terça-feira, 24 de junho de 2025

Fagundes,

     Fagundes entrou e saiu das ruínas em silêncio. Trazia consigo histórias que não podia narrar e uma vaga memória de tudo que ocorrera nos últimos anos. Havia lama em seus pés e as flores que trazia à lapela eram roxas demais para se esquecer. Quando nasceu lhe jogaram búzios na praia e desde então soube da morte de Janaína e de Ian. Quando nasceu lhe jogaram búzios na praia e desde então soube da quase morte de Rebeca e do encontro com Hermenegildo sob a árvore de Tempo. Fagundes procurou Ana entre as ruínas e apenas sua sombra se apresentou. Havia uma lua no céu e um aroma adocicado que jamais se apagaria de seu corpo. O Senhor de Todas as Dores lhe tocou as mãos com uma suavidade que não tornaria a encontrar em suas andanças pelos reinos deste mundo e, apesar da sobriedade que lhe possuía como um demônio astuto e brincalhão, sentiu-se levemente mareado e quase despencou no chão. Ana estava ali, embora Fagundes não a encontrasse. Certa calma atribuiu à presença da lua e o desamparo aninhou-se entre suas rugas como um animal de estimação quando pressente a chegança dos Arautos Esquálidos e Sem-Cores. Depois de sair das ruínas Fagundes meditou por horas a fio sobre como chegara até aquele lugar desabitado. Ouviu o som do mar e avistou barcos estranhos e semblantes de pessoas que não eram Ana. Suas vestes desfiguradas denunciavam um cansaço de mil anos e a poeira nos cílios recordavam as montanhas e as noites de sua peregrinação. Uma borboleta pousou em seu sonho e uma ave negra e cintilante cantou em louvor às suas memórias. Fagundes não podia narrar o que presenciara, algo maior que sua vontade o guiava em direção ao Nada. Haviam escadas que não levavam a lugar nenhum e nuvens que nunca tomavam formas reconhecíveis. As sutilezas atravessavam o corpo de Fagundes como navalhas insanas atravessam o frio que nas madrugadas percorre as ruas das megalópoles. Fagundes chorou e suas lágrimas sabiam à ausência de Ana. Quando nasceu lhe jogaram búzios na praia e desde então soube que não poderia narrar o que ocorreu quando depois de abandonar o desânimo e a inércia começou a cavar túneis e construir pontes que não levavam a nenhum lado. Abruptamente Fagundes se desfez de tudo e se permitiu descansar. Era uma quinta-feira de maio e essa foi a última recordação que Ana guardou em seu coração de espantalho. O Senhor de Todas as Dores ensinou-lhe a arte de curar com urtigas e lhe pediu que a ensinasse ao menino dos caminhos amarelos. Fagundes chorou mais uma vez. E em suas lágrimas havia algo da insanidade com que seu avô lhe mostrou o mundo pela primeira vez. Fagundes então soube que nunca existira plenamente e, após compreender a mensagem dos búzios na praia, se entregou à voracidade da lama e à ternura das flores. Seu corpo tomou a cor roxa e ainda chegou a ver uma última estrela faiscando no céu. O Senhor de Todas as Dores e um incerto rumor amanheceram antes do eclipse. Nada mais se soube do destino de Fagundes. Nem da ira que corria em suas veias. Apenas aquele olhar desenganado de quem se alimentou de fogo-fátuo e a covardia incorporada no Anjo Vermelho após a terceira queda. Apenas a espera inexata de quem antes de nascer presenciou tragédias sobre as quais não teria permissão de narrar. Há quem diga que Ana ainda o aguarda, mas Fagundes desconhece qualquer caminho que poderia lhe levar até seus braços. O Senhor de Todas as Dores sorriu quando a ave negra desapareceu no horizonte e um estrondo de prata descortinou os véus que encobriam os cavalos amordaçados. Ana não estava mais entre nós e Fagundes já havia mergulhado para sempre nas gélidas águas de sua própria solidão. Uma borboleta amarronzada pousou em seu sono e, finalmente, o Anjo Vermelho recuperou sua insônia e deixou para trás qualquer esperança e a inútil ideia de eternidade.


nuno g.

