quinta-feira, 19 de junho de 2025

breve história do silêncio e da culpa

a meus guias, em súplica e admoestação 

    Apenas o grito atravessou a noite e minhas mãos tornaram a tremer e a soltar faíscas de fogo e solidão. Dois seres se apresentaram e apesar da parecença que guardavam entre si não eram parentes. Provinham de árvores distintas, pertenciam a tempos distintos e se moviam por trejeitos diferenciados. Os cílios eram de cores outras e as serpentes que os acompanhavam eram de signos opostos. Alguém, com extremo carinho e delicadeza, me disse: é preciso cuidar antes de seguir. Foi quando o grito se extinguiu e se escutou algo semelhante a um hino em língua intraduzível. Apesar de nada se compreender era evidente que o hino exaltava certas virtudes presentes na desconfiança e na cautela. Rebeca, onça no cio, acenou a Hermenegildo em sua velhice. A lama dos cascos do cavalo deixou um rastro que ninguém ousou seguir. Adélia, de longe e soslaio, sorriu. Era véspera de algo que não se sabia. E como toda véspera se fazia acompanhar de algo que oscilava entre a morbidez, a descrença e a fé no infinito. Uma andorinha cruzou o céu e recordamos do campanário e do anjo vermelho e do rugido das feras. Tempo foi se desdobrando ante nosso espanto e os dois seres encostaram à sombra de uma árvore chamada Espera. Era tarde demais para qualquer manifestação de felicidade ou esquecimento. Apenas o silêncio e a culpa conseguiam respirar sem ferir a memória da infância e as mais vivas recordações de quando as onças se exibiam à luz do dia e os tapuias dançavam sobre as águas. Alguém, sentou-se à pedra, pronunciou uma oração turva e barrenta antes que Hermenegildo, Adélia e Rebeca desaparecessem mais uma vez no horizonte...


Jesús María, 19 de junho de 2025. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário