sexta-feira, 20 de junho de 2025

Judite ou antes que o esquecimento se torne a única realidade

     Judite devorou o próprio coração duas vezes e foi assim que encontrou a paz necessária. Foi mais ou menos assim que ela chegou no lugar onde está agora. Depois de habitar cada um dos tronos estrangeiros que não lhe pertenciam e de caminhar com os loucos que abandonaram a floresta, desceram das montanhas e povoaram essas enfermidades à céu aberto que chamamos cidades. Judite, a que abandonei quando não olhei para trás e que ainda estava à minha espera quando, cansado e exausto, regressei. Judite, a que nunca encontrou meio de aparecer em meus sonhos e a única que sabe decifrar pesadelos e dizer com precisão o alcance do carma de cada um e de todos nós. Judite, a quem todos devemos a vida e a morte e o entendimento de que a vida e a morte são uma bendição. Judite, a que sabe ler nuvens, ler vísceras, ler sofreguidões. Judite, a que recorda a gramática perdida da língua das salamandras e a semântica dos seres sem nome que algum dia habitaram este planeta. Judite, a primeira que pronunciou a palavra saudade e que ensinou a cada ser vivo o significado desta palavra. Judite, a que já foi pedra, já foi planta, já foi água e que agora é puro ar. A que devorou seu próprio coração duas vezes e assim nos redimiu da ferida de ter nascido. Em teu nome está cravado o sangue do despertencimento. Nenhum estranhamento que tenhas sobrevivido sem coração. Nenhum mistério no fato que tenhas conseguido alguma paz. A memória de cada trono onde habitastes foi mais que suficiente. Tua capacidade de prever tragédias, anunciar cataclismos e antever anátemas remonta a tempos muito anteriores a teu nascimento. E é dela que deriva teu amor, tua quietude, tua tranquilidade e todas as virtudes que os néscios tomam por debilidade e confundem com as formas inferiores da resignação. Haverá o dia em que devorarás por terceira vez teu próprio coração - e nesse dia será ainda mais fácil reconhecer em tua face os passos que nos trouxeram até aqui. E nesse dia talvez possamos descansar realmente e nos divertir brincando com as sombras que algum dia foram nosso doce tormento e a mais pura fonte de onde jorraram nossas mais infernais ilusões. Judite é a inalcançável delicadeza com que se respira depois de toda conclusão.


nuno g.

Jesús María, 20 de junho de 2025. 

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