Lima, 24 de junho de 2025.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Judite ou antes que o esquecimento se torne a única realidade

     Judite devorou o próprio coração duas vezes e foi assim que encontrou a paz necessária. Foi mais ou menos assim que ela chegou no lugar onde está agora. Depois de habitar cada um dos tronos estrangeiros que não lhe pertenciam e de caminhar com os loucos que abandonaram a floresta, desceram das montanhas e povoaram essas enfermidades à céu aberto que chamamos cidades. Judite, a que abandonei quando não olhei para trás e que ainda estava à minha espera quando, cansado e exausto, regressei. Judite, a que nunca encontrou meio de aparecer em meus sonhos e a única que sabe decifrar pesadelos e dizer com precisão o alcance do carma de cada um e de todos nós. Judite, a quem todos devemos a vida e a morte e o entendimento de que a vida e a morte são uma bendição. Judite, a que sabe ler nuvens, ler vísceras, ler sofreguidões. Judite, a que recorda a gramática perdida da língua das salamandras e a semântica dos seres sem nome que algum dia habitaram este planeta. Judite, a primeira que pronunciou a palavra saudade e que ensinou a cada ser vivo o significado desta palavra. Judite, a que já foi pedra, já foi planta, já foi água e que agora é puro ar. A que devorou seu próprio coração duas vezes e assim nos redimiu da ferida de ter nascido. Em teu nome está cravado o sangue do despertencimento. Nenhum estranhamento que tenhas sobrevivido sem coração. Nenhum mistério no fato que tenhas conseguido alguma paz. A memória de cada trono onde habitastes foi mais que suficiente. Tua capacidade de prever tragédias, anunciar cataclismos e antever anátemas remonta a tempos muito anteriores a teu nascimento. E é dela que deriva teu amor, tua quietude, tua tranquilidade e todas as virtudes que os néscios tomam por debilidade e confundem com as formas inferiores da resignação. Haverá o dia em que devorarás por terceira vez teu próprio coração - e nesse dia será ainda mais fácil reconhecer em tua face os passos que nos trouxeram até aqui. E nesse dia talvez possamos descansar realmente e nos divertir brincando com as sombras que algum dia foram nosso doce tormento e a mais pura fonte de onde jorraram nossas mais infernais ilusões. Judite é a inalcançável delicadeza com que se respira depois de toda conclusão.


nuno g.

Jesús María, 20 de junho de 2025. 

Alzira: grãos de areia, lucidez e pequenas tempestades

     Alzira tinha mais de cem anos e seguia imóvel, de cócoras, no canto do terreiro, absorvida pelo movimento dos grãos de areia escorrendo entre seus dedos. Alzira já teve muitos outros nomes antes de ser batizada à pia com este nome. Os grãos de areia nunca alcançavam o solo. Nunca paravam de cair. Alzira espreitava e as rugas se proliferavam ferozmente em seu rosto. Alzira seguia imóvel como na primeira vez que a encontrei. Tinha algo de estrela em seu semblante e, apesar de tudo, se pressentiam pequenas tempestades em seu íntimo e um esforço descomunal para manter a aparência de imobilidade. Alzira arrebanhara onças e gaviões por séculos antes de chegar neste lugar. Transpirava uma exímia concentração e apenas permitia que os grãos de areia seguissem escorrendo entre seus dedos. Nunca chegavam a tocar o solo. Em Alzira se percebia que houvera muita beleza antes e o melaço em seus cabelos recordava seus primeiros encontros com Rebeca e as lições amorosas que dela recebera. Não havia menor indício de distração em Alzira e apenas sua imobilidade guardava a memória de quando cavalgara com Hermenegildo pelos campos de lama e flores. O rio esverdeado riscando sua testa, as pequenas tempestades e a aparente ausência de movimento eram o mais particular em Alzira. Sua alma, diriam os teólogos que a conheceram. Mas também a isso Alzira era toda indiferença. Sua biografia se resumia aos grãos de areia que escorriam entre seus dedos sem nunca alcançar chão. Seus sonhos se resumiam a pequenas e sonoras tempestades acrílicas que seguiam-se umas às outras numa interminável procissão. Até que veio o sol, abrasador e impiedoso, como um cão que termina de escapar de um calabouço frio e escuro onde esteve aprisionado por mais de mil anos; deitou-se aos pés de Alzira e os grãos de areia foram entranhando-se em sua pelagem enquanto Alzira parecia abandonar definitivamente a máscara com que se apresentara por toda uma encarnação. Alzira, definitivamente, não distinguia o falso do verdadeiro. Nela, luz e sombra eram uma só e a mesma realidade. Aquele cão a seus pés, o aroma adocicado e frugal que atraía mosquitos das mais distantes regiões da terra e sua estranha capacidade de revelar coragens soterradas quase justificavam sua existência. Alzira nunca desejou plenamente estar aqui, mas algo superior à sua vontade converteu em necessária sua resignação. O cão se foi. Os grãos de areia seguiram caindo sem encontrar chão e as pequenas tempestades seguem sucedendo-se umas às outras como uma sucessão infinita de cachoeiras onde todos os fogos nunca cessam de arder.


nuno g.

