Nada sobre dormir cedo, sempre sobre olhar nos olhos da insônia. A vida é triste, sempre foi triste. Tem muito pouca coisa pela qual realmente vale a pena seguir caminhando entre os automóveis, os zumbis e todo esse cenário que construímos à custa de sangue e vampirismo. Em algum lugar sempre haverá uma onça uivando e isso deveria bastar, mas não basta. Eles sempre vencem e tudo regressa ao mesmo lugar. Círculo vazio. Repetições. Alguma música para ouvidos nada delicados. Fome, sede e as mãos trêmulas do assassino da esperança. Anoitecer no meu dicionário significa calmaria. Ainda depois de anos sem álcool e sem perambulações pelos subterrâneos das madrugadas. Minhas pupilas estão dilatadas. Minhas retinas em ruínas. Prolongado luto e excessiva proximidade da estupidez humana. Sinto, farejo, escuto a presença das onças. O resto é morte. O resto é morte em vida. Cansaço. Marasmo. Repetição. Hermenegildo cruza a avenida entupida de automóveis. Rebeca se atira do oitavo andar pela milésima vez. Adélia canta nua numa esquina qualquer. Um jovem, deitado no gramado do parque, lê Bukowski. Penso em Fante. Sinto que estão vivos e caminham em algum lugar bem longe daqui. Me distraio por um segundo e volto ao começo de tudo. Regresso ao triste povoado das éguas russas e avisto o cemitério de onças. Com minhas próprias mãos arranco os restos de carne de seus esqueletos. Sinto o vento que tem nome. Ouço o canto que vem de longe. Arranco a máscara e os meus olhos vão junto com ela. Estou cego, finalmente posso ver. O rio corre em direção contrária ao mar. A vida é triste, sempre foi triste. Penso em Nauro Machado bêbado cruzando as águas da ilha. Rebeca volta a se atirar do décimo primeiro andar. André Dias termina mais uma pintura. As fúrias trepam ante meu rosto sem olhos. As onças, o cansaço e os efeitos do luto prolongado se misturam como licores numa taça fria. A guerra está em todos os lados. Dentro de nós. Fora de nós. Acima. Abaixo. Só o coração de Hermenegildo sabe à trégua. Eu chamo e a voz de Adélia vem me ninar. O mar está perto o suficiente para que se esqueça, mas demasiado distante para que se possa tocá-lo com um simples movimento da língua. Nada é arbitrário e isso, ao invés de serenar, multiplica o desassossego.
Jesús María, 19 de junho de 2025.
Muito bom, Nuno! A insônia soprando navalhas em nossos olhos... sim, amigo, mais uma aquarela...
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