Alzira tinha mais de cem anos e seguia imóvel, de cócoras, no canto do terreiro, absorvida pelo movimento dos grãos de areia escorrendo entre seus dedos. Alzira já teve muitos outros nomes antes de ser batizada à pia com este nome. Os grãos de areia nunca alcançavam o solo. Nunca paravam de cair. Alzira espreitava e as rugas se proliferavam ferozmente em seu rosto. Alzira seguia imóvel como na primeira vez que a encontrei. Tinha algo de estrela em seu semblante e, apesar de tudo, se pressentiam pequenas tempestades em seu íntimo e um esforço descomunal para manter a aparência de imobilidade. Alzira arrebanhara onças e gaviões por séculos antes de chegar neste lugar. Transpirava uma exímia concentração e apenas permitia que os grãos de areia seguissem escorrendo entre seus dedos. Nunca chegavam a tocar o solo. Em Alzira se percebia que houvera muita beleza antes e o melaço em seus cabelos recordava seus primeiros encontros com Rebeca e as lições amorosas que dela recebera. Não havia menor indício de distração em Alzira e apenas sua imobilidade guardava a memória de quando cavalgara com Hermenegildo pelos campos de lama e flores. O rio esverdeado riscando sua testa, as pequenas tempestades e a aparente ausência de movimento eram o mais particular em Alzira. Sua alma, diriam os teólogos que a conheceram. Mas também a isso Alzira era toda indiferença. Sua biografia se resumia aos grãos de areia que escorriam entre seus dedos sem nunca alcançar chão. Seus sonhos se resumiam a pequenas e sonoras tempestades acrílicas que seguiam-se umas às outras numa interminável procissão. Até que veio o sol, abrasador e impiedoso, como um cão que termina de escapar de um calabouço frio e escuro onde esteve aprisionado por mais de mil anos; deitou-se aos pés de Alzira e os grãos de areia foram entranhando-se em sua pelagem enquanto Alzira parecia abandonar definitivamente a máscara com que se apresentara por toda uma encarnação. Alzira, definitivamente, não distinguia o falso do verdadeiro. Nela, luz e sombra eram uma só e a mesma realidade. Aquele cão a seus pés, o aroma adocicado e frugal que atraía mosquitos das mais distantes regiões da terra e sua estranha capacidade de revelar coragens soterradas quase justificavam sua existência. Alzira nunca desejou plenamente estar aqui, mas algo superior à sua vontade converteu em necessária sua resignação. O cão se foi. Os grãos de areia seguiram caindo sem encontrar chão e as pequenas tempestades seguem sucedendo umas às outras como uma sucessão infinita de cachoeiras onde todos os fogos nunca cessam de arder.
nuno g.
Jesús María, 20 de junho de 2025.
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