Jesús María, 20 de junho de 2025.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

breve história do silêncio e da culpa

a meus guias, em súplica e admoestação 

    Apenas o grito atravessou a noite e minhas mãos tornaram a tremer e a soltar faíscas de fogo e solidão. Dois seres se apresentaram e apesar da parecença que guardavam entre si não eram parentes. Provinham de árvores distintas, pertenciam a tempos distintos e se moviam por trejeitos diferenciados. Os cílios eram de cores outras e as serpentes que os acompanhavam eram de signos opostos. Alguém, com extremo carinho e delicadeza, me disse: é preciso cuidar antes de seguir. Foi quando o grito se extinguiu e se escutou algo semelhante a um hino em língua intraduzível. Apesar de nada se compreender era evidente que o hino exaltava certas virtudes presentes na desconfiança e na cautela. Rebeca, onça no cio, acenou a Hermenegildo em sua velhice. A lama dos cascos do cavalo deixou um rastro que ninguém ousou seguir. Adélia, de longe e soslaio, sorriu. Era véspera de algo que não se sabia. E como toda véspera se fazia acompanhar de algo que oscilava entre a morbidez, a descrença e a fé no infinito. Uma andorinha cruzou o céu e recordamos do campanário e do anjo vermelho e do rugido das feras. Tempo foi se desdobrando ante nosso espanto e os dois seres encostaram à sombra de uma árvore chamada Espera. Era tarde demais para qualquer manifestação de felicidade ou esquecimento. Apenas o silêncio e a culpa conseguiam respirar sem ferir a memória da infância e as mais vivas recordações de quando as onças se exibiam à luz do dia e os tapuias dançavam sobre as águas. Alguém, sentou-se à pedra, pronunciou uma oração turva e barrenta antes que Hermenegildo, Adélia e Rebeca desaparecessem mais uma vez no horizonte...


Jesús María, 19 de junho de 2025. 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

breve história do medo

      Nada sobre dormir cedo, sempre sobre olhar nos olhos da insônia. A vida é triste, sempre foi triste. Tem muito pouca coisa pela qual realmente vale a pena seguir caminhando entre os automóveis, os zumbis e todo esse cenário que construímos à custa de sangue e vampirismo. Em algum lugar sempre haverá uma onça uivando e isso deveria bastar, mas não basta. Eles sempre vencem e tudo regressa ao mesmo lugar. Círculo vazio. Repetições. Alguma música para ouvidos nada delicados. Fome, sede e as mãos trêmulas do assassino da esperança. Anoitecer no meu dicionário significa calmaria. Ainda depois de anos sem álcool e sem perambulações pelos subterrâneos das madrugadas. Minhas pupilas estão dilatadas. Minhas retinas em ruínas. Prolongado luto e excessiva proximidade da estupidez humana. Sinto, farejo, escuto a presença das onças. O resto é morte. O resto é morte em vida. Cansaço. Marasmo. Repetição. Hermenegildo cruza a avenida entupida de automóveis. Rebeca se atira do oitavo andar pela milésima vez. Adélia canta nua numa esquina qualquer. Um jovem, deitado no gramado do parque, lê Bukowski. Penso em Fante. Sinto que estão vivos e caminham em algum lugar bem longe daqui. Me distraio por um segundo e volto ao começo de tudo. Regresso ao triste povoado das éguas russas e avisto o cemitério de onças. Com minhas próprias mãos arranco os restos de carne de seus esqueletos. Sinto o vento que tem nome. Ouço o canto que vem de longe. Arranco a máscara e os meus olhos vão junto com ela. Estou cego, finalmente posso ver. O rio corre em direção contrária ao mar. A vida é triste, sempre foi triste. Penso em Nauro Machado bêbado cruzando as águas da ilha. Rebeca volta a se atirar do décimo primeiro andar. André Dias termina mais uma pintura. As fúrias trepam ante meu rosto sem olhos. As onças, o cansaço e os efeitos do luto prolongado se misturam como licores numa taça fria. A guerra está em todos os lados. Dentro de nós. Fora de nós. Acima. Abaixo. Só o coração de Hermenegildo sabe à trégua. Eu chamo e a voz de Adélia vem me ninar. O mar está perto o suficiente para que se esqueça, mas demasiado distante para que se possa tocá-lo com um simples movimento da língua. Nada é arbitrário e isso, ao invés de serenar, multiplica o desassossego.

