Jaguaribe. Vi os ciganos dançando e bebendo à sombra da oiticica. E segui meu caminho. Sem nenhum temor e com a certeza de que atravessar infernos é muito mais interessante que morrer antes da hora. Os livros de faroeste e espiritismo da biblioteca do meu avô nunca foram queimados. A filha do tio Joãozito desapareceu na península ibérica. As águas da Caiçara não lavaram o corpo de meu pai. Talvez a crônica seja o gênero mais adequado para estampar a tristeza que resta quando nada mais tem nenhum sentido.


nuno g.

7 de setembro de 2025.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

crônica de um amanhecer

     Sidney Magal ainda faz muito sucesso no Peru. Esqueci as flores que Assucena deveria levar à miss. Muitas vezes só nos resta regressar. Flores roubadas à boca, pois somente flores roubadas possuem algum sentido ainda. Hoje o fascismo despertou no banco dos réus. Isso é bom. Isso parece bom. Soa como sopro de vento favorável. Entretanto, resta ainda o gosto amargo da pergunta: quando foi que deixamos de sonhar e passamos a simplesmente resistir ao pesadelo? Em qual momento começamos a acreditar que defender instituições burguesas deveria estar em nosso horizonte? Entre oxxos e tambos corre o Apurímac. Adentra meus sonhos trazendo os ossos de Pizarro e as águas das geleiras andinas que se desfazem como um sorvete de lúcuma exposto à crueldade do sol. As artérias abertas da história seguem correndo em direção ao mar e em seus olhos salta a pergunta: quando foi mesmo que nos tornamos tão reativos? As pessoas passeiam seus cães em Jesús María. Ensaiam algumas palavras em português que aprenderam nos porões das fábricas japonesas. Entrego as flores. Olho os esquilos. Os andes estão descongelando numa velocidade inimaginável. Todos seguimos indiferentes ao perigo que isso representa. A raposa de baixo está em silêncio. A raposa de cima também. Todas as raposas estão em silêncio profundo. A terapia pode ser um bom caminho para curar o que resta de otimismo. Alguém que eu gosto muito me fala sobre a dor e, imediatamente, eu penso: não há dor maior que a resignação. Gal na vitrola: mal secreto e outra vez a alegria de quando se mandava tudo mais ao inferno. Uma das minhas tias hoje celebra oitenta anos. Minha alma chora, vejo o rio Apurímac e nele outra vez o Jaguaribe. Seus pistoleiros, suas carnaúbas, suas várzeas de piçarra vermelha. Entrego as flores roubadas na escola. Alguém olha as estrelas e estuda mitos antigos desde a janela de um apartamento em Salvador: constatar que se está perdido é um bom início. O julgamento se inicia. Os fascistas finalmente tomam assento no banco dos réus. Não deveríamos esquecer que também entre os juízes existem fascistas e que a história é uma artéria aberta, mas também uma armadilha. Os ossos de Pizarro estão em todas as esquinas dessa cidade. Em seu céu cinzento a estrela que é, a um só tempo, sina e oráculo . As mineradoras seguem contaminando palavras e flores. Minha tia celebra oitenta anos e eu penso nessa esperança ferida que entrego a São Miguel em seu mês. Há um sol que se chama esquecimento. Há um sol que se chama abandono. Há um sol que se chama fertilidade. Há um sol para cada desejo de Tempo. Assim como há um leito de rio onde transborda leite e mel. Antes de viajar meu tio me deixou algum contentamento. Como se quisesse me recordar que anos atrás suas mãos me salvaram de algo pior. Olhar a cidade me acalma. Não gostaria de entrar em falsas polêmicas, mas não resisto. O que define a literatura, senhora, não é a inovação formal. Existe muita literatura boa que se serviu de formas poéticas estabelecidas. Mas sim, em algo a professora da USP tem bastante razão: o mercado tem determinado em muito a circulação, a produção e a recepção das poéticas de nosso tempo. Impossível não recordar aqui Françoise Perus. A segunda polêmica é ainda mais rasa: andam outra vez repetindo que antes de se suicidar ela mudou a história da poesia. Com todo respeito, não foi assim. Nem perto disso. Adélia o fez. Augusto também. Cruz e Souza ibidem. Ela não. É só um clichê mais ativando nossa reatividade poética e política. Existe um anjo vermelho. Existe um anjo azul. Não devo lhes revelar seus nomes. Em respeito ao punhal que atravessa o coração de Judite. Em reverência ao silêncio de Hermenegildo. Em memória de todos os rios e das flores que brotam em suas margens. Há uma pedra no meu coração. Ela sangra. Ela espuma. Ela vocifera. Ela ruge. É como a fera do campanário: sua voz traz ao chão a lírica da escuridão. As aves de rapina sobrevoam a catedral. Todo vento que faz justiça ao nome anuncia tempestade. O julgamento prossegue. Apenas os mortos suportam a fulgurante beleza do passado. Algum dia nossos fantasmas nos julgarão por termos abandonados cedo demais a crença no amanhã. Já escuto os tambores dos terreiros louvando a São Miguel. Seus caboclos chegam. Comem com as mãos. Dançam. Fazem algazarras. Alegram nossos corações. A eles entrego a esperança. Ferida e agonizante. Desolada e cativa. Resistindo tenazmente ao ceticismo e à desolação.  


nuno g.

Jesús María, 02 de setembro de 2025.