Jesús María, 19 de junho de 2025.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

se ao anoitecer as onças seguissem dormindo

    Hermenegildo e Rebeca se cruzaram na estrada essa semana. Antes do primeiro tremor da terra. Ainda quando a neblina mergulhava a cidade em penumbra. Apenas de soslaio foi possível avistá-los. Havia muita distância em seus corpos: distância e cansaço. Em Rebeca toda a beleza se convertera em memória e Hermenegildo aparentava guardar mais silêncio que o já habitual. O vento que acompanha Hermenegildo acendeu algo do fogo triste tão próprio à Rebeca. Um beija-flor, ao longe, floresceu. Assim como chegaram se foram. Sem deixar indício das razões de suas presenças. Apenas a certeza de sempre que tudo o que fazem é necessário e que essa é a única ideia que têm sobre o que significa ser livre. O rio seguiu seu curso, mas conservou a precária alegria de ter saciado a sede de um pássaro, de um velho e de uma corajosa senhorita que bem poderia se chamar Recusa. Sim, a terra tremeu duas vezes nos últimos sete dias. Nada além do esperado. Tudo conforme o risco aceso pelo Senhor dos Caminhos no chão em brasas. Mais uma guerra a recordar aquela outra guerra. Onde nascem estrelas e todas as cores se confundem. Onde a morte, faceira e empolada, pode se divertir ao ver brincarem a onça, a serpente e o gavião. Sim, raios caem no mesmo lugar. E sim, os raios são os mesmos e os lugares também. Apenas Hermenegildo e Rebeca sabem que é possível deixar de ser e seguir sendo ao mesmo tempo. É que eles sabem onde encontra-se a árvore chamada Tempo. Conhecem os caminhos de suas raízes pelos subterrâneos e a trajetória curva de todas suas sementes quando caem a cada outono. Existe algo mais no ocorrido, mas este algo é justamente a última fronteira do que me é permitido narrar.  


Jesús María, 16 de junho de 2025.

terça-feira, 3 de junho de 2025

sob oceânicas águas

        para Néstor Perlongher & mãe Baixinha,


aéreas, indecifráveis, espessas

entremeadas por escamas finas e desdobráveis

e frágeis faíscas de um corpo em combustão espontânea

aéreas, invioláveis, esverdeadas

entremeadas por escamas coloridas e pontiagudas

o cansaço e a gravidade agem como fogo no corpo

e o arrasta aos corais submersos — ao inexpugnável céu das águas douradas

onde apenas se sente, quase como uma intuição que se desfaz,

o aroma da presença da estrela azul

aéreas, impermeáveis, remotas

entremeadas por vozes de fantasmas que não cansam de repetir:

não há mar, não há eclipse, não há arco-íris

aéreas, incansáveis, geladas e adocicadas

entremeadas por vagas memórias do palácio da Rainha

aéreas, sonolentas, ébrias

entremeadas por pequenas veredas de uma antiga floresta

e uma insistente pergunta: onde estás estrela azul, onde estás?

aéreas, aéreas, aéreas,

entremeadas por silêncios profundos

que se espraiam sobre os resquícios de uma biografia

                          sobre jardins em eterna penumbra

        onde não se registram acontecimentos

        onde tudo é impreciso e espera de uma forma

aéreas e inalcançáveis

entremeadas por insistências de um destino tão concreto quanto o mármore

        apenas as dúvidas e os peixes se sentem cômodos aqui

        apenas eles não se incomodam com a voz ébria dos fantasmas

tudo se move, tudo gira

incessante e caleidoscópico eco do sino assombroso da catedral

adocicado aroma da estrela azul

entre aéreas águas onde não reina nenhuma ordem conhecida

                                onde lógica é sinônimo de atordoamento 

                                onde reverbera a irreconhecível promessa do fósforo e do amianto

 aéreas águas, estrela azul e um coração estendido sobre a relva que se recusa a amanhecer...


nuno g.

Lima, 03 de junho de 2025.